quinta-feira, 16 de março de 2023

A MORTE DA RAZÃO...

 

  A Morte da Razão – Por Davi Lago



A obra A Morte da Razão foi publicada originalmente em 1968 com o título Escape from Reason: A Penetrating Analysis of Trends in Modern Thought (Londres: Intervarsity Press). Naquele momento, Francis Schaeffer tinha 56 anos de idade e havia acumulado muito tempo de leitura, estudo, cuidado pastoral e prática dialogal com cristãos e não cristãos1. Especialmente desde a fundação da L’Abri, na Suíça, em 1955, Francis e sua esposa Edith dedicaram-se a desenvolver uma comunicação inteligível do evangelho para os jovens arredios às igrejas cristãs ou, como diziam, dedicaram-se a “apresentar respostas honestas para perguntas honestas”2. Neste contexto, Schaeffer apresenta em A Morte da Razão sua interpretação de como as ideias modernas se desenvolveram ao ponto de levar a cultura de seu tempo à confusa e contraditória visão da autonomia humana. O objetivo de tal empreitada é explicitado pelo próprio Schaeffer na introdução: “para que consigamos comunicar a fé cristã de modo eficiente [...] temos que conhecer e entender as formas de pensamento da nossa geração”.

Alguns pontos são importantes para a compreensão de A Morte da Razão. Primeiro, o livro integra a chamada “trilogia clássica” que sintetiza o pensamento de Schaeffer3. A Morte da Razão seria a primeira publicação, mas por causa da greve dos hidroviários da St. Lawrence Seaway, a gráfica responsável atrasou a impressão, então, outro texto de Schaeffer acabou sendo publicado primeiro: O Deus que Intervém (no original, The God Who Is There). Assim, em 1968, foram publicadas duas obras schafferianas4. Em O Deus que Intervém, a tese central de Schaeffer é que o “homem moderno” é caracterizado por sua disposição em viver uma vida de contradições; em A Morte da Razão, Schaeffer mostra como se chegou a esta condição e dá pistas do que pode ser feito para sair dela. Posteriormente, em 1972, Schaeffer fechou a trilogia com a publicação de O Deus que se Revela (He Is There and He Is Not Silent), onde examina e critica a teoria moderna do conhecimento. Deste modo, o texto de A morte da razão é habitualmente lido em diálogo com estes outros dois livros.

Em segundo lugar, é importante considerar o contexto político e cultural dos anos 1960: a marcha pelos direitos civis liderada por Martin Luther King Jr., o sucesso de The Beatles e Rolling Stones, a música de protesto de Bob Dylan, o rock psicodélico de Janis Joplin, os hippies, o movimento feminista, a criação da minissaia, o cinema de Jean-Luc Godard, golpes militares em países do sul global, a corrida espacial e, evidentemente, a tensão político-militar entre as duas superpotências da Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética. Além disto, frise-se que as igrejas protestantes e católicas estavam completamente desmoralizadas na arena pública desde o fim da Segunda Guerra Mundial. É crucial ter este quadro em mente, afinal, o que Schaeffer propõe em A morte da razão é justamente uma análise das tendências do pensamento moderno até o cenário em que estava, isto é, a transição dos anos 1960 para os anos 1970. Ele escreve “de ocidental para ocidental”. Vale lembrar ainda que várias pessoas citadas por Schaeffer estavam vivas e atuantes quando o livro foi publicado como, por exemplo, Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Michel Foucault (1926-1984). Schaeffer trava um debate direto com seus contemporâneos.

Em terceiro lugar, A Morte da Razão não é uma obra acadêmica, mas ensaística. O ensaio é um gênero sinuoso, que remonta a Montaigne, e é caracterizado por ser uma conversa inteligente e solta, espontânea, livre, onde o autor examina qualquer tema com uma perspectiva própria. Assim, o texto de Schaeffer é muito mais um ensaio, uma conversa, do que propriamente um texto com rigor científico. Por exemplo, do ponto de vista acadêmico, Schaeffer faz algumas interpretações muito tênues de autores densos e nuançados como Aquino, Hegel e Kierkegaard5. Além disso, às vezes estabelece certas conexões apressadas entre diferentes campos do saber, pode soar reducionista na análise de obras de arte, e não faz uso técnico de conceitos e concepções filosóficas como “racionalidade” e “verdade”.

Por outro lado, Schaeffer apresenta observações muito perspicazes sobre uma gama impressionante de temas, antecipando muitas discussões contemporâneas. Por exemplo, a crítica de Schaeffer à compartimentalização do saber na educação foi abordada nas décadas seguintes por filósofos como Edgar Morin6 e Martha Nussbaum7; a leitura de Schaeffer do projeto de autonomia moderna encontra eco nas releituras acadêmicas mais recentes, como a de Tzevetan Todorov8; a constatação de Schaeffer de que a indústria do entretenimento mainstream abandonou o viés cristão, antecipa em décadas a constatação do filósofo Peter Sloderdijk sobre o mesmo assunto9.

Deste modo, a leitura de A Morte da Razão continua indispensável para cristãos que desejam desenvolver uma comunicação inteligente do evangelho aos seus contemporâneos10. Schaeffer sabe oferecer exemplos práticos, ilustrar suas opiniões com anedotas interessantes e estabelecer pontes comunicativas através das artes plásticas, teatro, música pop, esportes, política, ciência. A Morte da Razão contém algumas das páginas mais impactantes escritas por um autor evangélico no século 20. Schaeffer é um mestre atemporal para todo aquele que deseja comunicar as verdades do evangelho de modo compreensível à sua própria geração, falando a verdade em amor.

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