A
'festa tupinambá' em 1550 na França que convenceu o rei a embarcar em conquista
do Brasil.
Duas
aldeias indígenas com muitas araras, papagaios e macacos nas árvores, em plena
Normandia, na França, seriam, mesmo nos dias de hoje, uma cena insólita.
Imagine
no século 16, quando uma "festa tupinambá" foi realizada para
celebrar, em 1550, a entrada triunfal do rei francês Henrique 2º na cidade de
Rouen.
O
evento que retratava o Brasil foi fundamental para a França se lançar na
conquista colonial nessa nova região do mundo e contribuiu para reforçar o mito
do "bom selvagem", a idealização do homem "puro" que vive
em harmonia com a natureza.
As
chamadas entradas reais, festividades para saudar o monarca, eram motivo de
competição entre as cidades. Henrique 2º, na época com 31 anos, havia assumido
o trono três anos antes e foi a Rouen acompanhado de sua esposa, Catarina de
Médici, embaixadores e importantes membros da nobreza.
Da
ponte onde se encontrava no rio Sena, o cortejo avistou um espetáculo jamais
visto no reino: uma reconstituição do chamado Novo Mundo, a partir de relatos
de marinheiros franceses e de indígenas que foram levados à França no início do
século 16.
Homens
nus com os rostos enfeitados e corpos pintados reproduziam cenas do cotidiano: alguns
simulavam caçar com arco e flecha, outros dormiam em redes ou comiam em volta
de fogo. Pássaros voavam e animais pulavam nas árvores.
Cerca
de 50 indígenas brasileiros, principalmente da etnia tupinambá, fizeram parte
do elenco. Mas a maioria dos cerca de 250 figurantes era de marinheiros
franceses, disse à BBC News Brasil o historiador Didier Le Fur, especialista
dos séculos 15 e 16 na França, autor de inúmeros livros, entre eles Henri 2º e
Le Royaume de France en 1500 (O reino da França em 1500).
Segundo
ele, naquela época, os indígenas não teriam sido forçados a viajar à França.
Muitos deles atuavam como intérpretes e teriam aceitado o deslocamento pela
curiosidade de descobrir outras terras.
No
espetáculo, um dos vilarejos criados para as festividades, não por acaso com
cores vermelhas, uma alusão ao pau-brasil, encenava boas e produtivas relações
com os franceses. Os habitantes levavam a madeira até um local no rio onde os
franceses desembarcavam e faziam trocas por machados, iscas e diversos acessórios.
Já o outro vilarejo era pró-Espanha, diz Le Fur.
É o
povo ligado à Espanha que inicia uma batalha, com armas em punho, contra o
"vilarejo amigo" dos franceses. Cabanas foram queimadas para dar mais
realismo ao evento.
Não é
difícil imaginar quem venceu: a aldeia que fazia comércio com a França e tinha
relações pacíficas com os franceses.
A festa
foi patrocinada por mercadores e armadores da Normandia, que aproveitaram a
visita do rei para convencer Henrique 2º, com essa estudada encenação, da necessidade
de implantar uma colônia na costa brasileira para aproveitar melhor as riquezas
locais, ressalta Le Fur. "A mensagem era de que os franceses eram bem
quistos no Brasil e que as relações comerciais com alguns povos do Brasil eram
sólidas", diz ele.
O
objetivo também era mostrar ao rei, com a derrota da aldeia rival, no caso
pró-Espanha, que embora outros povos indígenas estivessem ligados aos
portugueses, haveria pouco perigo em instalar uma colônia francesa nessa região
do mundo.
"A
ideia funcionou", destaca Le Fur. E rápido: meses depois da encenação
financiada por mercadores da Normandia, Henrique 2º enviou o explorador e
cartógrafo Guillaume Le Testu para fazer uma prospecção na costa brasileira
para avaliar a possibilidade de criar uma colônia no Brasil.
França
Antártica
Foi a
partir disso que foi decidido o projeto da França Antártica, comandado pelo
almirante Nicolas Durand de Villegagnon.
A
expedição implantou, em 1555, uma colônia na Baía da Guanabara que durou pouco
tempo, apenas até 1560, quando o forte Coligny, na ilha de Serigipe (hoje ilha
de Villegagnon), erguido pelos franceses, foi destruído pelos portugueses.
A coroa
portuguesa não foi o único problema da expedição da França Antártica.
Havia
também muitos conflitos internos. Foi uma colônia com tensões religiosas entre
católicos e protestantes (que poucos anos mais tarde, a partir de 1562,
resultou em uma guerra de religião na França).
A
França Antártica enfrentou revolta e deserções de colonos contra as severas
regras impostas por Villegagnon. Ao impedir os homens de ter contato com
mulheres indígenas, uma parte deles abandonou o forte na ilha e foi para o
continente. Alguns relatos da época afirmaram que o almirante contribuiu para a
queda do "Brasil francês."
