OPINIÃO
A tradução da Bíblia como meio de preservação de línguas
indígenas
“Quando um povo perde a língua, perde sua identidade”
(Henrique Terena)
Por Raquel Villela Alves
O mais recente livro publicado em uma língua indígena do
Brasil foi, provavelmente, o Novo Testamento em Ninam, da família linguística
Yanomami, recebido pelo povo em 8 de março de 2024. Antes foram impressos o
Novo Testamento em Oro Wari (Pacaas Novos)1, outros livros da Bíblia e até
alguns com conteúdo distinto, todos convergindo para uma realidade que existe
há décadas e posiciona os evangélicos como responsáveis pela grande maioria dos
registros de línguas indígenas no Brasil.
A motivação para tais publicações sempre foi a de levar as
Escrituras aos povos originários. Os projetos de tradução incluem, em paralelo,
livros didáticos e paradidáticos para ensinar o povo a ler e a escrever em sua
própria língua. Assim, além de vidas transformadas pela Palavra de Deus, a
tradução contribui para preservar línguas – parte essencial da identidade de um
povo e um patrimônio intelectual da nação brasileira.
Identidade preservada
“Quando o povo perde a língua, perde sua identidade”, avalia
Henrique Terena, presidente do Conselho Nacional de Pastores e Líderes
Evangélicos Indígenas (CONPLEI). Ele acrescenta que “os esforços de tradução da
Bíblia para as línguas tribais têm contribuído muito para a população ter sua
língua não somente falada, mas também escrita. Uma vez escrita, ela é
preservada para futuras gerações”.
Terena observa o valor também das gravações em áudio das
Escrituras para a língua indígena. “Quando os mais velhos escutam, eles se
motivam, se emocionam, porque ouvem a própria língua. Há um entendimento muito
maior com a Bíblia falada.” As perspectivas são animadoras, segundo ele, com
“os próprios indígenas agora tornando-se tradutores para sua própria língua e
quem sabe, no futuro próximo, teremos mais tradutores indígenas para outras
etnias. Alguns já fazem esse trabalho”.
As línguas indígenas
O Brasil tem uma das maiores diversidades de línguas do
mundo, mas quantificá-las é complexo, devido a critérios utilizados e outros
fatores. Dados de 2010 do IBGE indicam 274 línguas. Linguistas falam de 160 a 180,
sem considerar as línguas de sinais e os dialetos. Quando o Brasil foi
descoberto, acredita-se que havia 1.273 línguas, ou seja, cerca de 85% delas se
perdeu.
As línguas indígenas se distribuem a partir de dois troncos,
o Tupi e o Macro-Jê, em quatro famílias maiores (Aruak, Karib, Pano e Tukano),
seis famílias médias (Arara, Katukina, Makú, Nambikwara, Txapakura e Yanomami),
três famílias menores (Bora, Guaikuru, Mura) e sete línguas isoladas, segundo o
linguista Denny Moore.
O acervo indígena
É desafiador sistematizar toda a produção editorial
indígena, mas há algumas informações precisas. A Aliança Pró-Tradução da
Bíblia, da Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB), com base em
pesquisa de 2018 da própria organização, aponta sete línguas com a Bíblia
completa, 48 com o Novo Testamento e 27 com outros livros. São 82 línguas com
registro das Escrituras no papel e, dentre elas, 39 têm também registro em
áudio e dezenove em vídeo. Há outros treze projetos em andamento e quinze
línguas sem projeto, mas vitais o suficiente para as comunidades sustentarem e
se beneficiarem do trabalho de tradução.
Não estão quantificadas as publicações de apoio ao ensino
bíblico e de aprendizagem da língua. Fora da esfera evangélica, há uma
iniciativa do governo federal, o Projeto de Documentação das Línguas Indígenas
(Prodoclin), que, nos últimos dez anos, desenvolveu parceria com dezessete
povos da Amazônia e tem produzido vários registros, como cartilha de
vocabulário e dicionários de línguas indígenas.
Ao longo da história
Nos primeiros séculos da colonização do Brasil, foram
produzidas gramáticas e catecismos de três línguas indígenas que deixaram de
existir no mesmo período: Tupinambá, Kariri e Manau.
A grande retomada ocorreu a partir de 1956, quando o Summer
Institute of Linguistics (SIL) foi convidado pelo Museu Nacional do Rio de
Janeiro para cooperar em pesquisas científicas das línguas indígenas do Brasil
e na formação de linguistas brasileiros. O primeiro grupo iniciou os estudos em
1957, com a língua Kaiwa. Com a criação da Universidade de Brasília, em 1962, a
SIL passou a dar aulas de linguística e a cooperar no Centro de Estudos das
Culturas e Línguas Indígenas. Em 1973, a Wycliffe Bible Translators (WBT),
coirmã da SIL, formatou um curso de linguística e missiologia, que durou até
1982, quando a WBT deixou o país e o trabalho foi assumido pela então
recém-criada Associação Linguística Evangélica Missionária (ALEM), a primeira
organização brasileira com foco em tradução da Bíblia.
Esse movimento continua a crescer, com participação decisiva
da igreja brasileira e o trabalho de organizações como ALEM, Missão Novas
Tribos do Brasil, Missão Evangélica da Amazônia, Associação Missionária para
Difusão do Evangelho, Missão Pioneiros da Bíblia, A Fé Vem Pelo Ouvir, CONPLEI,
Gravações Brasil, Horizontes América Latina, Jocum, Junta de Missões Nacionais,
Junta de Missões Mundiais, Agência Presbiteriana de Missões Transculturais,
WEC/Projeto Amanajé, Jesus Film Project e Movida.
A maioria dos projetos tem sido financiada pela Seed Company
e quando finalizados, os livros são impressos em Barueri, na gráfica da
Sociedade Bíblica do Brasil. A integração entre organizações no Brasil para
colaboração mútua tem recebido apoio da AMTB, com a parceria essencial da
Aliança Global Wycliffe para capacitações e conexões estratégicas com outros
países da América Latina e outras regiões do mundo.
Nota
1. A dedicação do Novo Testamento na língua Oro Wari, os
Pacaas Novos, foi em agosto de 2023. A tradução começou em 1962 e levou cerca
de 50 anos de muito aprendizado e esforço dos primeiros missionários. Hoje 35
aldeias, das 36 existentes, têm igrejas plantadas e pastoreadas por pastores
Oro Wari. Agora eles pregarão com o NT, na sua língua, em suas mãos, e o povo
poderá crescer ainda mais, na graça e no conhecimento do Senhor Jesus, lendo e
meditando na palavra que transforma.
Artigo publicado originalmente na seção “Os evangélicos no
Brasil” da edição 407 de Ultimato.
Raquel Villela Alves é membro colaboradora da Missão ALEM,
coordenadora de tradução na área de comunicação de COMIBAM, coordenadora da
Aliança Pró-Tradução da Bíblia e da intercessão missionária na AMTB e
representante no Brasil da Rede de Oração Ethne (formada por organizações
comprometidas com povos não alcançados).
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