J. R.
GUZZO- 30 ago 2024
“Marçal e os outros”
“Seja qual for o resultado da eleição municipal de São
Paulo, o tapa na cara da política brasileira já está dado”
“Esqueça por um instante quem é Pablo Marçal, quais são os
motivos de sua briga com Jair Bolsonaro & Família e o que ele tem a ver com
o governo, o centrão, as oposições, o STF e o resto do elenco. Esqueça quais
são as suas credenciais, ou a ausência delas — mesmo porque até pouco tempo
atrás muita gente, e provavelmente você mesmo, nunca tinha ouvido falar dele.
Esqueça até o seu currículo, ou se ele é bom, médio, ruim, péssimo, ou nenhuma
dessas coisas.
O que de fato interessa, e praticamente não se discute, é o
seguinte: como e por que um cidadão que até três meses não existia no mundo
político do Brasil, nunca teve um cargo público na vida, não está num partido
de verdade e não conta com um único minuto no programa eleitoral na televisão
tornou-se o candidato mais falado à prefeitura da maior, mais rica e mais
importante cidade do Brasil.
Pablo Marçal, por tudo que ensina a sabedoria concentrada
dos analistas políticos brasileiros, não deveria existir. Mas existe.
A Revista Oeste, que a cada semana faz um esforço danado
para manter os seus leitores a par do que acontece na vida política, chegou à
sua edição 231 sem publicar uma única matéria sobre Marçal.
Saiu alguma coisa no noticiário recente do site — mas antes
disso, para falar francamente, nada.
As classes que se acreditam civilizadas nunca tiveram a
menor ideia de quem ele fosse.
Em Brasília, no arco que vai dos Liras aos Pachecos, dos
gatos gordos dos 37 ministérios de Lula aos gatos gordos do alto Judiciário,
Marçal era um triplo zero até agora.
A mídia também não sabia da sua existência — e quando soube,
semanas atrás, entrou imediatamente num acesso histérico de denúncias contra
ele. O fato, em suma, é que ninguém viu nada.
É chato, mas é isso. Marçal, que não era nada, é hoje um dos
três candidatos mais cotados nas pesquisas para ganhar a eleição de prefeito em
São Paulo.
Pode até já estar em primeiro lugar na disputa — e daqui à
eleição, apanhando dos adversários e da mídia do jeito que apanha, tem tempo
para crescer mais ainda.
Deveria ser o contrário. Com o fogo inimigo que tem tomado
por causa do que fez no passado, faz no presente e pode fazer no futuro, era
para estar morto e enterrado.
Mas, quanto piores são as acusações, quanto mais os outros
se juntam para atirar nele e quanto pior fica a sua fama, mais ele cresce.
Eis aí, justamente, um dos problemas mais enjoados com
Marçal: seus eleitores, até agora, estão pouco se lixando para o que falam
dele. Há acusações de convívio com PCC, fraude bancária na sua juventude,
condenações penais prescritas, o diabo. Não adianta nada — em vez de descer,
ele sobe.
O que mais chama atenção nisso tudo é um fato inaceitável
perante as doutrinas, as convicções e o mindset de todos os que acreditam
entender de política: um número grande demais de eleitores paulistanos quer
votar num candidato como Pablo Marçal.
Há anos o mundo político constrói castelos com suas
candidaturas e “engenharias políticas” para ganhar a prefeitura da capital
econômica do Brasil.
Os jornalistas especializados, e os especialistas ouvidos
pelos jornalistas, fazem análises.
As mesas redondas explicam por A + B que está acontecendo
isso e aquilo.
Mas não contavam, nenhum deles, com as curvas da vida real
do Brasil de hoje — há muito mais gente querendo ver Marçal como prefeito de
São Paulo do que interessada em ouvir os jornalistas, e especialistas, e
analistas.
O resultado é que o mundo das ideias permitidas, esse mesmo
que passa a vida dizendo que não há solução fora da experiência, do jogo de
cintura e da sabedoria final dos “políticos”, começa a entrar num estado de
pré-pânico.
A Justiça Eleitoral, por exemplo, já começou a ser Justiça
Eleitoral. Pablo Marçal, até outro dia, tinha 13 milhões de seguidores no
Instagram — o mesmo que Lula, que é presidente da República e está na política
há mais de 40 anos.
É o tipo de coisa que deixa o ministro Alexandre de Moraes
fora de si, caso o dono dessa fortuna digital não seja de “esquerda” — e Marçal
é o oposto disso.
Pior ainda, sabe usar suas redes melhor que os adversários.
O TRE de São Paulo, naturalmente, já bloqueou os seus perfis, por “abuso de
poder econômico” na turbinagem da sua audiência.
Não está claro quanto isso vai ser útil para os propósitos
do TRE e dos adversários moderados-centristas-equilibrados de Marçal.
Em quatro dias, conseguiu atrair mais de 3 milhões de fãs
para os novos perfis que criou — e é rede social que conta para ele, não
horário eleitoral na televisão.
Vai ser preciso derrubar seus perfis de novo, para impedir
que Marçal se comunique com a massa até a eleição — ou cassar o registro da
candidatura, para resolver o problema logo de uma vez.
É a jurisprudência do “perigo de gol” em vigor hoje em dia
no sistema judiciário do Brasil.
