sexta-feira, 25 de agosto de 2023

REFLEXÃO...02

 

O Maravilhoso, o real e o horrendo na literatura infantil


Publicado originalmente em Catolicismo Nº40, em abril de 1954

 

As histórias, todos o sabem, são os primeiros contatos das crianças com a vida. Através delas a inteligência infantil transpõe os limites do ambiente doméstico, e aprende as noções iniciais sobre a sociedade humana, com as inúmeras diferenciações que comporta, as atrações que oferece, os deveres que impõe, as decepções que traz, e o jogo complicado das paixões nos altos e baixos desta grande luta que é a existência. “Militia est vita hominis super terram”, diz a Sagrada Escritura (Job 7,1). “Militia”, sim, em que uns lutam por seus interesses pessoais, legítimos e ilegítimos, e outros lutam contra o mundo, contra o demônio, contra a carne, para a maior glória de Deus. As primeiras noções sobre esta “militia”, as impressões mais fundas que o homem recebe relativamente aos aspectos essenciais dessa luta e à sua posição perante ela, recebe-as nos seus primeiros anos.

 

Daí haver importância essencial, para uma civilização católica, em proporcionar às crianças uma literatura profundamente e sadiamente religiosa. Não falamos apenas do curso de Catecismo e História Sagrada, que deve ser o centro de tudo, mas de histórias que fossem como que o comentário, o prolongamento, a aplicação do que a Religião ensina.

 

Isto é, em termos de boa doutrina, o normal. Quanto é evidente, porém, que a caudal da literatura infantil moderna está longe disto!

 

Nesta caudal inteiramente leiga – e só por isto má – há ainda distinções a fazer. Pois de há muito tempo o laicismo não é o único mal da literatura infantil de nossos dias.

 

Quando falamos da literatura infantil, incluímos evidentemente nesta designação genérica as ilustrações que ela comporta legitimamente, e de que se faz um uso muitas vezes exagerado.

 

Desejando tratar hoje da literatura infantil nesta secção, que não é de crítica literária, fazemo-lo analisando algumas dessas ilustrações.

 

Antes de tudo, uma composição de Walt Disney. É a Cinderela que vai com seu Príncipe rumo ao castelo encantado. É o maravilhoso na literatura infantil.

 

Haveria restrições a fazer. Em princípio, o que se oferece à criança deve tender a amadurecê-la, sob pena de não ser inteiramente são. Ora, nesta composição há certas simplicidades, deliciosas para olhos de adultos como interpretação delicada da fantasia infantil, mas não ajudam essa maturação. Alguma coisa no cocheiro, no lacaio, na estrutura do morro e dos edifícios dá idéia de coisa feita, não só para crianças, mas por crianças. E isto se nota, embora menos claramente, nos outros elementos da cena.

 

Mas, feita esta reserva, como não elogiar o gosto, a delicadeza, a variedade, desta composição? O maravilhoso, indispensável nos horizontes infantis como meio de apurar o senso artístico, elevar o espírito, abrir o descortínio, estimular sadiamente a imaginação, está aqui expresso com um tato e um gosto notáveis.

 

Passamos agora do maravilhoso para uma representação da vida quotidiana, com seus aspectos calmos, caseiros, simpáticos: outro elemento essencial nos horizontes da literatura infantil, para despertar a atração, o interesse, pela realidade e pela virtude.

 

Aqui está uma conhecida ilustração do Juca e Chico. No alto do telhado, os dois meninos das “sete travessuras” estão “pescando” as galinhas da Viúva Chaves.

 

Junto ao fogão, ladra assustado o fiel cãozinho. Em baixo, a viúva, entregue a afazeres domésticos, nada percebe. Os “dois meninos malcriados, estes dois endiabrados” que “põem toda a gente maluca”, representam com real expressão a traquinagem tão freqüente na vida caseira. Traquinagem tratada, aliás, no livro não sem uma exemplar severidade: “lede esta história e vereis a sorte dos dois”. Exceção feita dos traquinas – e talvez nem isto – tudo evoca a atmosfera feliz, calma, modicamente farta, da vida doméstica popular. Louçania de alma, temperança, largueza, bem estar sensato na própria mediania, tudo aí se exprime.

 

Vem depois a literatura malfazeja.

 

Apresentamos um exemplo entre mil. Murros, tiros, assaltos, agressões, vibração exagerada, narração melodramática, corre-corre, sangue, morte, “super-homens” que voam, que transpõem muralhas, que manipulam raios: toda uma sinistra e ridícula contextura de inverossimilhanças, de crueldades, de grosseiros artifícios de sensacionalismo. E isto não é uma história só: é todo um gênero “literário” que enche páginas inteiras de revistas, revistas inteiras avidamente seguidas pelas crianças.

 

Que horizontes assim se abrem para a infância? Os do crime. Que prazeres? Os da excitação nervosa tendente em certos casos quase ao delírio. Que ideais? Os da força bruta, e da vida de aventura sem eira nem beira.

 

Com isso não se forma um homem, e muito menos um cristão. O produto próprio desta literatura é o neobárbaro…

 

Plinio Corrêa de O


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