Dimas,
o 'bom ladrão' que virou o primeiro santo do cristianismo 2ª.Parte
Saber
quem de fato foi Dimas e se ele existiu mesmo envolve cruzar informações de
duas fontes: de um lado, os textos apócrifos que falam um pouco sobre ele —
considerando, é claro, que neles é difícil saber onde acabam os fatos e começam
os mitos; de outro, o que se sabe sobre a prática da crucificação na Roma
antiga.
Nominalmente,
ele não é citado em nenhum dos quatro evangelhos canônicos — Mateus, Marcos,
Lucas e João, os que constam da Bíblia.
Mas na
passagem que descreve a morte de Jesus, os quatro evangelistas mencionam que,
naquele dia, três pessoas foram crucificadas lado a lado.
João é
o mais lacônico sobre isso. Ao nominar o local da execução, o lugar chamado
Gólgota, ele afirma que "foi lá que eles o crucificaram juntamente com
dois outros, um de cada lado e Jesus no meio". E nada é dito sobre os
outros dois.
Mateus
e Marcos são praticamente idênticos nessa passagem. Afirmam que Jesus foi
crucificado com "dois bandidos, um à direita, outro à esquerda".
Em
ambos, o trecho prossegue citando que o povo e as autoridades passaram a
insultar Jesus. E termina ressaltando que “até os bandidos crucificados com ele
o injuriavam da mesma forma”.
O
evangelho de Lucas é o que traz a descrição mais curiosa sobre a interação que
Jesus teria tido com os outros dois condenados.
Após
enfatizar que o protagonista da história havia sido crucificado no centro,
entre "dois malfeitores", o evangelista também cita as zombarias da
população e até de soldados.
Mas
prossegue a narração incluindo os outros dois crucificados.
"Um
dos malfeitores crucificados o insultava: 'Não és tu o Messias? Salva-te a ti
mesmo e a nós também!' Mas o outro o repreendeu, dizendo: 'Tu nem sequer tens o
temor de Deus, tu que sofres a mesma pena! Para nós, é justo: nós recebemos o
que os nossos atos mereceram; mas ele não fez nada de mal'", diz o trecho.
"E
dizia: 'Jesus, lembra-te de mim quando vieres como rei'. Jesus lhe respondeu:
'Em verdade eu te digo, hoje estarás comigo no paraíso'", complementa a
passagem do evangelho de João.
Para a
tradição cristã, este criminoso acabou sendo classificado como "o bom
ladrão".
E tanto
a tradição como pesquisas em alguns evangelhos apócrifos chegaram ao nome de
Dimas como sendo a identidade deste cidadão.
O
Martirológio Romano, o catálogo dos santos considerados oficiais pelo Vaticano,
registra-o como o "santo ladrão, chamado Dimas, segundo a tradição".
E o define como aquele "que na cruz professou a fé em Cristo e mereceu ouvir
dele estas palavras: 'Hoje estarás comigo no paraíso'".
Canonizado
pelo próprio Jesus
"A
tradição o faz padroeiro dos prisioneiros, condenados e ladrões
arrependidos", conta à BBC News Brasil o pesquisador José Luís Lira,
fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade
Estadual Vale do Acaraú, no Ceará.
Para
religiosos e estudiosos de hagiologias, ele foi o primeiro santo da história.
"É
interessante comparar um processo de canonização com a sagração de São
Dimas", comenta o pesquisador Thiago Maerki, associado da Hagiography
Society, dos Estados Unidos.
"Porque
ele foi declarado santo pelo próprio Cristo, foi Cristo quem o canonizou.
Seguindo essa linha eclesiológica, embora não tenha sido uma canonização nos
moldes convencionais, sua sagração seria de causar inveja a qualquer santo, a
qualquer cristão", acrescenta ele.
"Mesmo
sendo a inveja um sentimento não aceitável para um cristão, estou falando só de
brincadeira. Mas ser declarado pelo próprio Jesus é uma coisa única. E São
Dimas recebeu isso."
Lira
concorda que "a pessoa representada no nome de Dimas" deve ser
considerada o primeiro santo da história.