Esse ou aquele candidato ameaça ganhar a eleição? Então ele
fica proibido de concorrer.
Vira “inelegível”, como os candidatos da oposição na Justiça
da Venezuela — e um certo candidato no Brasil.
Marçal com certeza está a perigo. Insulta os adversários,
faz acusações sem prova, chama para a briga e chuta o balde em geral, numa
espécie de programa de auditório do tipo “vale-tudo”.
Outros também fazem isso. Mas o TRE está atrás de Marçal,
não dos outros.
Seja qual for o resultado da eleição municipal de São Paulo,
o tapa na cara da política brasileira já está dado.
Enquanto os demais candidatos e seus padroeiros olham para
Marçal e gritam “perigo”, um número cada vez maior de eleitores responde: “O
perigo são vocês”.
Alguma coisa está profundamente errada, sem dúvida, quando
um estreante na vida pública, sem exibir qualquer programa coerente para
qualquer das questões vitais de uma cidade com 12 milhões de habitantes e PIB
por volta de R$ 1 trilhão, chega aonde ele chegou.
O recado do paulistano, aí, pode ser perturbador: “E os
programas de vocês todos, candidatos da boa ordem — valem o quê? Quando valeram
alguma coisa?” O eleitor de São Paulo parece ter uma percepção e uma certeza. A
percepção é que a cidade está um lixo. A certeza é que não foi Marçal que criou
esse lixo. Por que, então, ele seria pior que os outros?
O fato é que a candidatura de Pablo Marçal expõe, mais uma
vez, toda a fragilidade da geringonça amarrada com barbante que é o mundo
político no Brasil.
Isso aqui, segundo o STF e outros tantos, é uma democracia —
mas não pode funcionar como democracia, pois nesse caso o povo vai votar em
quem quiser nas eleições.
E se o povo quiser um candidato como Marçal? Já quis votar
em Jair Bolsonaro, seis anos atrás, e o “problema Bolsonaro” continua até hoje.
Ele já governou, já saiu do governo, está proibido de se candidatar até 2030,
tem processo até por cartão de vacina — e a coisa não resolve.
Acabou se transformando na prioridade política mais
neurótica que um governo brasileiro já teve na História recente.
Não é só o governo. O STF, o MP, a esquerda, a “sociedade
civil”, a mídia e todas as esquadras do “processo civilizatório” têm a ideia
fixa de que o país tem de liquidar Bolsonaro e o “bolsonarismo” para
sobreviver. E o que adiantou?
Bolsonaro ainda nem saiu, tanto que a guerra contra ele
continua a toda, e um Pablo Marçal já entrou. Ele e o ex-presidente são figuras
diferentes, em situações diferentes e com perspectivas diferentes; é muito
possível que depois das eleições o pesadelo da hora para o Brasil tido por si
mesmo como “progressista” suma da área e volte a cuidar da própria vida.
Mas são duas partes da mesma carta de baralho. Pode ser um,
pode ser outro e pode ser um terceiro, ou um quarto, e assim por diante.
Não existe, na verdade, um “bolsonarismo” e muito menos um
“marçalismo”, com ideário, programas e estatutos.
O que existe, e não irá embora, é a aversão fundamental a
Lula, PT, STF, invasão de terra, ameaça à propriedade, crime imposto, governo,
vadiagem, Brasília. É o que se chama hoje de direita — na verdade, o Brasil que
é contra isso tudo.
O eleitor que vive neste Brasil não quer nada do que a
esquerda, os intelectuais e os trapaceiros da vida política têm a oferecer.
Não quer os programas sociais de Lula — quer um carro novo.
Não está interessado nas esmolas do Bolsa Família, nem nas
bugigangas que o centrão distribui para comprar voto.
Quer prosperidade material, e não ideias.
Quer mais dinheiro no bolso, quanto mais melhor, mais
trabalho e uma vida mais cômoda.
Não gosta de bandido, de drogas e de promiscuidade.
Gosta de Deus, pátria e família.
Pensa mais nos seus interesses do que nas teses que ouve.
Prefere ser solidário com quem conhece a dar dinheiro para o
governo fazer o bem.
Não acha uma coisinha sem importância quando lhe roubam o
celular, a moto e o cartão do banco.
Acha que personagens como Marçal vão resolver esses
problemas? Não vem realmente ao caso. O que não acredita é que os outros
resolvam.
Pablo Marçal não é um acidente. Ao contrário, é o resultado
inevitável da falência generalizada da política brasileira.
Se a cidade de São Paulo chegou a uma situação em que Marçal
passa a ser um risco, vale a pena pensar um pouco no seguinte: por que tanta
gente está achando que os seus adversários são um risco ainda maior?
A realidade mostra que o candidato improvável foi criado
pela cumplicidade dos políticos com a cracolândia, a expropriação do espaço
público em favor da minoria que mora na rua e a nulidade quase absoluta de uma
administração municipal atrás da outra.
É fruto de uma mídia que trata os criminosos como vítimas
sociais, de uma Justiça que solta traficantes de droga e lhes devolve os iates
e da constatação de que o Brasil, um dos países mais corruptos do mundo, não
tem um único corrupto na cadeia.
“Mais que tudo, é o retrato de um país que está exausto.”
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