OPINIÃO
Paul Tournier e a Bíblia
A igreja está na
terra por causa da culpa, mas também, e principalmente, por causa da graça
Por José Cássio Martins
Focalizar culpa e graça é como assistir a um eclipse. Há o
lado claro e o lado escuro, seja num eclipse do sol, seja num da lua. Não penso
tanto no eclipse total, e sim, no parcial. Podemos dizer que um eclipse é um
jogo de chiaroscuro, como diriam os italianos. Esta é uma realidade comum da
vida.
A universalidade da culpa
A culpa e a graça também fazem um jogo de chiaroscuro.
Consideraremos a graça como a parte clara e a culpa como a escura. Em seu livro
Culpa e Graça, Paul Tournier fala da universalidade da culpa. E esta
universalidade é tão notória que cada cristão poderia contar sua própria
história, uma história de noites sem sono, em oração e luta, como quem quer
despir-se de uma espécie de camisa de força; uma luta em busca de paz.
Existe um eclipse da graça no mundo e na igreja, e é preciso
desfazê-lo. É urgente iluminar o lado escuro da vida humana. Na década de 50
presenciávamos, muito mais do que agora, o movimento chamado de avivamento e
despertamento. A minha experiência, como a de muita gente, foi de que aquilo
que poderia e prometia ser uma grande libertação era, de fato, uma prisão ainda
mais forte, aumentando a pressão da culpa, o medo de um Deus punitivo, que
exige uma retidão que Ele próprio sabe que ninguém poderá apresentar. Tudo isso
resultava num sofrimento inigualável. Quantos e quantos ainda estão vivendo
essa experiência terrível, sem perceber que o Deus da Bíblia não é nosso
perseguidor nem inimigo, mas, sim, nosso grande e melhor amigo e Salvador!
A experiência de quem conhece a graça divina é incomparável.
Em 1965, tive a felicidade de conhecer Paul Tournier, então preletor visitante
no Union Theological Seminary, em Richmond, nos Estados Unidos.
Um belo dia estávamos, minha esposa e eu, no saguão do
seminário, olhando o quadro de avisos, onde deparamos com um cartaz anunciando
a presença do Dr. Tournier ali, já na semana seguinte.
A cabeça calva só tinha cabelos dos lados. O rosto sereno e
risonho, os olhos claros e brilhantes na foto que ilustrava o cartaz comunicava
um "que" de acolhida, como se já prometessem contar algum segredo, e
dos bons. E quando o homenzinho começou a falar, uma espécie de atmosfera
espiritualmente perfumada nos envolveu. Sentimos que ele era instrumento de
algo muito diferente que chegava para nosso espírito, para nossa alma. Em duas
jornadas, falou do significado das pessoas e do significado e dinâmica da
culpa, a verdadeira e a falsa. Ouvíamos aquilo pela primeira vez e foi como
chuva no deserto, estimulando a volta da vegetação e da vida.
A culpa pode ser chamada de "doença única", ou
"pecado capital", uma vez que ela está por trás de praticamente todos
os atendimentos terapêuticos e pastorais que se tem conduzido. Aparece nas
formas mais variadas, em disfarces surpreendentes. Consciente, cáustica, ou
inconsciente e esquecida, como mencionou o pastor Carlos Lachler, lá está ela.
A pessoa se sente culpada e já nem sabe de que. É grande o trabalho de nos
comunicarmos com a parte sã e livre que está por trás da culpa. Mas demos
graças a Deus porque este lado são e livre lá está, à espera de resgate.
Esta "doença única e universal" não é só questão
de cliente psicológico. Também não é só de crente no gabinete pastoral. O
terapeuta sentado à frente de seu cliente e o pastor-conselheiro diante de sua
ovelha-consulente também não estão livres dela. Ninguém escapa! Estamos todos
no mesmo barco. Se não, por que foi que Paulo se queixou de si mesmo em Romanos
7, dizendo não fazer o bem que queria, e sim, o mal que detestava?
Por que o salmista pedia, no Salmo 139, que Deus o sondasse,
conhecesse e guiasse? Por que teria Jesus nos ensinado, na oração-modelo, a
dizer: “Perdoa-nos..."?