"É
o bom ladrão. Uma das testemunhas do sacrifício maior de Jesus, a
crucificação", diz.
"Ele
pediu a Jesus que se lembrasse dele quando estivesse no paraíso e Jesus
confirmou que ainda naquele dia ele estaria 'comigo no paraíso'. Podemos dizer
que o próprio Cristo o canonizou, o elegeu, levando-o consigo ao seu
reino."
Saber
quem de fato foi Dimas e se ele existiu mesmo envolve cruzar informações de
duas fontes: de um lado, os textos apócrifos que falam um pouco sobre ele —
considerando, é claro, que neles é difícil saber onde acabam os fatos e começam
os mitos; de outro, o que se sabe sobre a prática da crucificação na Roma
antiga.
Nos
apócrifo
"Os
evangelhos canônicos não registram seu nome. Somente a tradição e os apócrifos
e, a partir dos apócrifos tem muitas histórias sobre ele, mas carecem de
comprovação", ressalva Lira.
"Ele
não foi discípulo nem apóstolo de Jesus, contudo, na hora áurea em que Jesus
disse 'tudo está consumado', ele estava ali bem próximo e, ao contrário do
outro crucificado que pedia a Jesus para livrar-lhe da morte, ele pediu a
salvação, diríamos, a melhor parte, no que foi atendido pelo próprio Deus
filho, de imediato."
Considerando
os quatro evangelhos canônicos, é curioso o fato de que a menção aos dois
ladrões não é equivalente.
"Em
Marcos e em Mateus, dois criminosos foram crucificados com Jesus e ambos o
ultrajaram e o insultaram. Diferentemente daquilo narrado em Lucas, em que um
deles [o que seria Dimas] o defendeu", compara Maerki.
"Já
João fala sobre duas pessoas que foram crucificadas com Jesus, mas não faz
qualquer menção aos insultos."
O mais
antigo registro de que se tem conhecimento do nome do bom ladrão remonta ao
século IV. Está no Evangelho de Nicodemos. Ali são apresentados Dimas e também
o mau ladrão, Gestas.
"Na
verdade, nesse texto ele é chamado de Disma", atenta Maerki, ressaltando
que outras tradições cristãs conferem a ele outros nomes, como Demas, para os
coptas, e Rakh, para os ortodoxos russos.
Nesse
evangelho, há inclusive menções aos crimes cometidos por ele.
"Diz-se
que ele era originário da Galileia e que lá era dono de uma pousada",
complementa o pesquisador.
"Ele
atacava os ricos, mas se preocupava com os pobres, favorecia os pobres, seria
uma espécie de Robin Hood cristão."
"No
chamado Evangelho Árabe da Infância de Jesus ele é Tito e o outro ladrão,
Dímaco", conta Maerki, citando o texto apócrifo do século 6.
Neste
documento, aliás, está a mais curiosa narrativa incluindo os dois companheiros
de execução de Jesus.
"Ele
[o evangelho] diz que Tito e Dímaco, juntamente a outros ladrões do seu bando,
teriam tentado roubar Maria e José [os pais de Jesus], durante a fuga para o
Egito [episódio ocorrido logo após que Jesus nasceu, segundo o evangelho de
Mateus], mas Tito impediu que isso acontecesse, o que configuraria um prenúncio
de que ele era um homem que se tornaria santo", conta o pesquisador.
Segundo
a narrativa, o então bebê Jesus teria visto os bandidos e profetizado que, 30
anos mais tarde, os três morreriam juntos, condenados à execução na cruz.
Maerki
enfatiza que, conforme esse texto, Jesus teria dito que Tito o "precederia
no paraíso".
"Isso
é muito interessante", comenta ele.
Crucificação
É
preciso lembrar, contudo, que a crucificação de Jesus, seja ao lado de outros
dois considerados criminosos, seja em outra configuração, não foi uma exceção.
Era o modus operandi condenatório da Roma antiga.
"Crucificar
alguém era uma decisão do Estado", frisa à BBC News Brasil o historiador
André Leonardo Chevitarese, professor do Instituto de História da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de, entre outros livros, Jesus de
Nazaré: o que a história tem a dizer sobre ele.
