Texto imperdível, para nossa reflexão.
*Gilmar, Incitatus, a toga e o silêncio*
Quando o cavalo Incitatus foi nomeado cônsul por Calígula, o
Senado se calou.
Quando o juiz moderno decide que apenas uma mão pode tocar
nos intocáveis, o povo se cala.
Não era um ato de humor, tampouco de loucura aleatória. Era
gesto de poder. Era o triunfo da vontade imperial sobre a razão pública.
Ao colocar Incitatus, seu cavalo, entre os homens mais
ilustres de Roma, Calígula não desprezava apenas o Senado: desafiava o próprio
conceito de responsabilidade. Um cavalo, afinal, não vota, não discute, não
critica. E era precisamente disso que o imperador precisava: silêncio submisso
sob o disfarce da legalidade.
Séculos depois, sem cascos nem relinchos, a cena se repete:
não no mármore do Fórum, mas sob as colunas modernas de outro templo, o do
poder supremo. Um homem togado, com voz rouca e pena rápida, determina,
sozinho, que somente uma figura específica pode pedir o julgamento daqueles que
vestem a mesma toga que ele.
“Sim, eu determino que somente fulano pode me julgar,
segundo os critérios que eu mesmo dito.”
Pobre Brasil, essa Zumbilândia.
Não se nomeia um cavalo. Mas se consagra o silêncio. E se
transforma o contraditório em ameaça.
Na democracia, dizem os homens prudentes, é necessário que o
poder seja vigiado, não por desconfiança pessoal, mas por reconhecimento da
natureza humana, sempre inclinada à expansão de seus próprios limites.
Roma o soube tarde demais.
E o mundo grego, que amava a palavra livre, jamais cessou de
advertir: quando a cidade se curva ao oráculo de um só, a justiça se converte
em oráculo, não em lei.
Sócrates, em sua defesa perante os juízes de Atenas, não
rogou por piedade. Pediu apenas que a cidade continuasse amando o exame, o
logos, e não as sombras da autoridade. Foi, contudo, condenado.
Seu erro? Ter exigido que os detentores do poder
justificassem suas verdades. Ter sugerido que a justiça não nasce da posição,
mas da razão.
O que se vê, então, no gesto moderno de limitar quem pode
questionar os deuses togados, é a mesma inquietante tentação do império:
preservar-se não pela virtude, mas pela blindagem. Os sacerdotes da justiça
passam a escrever seus próprios cânticos e proíbem outros de interpretá-los.
A tragédia não é nova. O brasileiro médio é trouxa por
natureza...
Édipo, quando cegou a si mesmo, não o fez por ter visto
demais, mas por não ter querido ver antes. A polis, quando se entrega ao
encantamento do poder absoluto, prefere a cegueira voluntária à luz perturbadora
da crítica. E aquele que ousa perguntar (como perguntava Antígona, como
indagava Diógenes) torna-se ameaça à ordem estabelecida.
Mas que ordem é essa que não suporta ser interrogada?
A verdadeira ordem política não teme a palavra, pois sabe que
sua força reside na aletheia, na desocultação.
A falsa ordem, ao contrário, refugia-se na autoridade
inquestionável e transforma a lei em escudo; não da justiça, mas de si mesma.
Assim, quando o cavalo foi nomeado cônsul, o Senado se
calou.
Quando o juiz moderno decide que apenas uma mão pode tocar
nos intocáveis, o povo se cala. E o silêncio, mais uma vez, não é paz, é aviso.
*Estamos avisados...*
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