Ler Paul Tournier é algo muito reconfortante, e ouvi-lo
falar de suas próprias culpas, até mesmo das que não deveria sentir, é grande
alívio para qualquer um de nós. Ele refere, por exemplo, a culpa do privilégio:
ter um privilégio a mais do que alguém já pode produzir um senso de culpa.
É a graça que nos faz encontrarmo-nos no mesmo patamar uns
com os outros, que faz nossos corações se abraçarem e comunicarem alguma coisa
nova.
Em Êxodo 3 – o episódio de Moisés diante da sarça ardente –
podemos observar que a experiência de Moisés com Deus foi uma entrevista
terapêutica. Moisés não sentia apenas a angústia universal, existencial e
sistêmica de que fala J. Harold Ellens em Graça de Deus e saúde humana 1. Ele
era um fugitivo, culpado de um crime; doutra sorte não estaria ali, aturando
aquele sol escaldante do deserto do Sinai, cuidando das ovelhas do sogro Jetro.
Depois de matar o egípcio, Moisés fugiu pensando não ser seguido por ninguém.
Mas alguém o seguiu sem que ele o notasse. Este alguém lhe deu um susto
tremendo. O fogo, por sobre um arbusto verde, não causava nenhuma
"destruição amazônica". O arbusto sequer murchava. Moisés chegou
perto do arbusto... e veio o susto: o arbusto falou! Ainda mais, o arbusto
falou com ele: "Moisés, volte já ao Egito para tirar meu povo de lá".
Moisés quase teve um infarto ali mesmo no deserto.
O projeto de Deus era, de fato, estranho: um homem culpado
seria agente da sua graça! Esta é a importante vocação que devemos lembrar. A
igreja está na terra por causa da culpa, mas também, e principalmente, por
causa da graça.
Eclipse da graça
Existe um eclipse da graça no mundo e na igreja, e é preciso
desfazê-lo. É urgente iluminar o lado escuro da vida humana.
Tournier fala da culpa verdadeira e da culpa falsa. A falsa
é montada, agenciada e trabalhada humanamente. Já a culpa verdadeira é a que o
homem sente ao olhar para o rosto de Deus. Lutero fala bastante disso. Diz que
a posição do homem é coram Deo, ou seja, o estar sempre diante de Deus. É um
constante "olhos nos olhos", como diria Chico Buarque. E é este
encontro que mostra ao homem sua verdadeira culpa. Ao revelar-se esta culpa
verdadeira, todas as outras devem "cair de maduras".
Se há uma "doença única" – a culpa –, há, também,
um remédio único, a graça. Assim, vivemos um momento histórico e único: creio
que, ou nos conscientizamos de que, como igreja, tal como Moisés, somos agentes
da graça, e não da culpa, ou, então é melhor fecharmos as portas, cessarmos as
atividades.
Tournier fala do que ele chamou "a grande
inversão", o transformar o culpado em inocente, e os acusadores, que
posavam de inocentes, em culpados. Para alguém passar para o território da
graça, é preciso que tenha uma noção da verdadeira culpa, quer tenha uma falsa
culpa, quer não tenha noção de culpa alguma.
Lembrando que o homem está sempre diante de Deus, diríamos
que este precisa sempre olhar para o Senhor, aceitando e correspondendo ao
sorriso dele. A expectativa divina, diz Paulo em Filipenses, é de que
"todos os homens se salvem", que conheçam sua graça, a graça de que a
Escritura fala do Gênesis ao Apocalipse, de capa a capa, por assim dizer.
Se pudéssemos compactar a Bíblia, reduzindo-a a uma palavra,
possivelmente esta palavra seria graça, que bem poderia ser o sinônimo de
salvação, de amor, de perdão etc.
Voltando à metáfora do eclipse, é bom relembrar que têm sido
poucos os claros sinais da graça em nossas igrejas. Tem havido um eclipse,
porque a proclamação da graça tem sido parcial, em favor de uma iluminação
simplista, derivada do literalismo bíblico, de uma leitura jornalística,
comodista e apressada da Bíblia. As manifestações da graça deveriam ser bem
mais numerosas, deveriam "roubar a cena", mas permanecem à margem.
Recuperando o lugar da graça
Ao lidarmos com a consciência, seja a nossa, seja a de quem
nos procure para aconselhamento ou terapia, precisamos lembrar a importância do
caráter acolhedor, perdoador e curativo de Deus.