Ao
mesmo tempo, a monarquia francesa atravessava um período de fragilidade
política e crise religiosa, marcada por sucessões precoces e o início de
guerras civis entre católicos e protestantes.
Henrique
2º, que autorizou a expedição colonial no Brasil, morreu em 1559 e seu filho,
Francisco 2º, que assumiu o trono com apenas 15 anos, faleceu no ano seguinte,
em 1560. Em seguida assumiu seu irmão Carlos 9º, outro menor de idade, com a
mãe Catarina de Médici como regente. Os conflitos internos da coroa francesa
deixaram as questões coloniais para segundo plano.
Após a
destruição do forte Coligny na Baía da Guanabara, em 1560, parte dos colonos
franceses conseguiu se refugiar em terra firme no Rio de Janeiro, com o apoio
dos tamoios, até serem definitivamente expulsos pelos portugueses em 1567.
Quase
duas décadas antes da entrada de Henrique 2º em Rouen, a França havia tentado,
em 1533, acabar com o Tratado de Tordesilhas. O papa da época estava mais ou
menos de acordo, diz Le Fur, mas após seu falecimento ele foi sucedido por um
pontífice pró-Espanha.
Na
época do Tratado de Tordesilhas, em 1494 — firmado pelos reinos de Portugal e
da Espanha e que definiu os limites de exploração entre ambos na América do Sul
— a França estava focada em colonizar a Itália, lembra Le Fur, operação que
fracassou e deixou a França sem recursos.
No
início do século 16, a França estava longe de ser uma potência marítima e
alguns comerciantes franceses, interessados no pau-brasil, acharam mais fácil
piratear navios portugueses para roubar os mapas com as rotas para o Brasil,
afirma o historiador. A publicação do Atlas Miller — com cartas marítimas na
França — em 1519 facilitou depois a navegação.
Antes
da França Antártica no Rio de Janeiro, os mercadores da Normandia já trafegavam
bastante pela costa brasileira. Entre 1526 e 1549, os franceses realizaram
cerca de 50 viagens ao Brasil, uma média de duas por ano, segundo Le Fur.
A
França não tinha a intenção de colonizar o Brasil, mas a ideia foi ganhando
fôlego ao longo das várias expedições e contatos com algumas populações locais.
França
Equinocial
Após o
fracasso na colonização na Baía da Guanabara, os franceses não se deram por
vencidos.
Outra
grande expedição, a França Equinocial, foi lançada em 1612, liderada por Daniel
de la Touche. Desta vez, o alvo foi o Nordeste brasileiro. O nome faz
referência à decisão de se instalar próximo à linha do Equador.
Os
franceses fundaram São Luís, no Maranhão, nome dado em homenagem ao rei francês
Luís 13.
Para
evitar os problemas da França Antártica, o objetivo era estabelecer uma colônia
católica. Eles fizeram alianças com os povos locais, como os tremembés e
tupinambás, fundaram um forte e começaram a construir a cidade.
A
França Equinocial era um projeto ambicioso, que visava ocupar boa parte do
Nordeste do Brasil e também Norte do Brasil, incluindo parte do Pará e do
Amapá.
A
expansão fracassou devido à resposta militar portuguesa que conseguiu, após várias
batalhas, expulsar definitivamente os franceses do Maranhão em 1615.
Devido
a instabilidades políticas na França, os colonos de São Luís não conseguiram
obter tropas e recursos adicionais para enfrentar os portugueses.
Não deu
certo no Brasil, mas os franceses não abandonaram a ideia de fixar uma colônia
na América do Sul. Obtiveram sucesso no território que é hoje a Guiana
Francesa, com a fundação de Caiena em 1643.
Nos
anos seguintes, houve confrontos com ingleses, portugueses e holandeses pela disputa
da Guiana Francesa, até hoje um território ultramarino da França.
Especialistas
afirmam que a festa indígena na Normandia, que mostrou povos amigos dos
franceses (encenados principalmente por marinheiros franceses), contribuiu para
o mito do "bom selvagem", embora essa ideia só fosse ganhar força no
século 18, com pensadores como Jean-Jacques Rousseau.
Nos
Ensaios de Michel de Montaigne, do século 16, o filósofo francês afirmou que a
alma dos indígenas não é corrompida e que os europeus só se interessam pela
riqueza e pelo poder.
A
entrada de Henrique 2º em Rouen foi descrita na época em um manuscrito
ilustrado, um dos destaques do acervo da biblioteca de Rouen.
Outra
versão curta com gravuras foi distribuída à população, que pôde pela primeira
vez ter uma ideia do que era essa região do mundo, apesar do espetáculo
romanceado.
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