sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

REFLEXÃO...03

 

Lendo Gênesis na idade adulta// REFLEXÃO

 

Onde estava Deus antes de criar todas as coisas? O que Ele fazia? Adão, teria ele sido o primeiro homem? Aliás, o que significa Adão?

 

Por Antonio Carlos F. Cintra

 

O livro de Gênesis apresenta narrativas existenciais, a força motriz de toda a existência, a origem de tudo, a razão de nossa criação, o sentido da vida, a natureza humana, os conflitos, o caráter de Deus. Contudo, após o advento do Iluminismo, sua forma narrativa foi posta em descrédito pela linguagem científica que passou a dominar o caminho de investigação da verdade. Gênesis passou a ser visto como um conto infantil na medida em que, por certo, não faz uso de uma linguagem científica.

 

A história da arca povoa o imaginário infantil, assim como a imagem de Adão e Eva vestidos apenas de folhinhas. Na vida adulta, entretanto, inevitavelmente nos defrontamos com questões que não eram pensadas quando aquelas imagens foram plantadas. Uma arca carregando apenas animais da savana, como aparecia nas representações infantis, começa a parecer estranha. Onde estaria o urso polar, a anta, os cangurus, a naja? Como teriam chegado lá? Como poderiam animais de habitat tão distintos conviver na mesma arca? E quanto a Adão, teria ele sido o primeiro homem? Mas o que dizer então dos achados arqueológicos de hominídeos muito antigos? Como se encaixam nessa história? Podemos falar de evolução das espécies em harmonia com o relato bíblico? Aliás, o que significa Adão afinal? Por que a mesma palavra do texto original aparece algumas vezes traduzida como Adão e outras como homem? Como explicar a identidade de DNA em 96% entre humanos e macacos? E os dinossauros? E a idade da terra? E do universo? E o Big Bang?

 

Uma leitura mais apurada de Gênesis começa a parecer estranha dentro da narrativa que nos foi dada na infância. Se Adão foi o primeiro homem, como pode seu filho Caim ter fundado uma cidade? Quem são essas muitas pessoas que a habitaram? Por que o homem é colocado em um jardim para lavrá-lo? Seria o trabalho uma maldição oriunda da queda ou um propósito original de Deus para o homem? Que tipo de domínio é esse que foi dado ao homem e como ele deve dirigir nossa compreensão da criação e dos cuidados com o meio ambiente?

 

As perguntas não são apenas de caráter científico ou antropológico, mas também, e predominantemente, teológico. Onde estava Deus antes de criar todas as coisas? O que Ele fazia? A serpente falante que não causa espanto a Eva ou a Adão, apesar dos outros animais não falarem, nunca mais é mencionada em todas as Escrituras, a não ser em Apocalipse, livro de linguagem bastante figurada. O que era afinal a “árvore do conhecimento do bem e do mal”? E a árvore da vida? Os homens foram criados para serem eternos? Deus advertiu Adão sobre não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, afirmando que no dia em que comesse morreria, mas quando ele comeu não morreu. Como pode isso?

 

E quanto à Eva? Teria ela sido criada de um pedaço de Adão? Estaria a história bíblica passando uma mensagem de que esta é um “acessório” do homem, um ser de menor importância? Como a qualidade reconhecida à mulher em sua criação expressa na palavra hebraicaʿēzer é apresentada em outras passagens bíblicas?

 

Perguntas existenciais também passam a povoar nossa razão. O que sou eu? Para o que fui criado? Para onde vou? Por que ajo assim? Há espaço para Deus dentro da linguagem científica dos dias atuais?

 

As narrativas recebidas e as imagens formadas em nossa infância não nos saciam mais. E isso é bom. Não podemos permanecer sendo alimentados por leite a vida toda. As escrituras bíblicas assim nos instruem (1Co 3.2; Hb 5.13). Agora que nos tornamos adultos, precisamos enfrentar as novas questões com maturidade e compromisso com a verdade, pois, como afirma o apóstolo Paulo: “Quando eu era menino, falava como menino, pensava como menino e raciocinava como menino. Quando me tornei homem, deixei para trás as coisas de menino” (1Co 13.11). Portanto, enfrentar os conflitos reafirmando as mesmas imagens e narrativas infantis, como um ato de fé, definitivamente não é o caminho que a palavra de Deus nos manda seguir.

 

Antonio Carlos F. Cintra é pós-doutor em teologia pelo Regent College, doutor em direito privado pela Universidade de Lisboa e mestre em ciências da religião pela Umesp. É professor dos cursos de mestrado do Seminário Teológico Servo de Cristo e do Centro Cristão de Estudos, e defensor público do Distrito Federal. É autor de livros e artigos científicos e serve como presbítero da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília.

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