Este
ponto é importante porque, segundo o pesquisador, promove uma leitura que
aceita a ideia de que Jesus tenha sido executado na companhia de outros dois.
"A
prática das crucificações culminou com a execução de 6 mil escravos ao longo da
Via Ápia. A média de crucificações na guerra judaico-romana era de 500 pessoas
por dia. Então, a ideia de três indivíduos crucificados simultaneamente não é
estranha, fazia parte da rotina", pondera.
O
pesquisador diz que, partindo dos relatos tanto dos evangelhos canônicos quanto
dos apócrifos, é possível entender que aqueles três condenados, inclusive
Jesus, eram na verdade "bons ladrões".
"Todos
foram crucificados sob o argumento de que eram 'bandidos sociais', ou seja, ao
estilo de Lampião e de tantos outros."
Para
Chevitarese, se há um problema histórico na menção aos outros dois condenados,
isto não reside no fato de haver ou não crucificações coletivas.
Mas sim
no ponto de que a menção ao número de três condenados só aparece em narrativas
da segunda metade do século I, ou seja, muito após a morte de Jesus.
"Paulo
[cujas cartas são os textos mais antigos, cronologicamente, do Novo
Testamento], que escreveu nos anos 50 [do primeiro século], não faz menção a
dois outros indivíduos crucificados com Jesus. Ele apenas diz que Jesus havia
sido crucificado", salienta o historiador.
Um trio
na cruz
"Não
estou dizendo que historicamente aquele fato se deu ou não, mas estou dizendo
que historicamente o Estado romano podia, sim, crucificar, um indivíduo, três
indivíduos, cinco ou dez ou 6 mil", comenta.
Mas
quando o olhar se detém minuciosamente nos textos sagrados há discrepâncias e
incongruências que botam em xeque a própria existência de São Dimas. "É
quando [a autoridade] Pilatos argumenta que faz parte da tradição romana
libertar um prisioneiro durante o dia de festa, à época de festa", atenta
Chevitarese, ressaltando que tal "costume" não encontra endosso em
outros documentos antigos.
Na
sequência dessa narrativa, são apresentados à multidão Jesus e outro condenado,
Barrabás, para que o escrutínio popular escolhesse qual dos dois deveria ser
executado e qual ganharia a absolvição. "Este é ponto de partida",
diz Chevitarese.
"Atente
para o fato de que só dois foram chamados para essa escolha, os outros dois
[supostamente mortos ao lado de Jesus] não foram chamados. Há, portanto, uma
incongruência."
A
figura de Barrabás, o bandido libertado depois da a popular, é ainda mais
difícil de ser confirmada.
"Nunca
encontramos qualquer vestígio ou indício de que era da tradição romana libertar
um prisioneiro em época de festa, em qualquer província romana", salienta.
"Se
existiam quatro prisioneiros, Jesus, Barrabás, Dimas e o outro bandido social,
por que eles todos não foram perfilados um ao lado do outro, de modo que o povo
pudesse escolher?", questiona o pesquisador.
"Talvez
porque nunca tenha existido de fato essa cena. Um crucificado indo parar diante
de alguém como Pilatos, uma autoridade como Pilatos perdendo tempo com esses
caras… Isso é pura ficção."
Para
Chevitarese, essa passagem "não tem nada de história", mas sim é
"um discurso antissemita, o momento em que se constrói a narrativa de que
de um lado está Jesus, de outro Barrabás, o povo judaico". "Nessa
passagem está a ideia de que os judeus mataram o próprio Deus. E daí para a
frente é só ladeira abaixo", argumenta.
Considerando
tudo isso, o historiador explica que, no âmbito das narrativas
neotestamentárias, “quando ocorre de se deparar com um personagem cuja menção
não traz sua história pregressa, tampouco sua história após do fato que
justifica sua inserção no texto, a probabilidade de ele ser um personagem
meramente literário é gigantesca".
PONTO DE VISTA:
https://youtu.be/o6qoBpoJ2nE
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