Certamente entre nós a graça está precisando de mais espaço,
nas pregações e na vivência da igreja. Na realidade ela precisa ocupar todo o
espaço que tivermos. Pelo menos, eu diria que ela precisa tomar de volta o
espaço que a culpa está ocupando. Só isso já faria uma enorme diferença na
qualidade da vida espiritual e comunitária. A graça não mata, a culpa, sim.
Lacan nos fala da culpa neurótica, o equivalente da falsa
culpa, de que Tournier fala. É a culpa farisaica, de cobrança, de ameaças. Esta
é facilmente fabricada e industrializada, porque ela é lançada sobre os
fundamentos da insegurança inerente ao ser humano em sua pecaminosidade.
Se o humano já é culpado pelo pecado original, o que mais se
lançar em cima pegará facilmente. É lamentável. Bastará um bom número de
versículos citados fora de contexto e, pronto. Eis uma legião de neurotizados.
Pergunto: Jesus faria um trabalho assim? Respondo de pronto:
nunca! Houve vezes em que até parou com os milagres para dizer mais claramente
as coisas da graça e do reino.
Na Oração Dominical Ele usou a palavra aramaica Abba,
palavra coloquial, caseira, íntima, da criança que chama o pai de "papai",
ou, ainda, "paizinho". Isso é a graça. E é disso que Tournier fala em
seus escritos. Isso produz saúde emocional e espiritual. Graça é essa
proximidade, essa liberdade com Deus.
No entanto, frequentemente a culpa está tão profundamente
enraizada na vida da pessoa, que essa liberdade toda não ocorre. Os esquemas
introjetados não o permitem. Mesmo quando a pessoa chega ao gabinete pastoral
toda alegre e falante, ao entrar a conversação nesta área de maior
profundidade, vem à tona aquela massa enorme de amargura, medo, condenação.
Outras vezes, para não permitir que tudo venha à tona, a pessoa racionaliza,
tenta explicar-se, criando um teatro, chegando mesmo, por vezes, a sofismar,
negar, mentir. É todo um mecanismo de defesa para não reviver sua culpa enterrada
na alma. Mas essa defesa não produz alívio. Só adia a graça, bloqueia a paz,
impede a saúde.
Assim, denunciamos que a graça está sendo ocultada,
eclipsada por mecanismos e manobras ativistas e de exercício de poder.
Mas, graças a Deus não é um eclipse total. Felizmente não
somos tão grandes nem tão poderosos, para bloquear totalmente a graça de Deus.
Ainda bem que ela é muito maior que nós.
"O verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de
graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do
Pai." (Jo 1.14.)
Quem quiser ver a graça, que leia o evangelho, começando por
Marcos, o mais resumido e prático. Leia focalizando Jesus andando pela
Palestina, lidando com as pessoas, falando com elas, curando-as.
Jesus nunca fez uma anamnese. Nunca perguntou a ninguém qual
tinha sido o seu pecado. Nem mesmo ao ladrão na cruz! Jesus não se interessa
pelo passado. Nós é que temos a mania de desenterrar coisas velhas. São as
nossas culpas que nos empurram para o passado, como se fôssemos caçadores de
alguma arca perdida, cheia de outras culpas ainda mais velhas. Criamos, então,
uma face única para Deus, a face da "santa severidade".
O colo de um pai e de uma mãe é um sinal de graça. A graça.
de Deus está presente nesse santo lugar, no abraço, no beijo e no cuidado
paterno-maternal. Colo de pai e mãe têm de ser sinal da graça divina.
Há meses pude participar de uma jornada sobre toxicologia e
farmacologia promovida pela Sociedade Hebraica de São Paulo. Na última sessão,
que durou umas seis horas, já depois da meia-noite o auditório pressionava os
dezesseis painelistas para uma palavra definida sobre a melhor orientação e
proteção aos filhos sobre tóxicos. Após muito tempo e muita fala, surgiu um
notável consenso de que a melhor saída era esta coisa tão simples, tão antiga e
que não custa um centavo, que é o colo, a atenção dos pais.
Ao invés deste colo, do diálogo, da presença, da atenção,
temos dado uma única face de Deus, a da severidade, a do castigo.
