SÍNTESE
DO ARTIGO PUBLICADO NO GOOGLE.
Por
inúmeros caminhos a analogia entre “comer” e “sexo” chegou aos tempos atuais,
onde pesquisadores apontam na gíria do verbo comer sua conotação sexual.
Esse
sentido “chulo” do verbo comer é encontrado na literatura brasileira desde os
anos 20, ainda que, os arawetés somente tenham entrado em contrato com a
civilização nos anos 70 e por esta razão, considera-se que outras
populações indígenas também utilizavam a conotação sexual de comer com o sexo
que terminaram por influenciar a cultura nacional. Essa conotação não
existe apenas na língua portuguesa, mas também em espanhol, havendo referências
para seu uso no México em função de sua população indígena.
Quer
dizer, aquilo que Bataille identifica com animalidade, “aquele que come outro”,
adquire um novo sentido quando buscamos o significado simbólico que as
situações de estupro encarnam. Aqui, o estupro é entendido como o retorno do
recalcado, retorno da animalidade em estado puro: estuprar é
“comer” (sic) alguém a força e isto é também o retorno do feitio canibal
do festim diabólico. Esse é, segundo Baudrillard, o problema do simbólico, do
religioso, ele nunca desaparece, sempre retorna sob outras formas. Se o ato
amoroso tem a ver com a vida, se a prática consensual do sexo tem relação com a
alegria, o estupro é seu contrário.
Negação da humanidade
O ponto
de vista que Bataille sugere é que toda vez que um animal come outro ele nega
sua transcendência ”animais de uma determinada espécie não comem uns aos
outros…” afirma o autor. Exceto o homem porque ele é capaz de estupro é
o que queremos sugerir. Mas a interpretação do estupro como retorno de nossa
animalidade é ainda mais difícil a partir de Bataille, já que o autor
reconhece que quando nos distinguimos do objeto podemos nos identificar
ao humano ”a rigor, o animal pode ser visto como um sujeito para o qual o
resto do mundo é objeto, mas nunca lhe é dada a possibilidade de ver a si mesmo
assim.
Elementos
dessa situação podem ser apreendidos pela inteligência humana, mas o animal não
pode realiza-los”(p. 24). Não é essa exatamente a posição do estuprador,
ele não consegue sequer ver o Outro porque não pode reconhecer a ihumanidade do
ato que pratica?
Só isso
pode explicar porque os estupradores da jovem de 17 anos colocaram as imagens
na internet, e o ponto é importante porque, se o estuprador é um animal,
isto é, um ser humano que permitiu que seus institutos animais guiassem sua
razão, significa que, na realidade, sequer a distinção entre sujeito e objeto
foi lhe posta porque ela simplesmente não existe na relação dos animais com sua
vítima “o animal (sic) que outro animal come ainda não está dado como objeto”,
diz Bataille.
A razão,
afirma o autor de “A experiência interior”, dá-se porque “ na medida em
que somos humanos [é] que o objeto existe no tempo em que sua duração é
apreensível”. O estuprador não é um homem decaído em sua moral, é um homem
decaído em sua ontologia, em sua natureza de ser humano, que
permite o retorno de sua animalidade recalcada. O estuprador é ihumano
(Lyotard).
Atentar à humanidade
O ponto é
compreender o inteiro significado que atribuímos ao estupro como retorno da
animalidade. É essa total falta de consciência da existência do Outro que faz
do estuprador um animal, ele afirmar que ele é incapaz de considerar a mulher
como sujeito significa que o estuprador está no limite da consciência do ser, o
que não deve servir para desresponsabiliza-lo, ao contrário, deve servir para entender
o significado das maneiras como falamos dele. Ou antes, a maneira correta de
falar de um estuprador não é falar juridicamente, que atentou a Lei, aos
regulamentos, etc, etc, mas que atentou à humanidade, aquilo que nos faz
humanos.
É só
nesse sentido que o ato do estupro é um ato negador da política: o salto
interpretativo se faz na medida em que o ser humano se faz humano pela
capacidade de reconhecer e negociar com outro – exatamente como se faz no
relacionamento amoroso –, centro do campo social. Para o estuprador,
sequer esse horizonte é vislumbrado porque nele tudo é animal, o estupro
é sua forma violenta de “comer” (sic) o outro, exatamente porque em nossa
cultura associamos o sexo ao “comer”. Talvez a verdadeira luta das
mulheres esteja na ressignificação desses termos, de que de agora em
diante, possamos educar as gerações sem a identidade entre “comer” e “sexo”.
Manifestação
de mulheres contra o machismo e a cultura do estupro na Avenida Paulista. |
Créditos: Rovena Rosa/Agência Brasil
Um estuprador não é o extremo, é a redução
O estupro
é uma ação animal porque reduz a imanência, “humanidade”, à imediatez dos
sentidos. O mundo do estuprador – além de ilegal, é claro, contrariando a Lei,
os direitos, etc, etc – é um mundo fechado onde seu sujeito é incapaz de
alcançar a transcendência. O estuprador não leva ao extremo o que pode fazer um
ser humano, ao contrário, ele é prova da redução de homens ao estado de animais
”inevitavelmente, diante de nossos olhos, o animal está no mundo como a água
está na água”.
Quer
dizer, com a civilização e a Lei, imaginávamos que havíamos superado o animal
que existe no homem, mas ele está a espreita: “O animal tem diferentes condutas
de acordo com as diferentes situações”, diz. Neste ponto, Bataille abre a
perspectiva para entender o estupro não apenas como uma violência animal que
emerge contra a razão, mas como uma expressão radical das formas de violência
sobre a subjetividade.
Não é o
que percebemos em determinadas situações de violência, como o bullyng, o
assédio moral, essas violências cotidianas, comezinhas, de homens contra homens
e contra mulheres, elas não são sentidas pelas vitimas exatamente da
mesma forma, como estupro? A forma limite da violência simbólica não está assumindo
a forma-estupro? ”Não podemos dizer de um lobo que come outro que ele
esteja violando a lei que afirma que, normalmente, os lobos não comem uns aos
outros. Ele não viola essa lei, simplesmente ele se encontrou em circunstâncias
nas quais ela não vigora mais” (p.27).
Nesse
sentido, o estuprador é o pior ser humano porque ele é incapaz de reconhecer o
Outro – o que exige o Tempo – e portanto, é incapaz de reconhecer a
morte “O animal perdeu a dignidade de semelhante do homem, e o
homem, percebendo em si mesmo a animalidade, vê-a como uma tara…comer (sic) o
homem é abominável”(p.36).
Para
Bataille, o que nos define como humanos está na relação que estabelecemos com o
corpo do Outro. Por esta razão, mesmo o estudo da anatomia foi por muitos anos
algo escandaloso. E o que mais mexeu com nossos fantasmas talvez tenha sido Salò
ou 120 dias de Sodoma, onde a atitude humana para com o corpo era
aterradora “A glória do corpo humano [é] ser o substrato de um espírito”, diz
Bataille. No estupro, o homem revela a completa redução ao estado animal, e
esse sentido não é porque se trata de um ato violento apenas, o que é,
mas que se trata de um ato redutor de sua humanidade e aniquilamento de seu
espírito.
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