Lendo
Gênesis na idade adulta// REFLEXÃO
Onde
estava Deus antes de criar todas as coisas? O que Ele fazia? Adão, teria ele
sido o primeiro homem? Aliás, o que significa Adão?
Por
Antonio Carlos F. Cintra
O livro
de Gênesis apresenta narrativas existenciais, a força motriz de toda a
existência, a origem de tudo, a razão de nossa criação, o sentido da vida, a
natureza humana, os conflitos, o caráter de Deus. Contudo, após o advento do
Iluminismo, sua forma narrativa foi posta em descrédito pela linguagem
científica que passou a dominar o caminho de investigação da verdade. Gênesis
passou a ser visto como um conto infantil na medida em que, por certo, não faz
uso de uma linguagem científica.
A
história da arca povoa o imaginário infantil, assim como a imagem de Adão e Eva
vestidos apenas de folhinhas. Na vida adulta, entretanto, inevitavelmente nos
defrontamos com questões que não eram pensadas quando aquelas imagens foram
plantadas. Uma arca carregando apenas animais da savana, como aparecia nas representações
infantis, começa a parecer estranha. Onde estaria o urso polar, a anta, os
cangurus, a naja? Como teriam chegado lá? Como poderiam animais de habitat tão
distintos conviver na mesma arca? E quanto a Adão, teria ele sido o primeiro
homem? Mas o que dizer então dos achados arqueológicos de hominídeos muito
antigos? Como se encaixam nessa história? Podemos falar de evolução das
espécies em harmonia com o relato bíblico? Aliás, o que significa Adão afinal?
Por que a mesma palavra do texto original aparece algumas vezes traduzida como
Adão e outras como homem? Como explicar a identidade de DNA em 96% entre
humanos e macacos? E os dinossauros? E a idade da terra? E do universo? E o Big
Bang?
Uma
leitura mais apurada de Gênesis começa a parecer estranha dentro da narrativa
que nos foi dada na infância. Se Adão foi o primeiro homem, como pode seu filho
Caim ter fundado uma cidade? Quem são essas muitas pessoas que a habitaram? Por
que o homem é colocado em um jardim para lavrá-lo? Seria o trabalho uma maldição
oriunda da queda ou um propósito original de Deus para o homem? Que tipo de
domínio é esse que foi dado ao homem e como ele deve dirigir nossa compreensão
da criação e dos cuidados com o meio ambiente?
As
perguntas não são apenas de caráter científico ou antropológico, mas também, e
predominantemente, teológico. Onde estava Deus antes de criar todas as coisas?
O que Ele fazia? A serpente falante que não causa espanto a Eva ou a Adão,
apesar dos outros animais não falarem, nunca mais é mencionada em todas as
Escrituras, a não ser em Apocalipse, livro de linguagem bastante figurada. O
que era afinal a “árvore do conhecimento do bem e do mal”? E a árvore da vida?
Os homens foram criados para serem eternos? Deus advertiu Adão sobre não comer
da árvore do conhecimento do bem e do mal, afirmando que no dia em que comesse
morreria, mas quando ele comeu não morreu. Como pode isso?
E
quanto à Eva? Teria ela sido criada de um pedaço de Adão? Estaria a história
bíblica passando uma mensagem de que esta é um “acessório” do homem, um ser de
menor importância? Como a qualidade reconhecida à mulher em sua criação
expressa na palavra hebraicaʿēzer é apresentada em outras passagens
bíblicas?
Perguntas
existenciais também passam a povoar nossa razão. O que sou eu? Para o que fui
criado? Para onde vou? Por que ajo assim? Há espaço para Deus dentro da
linguagem científica dos dias atuais?
As
narrativas recebidas e as imagens formadas em nossa infância não nos saciam
mais. E isso é bom. Não podemos permanecer sendo alimentados por leite a vida
toda. As escrituras bíblicas assim nos instruem (1Co 3.2; Hb 5.13). Agora que
nos tornamos adultos, precisamos enfrentar as novas questões com maturidade e
compromisso com a verdade, pois, como afirma o apóstolo Paulo: “Quando eu era
menino, falava como menino, pensava como menino e raciocinava como menino.
Quando me tornei homem, deixei para trás as coisas de menino” (1Co 13.11).
Portanto, enfrentar os conflitos reafirmando as mesmas imagens e narrativas
infantis, como um ato de fé, definitivamente não é o caminho que a palavra de
Deus nos manda seguir.
Antonio
Carlos F. Cintra é pós-doutor em teologia pelo Regent College, doutor em
direito privado pela Universidade de Lisboa e mestre em ciências da religião
pela Umesp. É professor dos cursos de mestrado do Seminário Teológico Servo de
Cristo e do Centro Cristão de Estudos, e defensor público do Distrito Federal.
É autor de livros e artigos científicos e serve como presbítero da Igreja
Presbiteriana do Planalto, em Brasília.
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