Acabamos fazendo como aquelas pessoas em Cafarnaum, que
ficaram à porta, impedindo o paralítico de entrar. A graça precisou ter muita
criatividade e entrar pelo teto, porque a desgraça bloqueava a porta.
São estas coisas que Tournier denuncia; esta "caça ao
pecado", como quando os discípulos perguntaram a Jesus, quanto ao
paralítico a quem o Senhor acabava de curar: "Senhor, quem pecou? Ele ou
os pais?".
Muitas respostas Jesus deu a este tipo de questão. Uma delas
é: "Não condeneis, e não sereis condenados; perdoai e sereis
perdoados" (Lc 6.37). E o versículo 38 ainda agrega: "Dai e
dar-se-vos-á; boa medida, recalcada, sacudida, transbordante, generosamente vos
darão; porque com a medida com que tiverdes medido vos medirão também".
Observemos como o terapeuta Lucas faz justiça ao contexto e à mensagem da
graça, que é o eixo-mestre de toda a pregação de Jesus. É dessas coisas que
fala Tournier amplamente no seu livro Culpa e Graça. É ler, e conferir. O
chamado aperfeiçoamento, ou aprimoramento da consciência, do modo como tem sido
feito, tende a produzir uma culpabilização cada vez maior.
A consciência devia ser um instrumento da graça e não da
culpa, um instrumento de salvação, não de condenação.
Com amor é possível
Ao ler tudo isso, alguém poderia me encostar na parede por
estar dizendo que agora "pode tudo", que "liberou geral",
coisas assim. Como se não bastasse toda a orientação de Jesus, vem-nos
Agostinho, saído das cinzas da história da Igreja, dizendo: "Dilige, et
quod vis, fac", ou seja: "Ama e faze o que quiseres". Como
entender esta frase? O próprio Agostinho explica que "tudo é permitido,
que o amor permite; tudo é proibido, que o amor proíbe". Vemos que o amor
é o verdadeiro e melhor controle que existe. Não a lei pela lei.
Onde teria ele aprendido isto? Foi em 2 Coríntios 5.14, onde
Paulo diz que "o amor de Cristo nos constrange", isto é, nos dirige,
nos ensina, nos persuade.
Foi também em Lucas 18, na parábola do fariseu e do
publicano. Foi ainda no Salmo 103, onde se lê que "ele perdoa todas as tuas
iniquidades". E em Miqueias 7: "Quem, ó Deus, é semelhante a ti, que
perdoas a iniquidade, e te esqueces da transgressão do restante da tua herança?
O Senhor não retém a sua ira para sempre, porque tem prazer na misericórdia.
Tornará a ter compaixão de nós; pisará aos pés as nossas iniquidades, e lançará
todos os nossos pecados nas profundezas do mar" (v. 18-19).
Foi em Isaías 40: "Consolai, consolai o meu povo, diz o
vosso Deus. Falai ao coração de Jerusalém, bradai-lhe que já é findo o tempo da
sua milícia, que a sua iniquidade está perdoada ..." (v. 1-2). Aprendeu em
Efésios 1, em 1 João 4: "Nós amamos porque Ele nos amou primeiro" (v.
19).
E vamos por aí. Não mais "decisões por Cristo"
pela mobilização de culpas, e sim, pelo chamado irresistível da graça,
relembrando que Jesus nunca disse: "Vinde, eu vos condenarei", e sim,
"... eu vos aliviarei". Tournier foi um "terapeuta do
alívio", um imitador de Jesus. E nós?
Notas
1. ELLENS, J. Harold Graça de Deus e saúde humana. São
Leopoldo/São Paulo: Sinodal/Nascente, 1980.
2. Psicoteologia; aspectos básicos. São Leopoldo/São Paulo,
Sinodal/ CPPC, 1986.
3. PHILLIPS, John B. O seu Deus é pequeno demais. São Paulo:
Mundo Cristão, 1989.
4. TOURNIER, Paul. Culpa e graça. São Paulo: ABU Editora,
1985.
5. The
meaning of persons. Nova York: Harper & Row, 1957.
José Cássio Martins (1936-2021), foi pastor, psicólogo,
professor de psicologia pastoral e membro do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras
Cristãos.
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