segunda-feira, 27 de maio de 2024

REFLEXÃO...02

 

OPINIÃO

A tradução da Bíblia como meio de preservação de línguas indígenas

 

“Quando um povo perde a língua, perde sua identidade” (Henrique Terena)

 

Por Raquel Villela Alves

 

O mais recente livro publicado em uma língua indígena do Brasil foi, provavelmente, o Novo Testamento em Ninam, da família linguística Yanomami, recebido pelo povo em 8 de março de 2024. Antes foram impressos o Novo Testamento em Oro Wari (Pacaas Novos)1, outros livros da Bíblia e até alguns com conteúdo distinto, todos convergindo para uma realidade que existe há décadas e posiciona os evangélicos como responsáveis pela grande maioria dos registros de línguas indígenas no Brasil.

 

A motivação para tais publicações sempre foi a de levar as Escrituras aos povos originários. Os projetos de tradução incluem, em paralelo, livros didáticos e paradidáticos para ensinar o povo a ler e a escrever em sua própria língua. Assim, além de vidas transformadas pela Palavra de Deus, a tradução contribui para preservar línguas – parte essencial da identidade de um povo e um patrimônio intelectual da nação brasileira.

 

Identidade preservada

“Quando o povo perde a língua, perde sua identidade”, avalia Henrique Terena, presidente do Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas (CONPLEI). Ele acrescenta que “os esforços de tradução da Bíblia para as línguas tribais têm contribuído muito para a população ter sua língua não somente falada, mas também escrita. Uma vez escrita, ela é preservada para futuras gerações”.

 

Terena observa o valor também das gravações em áudio das Escrituras para a língua indígena. “Quando os mais velhos escutam, eles se motivam, se emocionam, porque ouvem a própria língua. Há um entendimento muito maior com a Bíblia falada.” As perspectivas são animadoras, segundo ele, com “os próprios indígenas agora tornando-se tradutores para sua própria língua e quem sabe, no futuro próximo, teremos mais tradutores indígenas para outras etnias. Alguns já fazem esse trabalho”.

 

As línguas indígenas

O Brasil tem uma das maiores diversidades de línguas do mundo, mas quantificá-las é complexo, devido a critérios utilizados e outros fatores. Dados de 2010 do IBGE indicam 274 línguas. Linguistas falam de 160 a 180, sem considerar as línguas de sinais e os dialetos. Quando o Brasil foi descoberto, acredita-se que havia 1.273 línguas, ou seja, cerca de 85% delas se perdeu.

 

As línguas indígenas se distribuem a partir de dois troncos, o Tupi e o Macro-Jê, em quatro famílias maiores (Aruak, Karib, Pano e Tukano), seis famílias médias (Arara, Katukina, Makú, Nambikwara, Txapakura e Yanomami), três famílias menores (Bora, Guaikuru, Mura) e sete línguas isoladas, segundo o linguista Denny Moore.

 

 

 

O acervo indígena

É desafiador sistematizar toda a produção editorial indígena, mas há algumas informações precisas. A Aliança Pró-Tradução da Bíblia, da Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB), com base em pesquisa de 2018 da própria organização, aponta sete línguas com a Bíblia completa, 48 com o Novo Testamento e 27 com outros livros. São 82 línguas com registro das Escrituras no papel e, dentre elas, 39 têm também registro em áudio e dezenove em vídeo. Há outros treze projetos em andamento e quinze línguas sem projeto, mas vitais o suficiente para as comunidades sustentarem e se beneficiarem do trabalho de tradução.

 

Não estão quantificadas as publicações de apoio ao ensino bíblico e de aprendizagem da língua. Fora da esfera evangélica, há uma iniciativa do governo federal, o Projeto de Documentação das Línguas Indígenas (Prodoclin), que, nos últimos dez anos, desenvolveu parceria com dezessete povos da Amazônia e tem produzido vários registros, como cartilha de vocabulário e dicionários de línguas indígenas.

 

Ao longo da história

Nos primeiros séculos da colonização do Brasil, foram produzidas gramáticas e catecismos de três línguas indígenas que deixaram de existir no mesmo período: Tupinambá, Kariri e Manau.

 

A grande retomada ocorreu a partir de 1956, quando o Summer Institute of Linguistics (SIL) foi convidado pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro para cooperar em pesquisas científicas das línguas indígenas do Brasil e na formação de linguistas brasileiros. O primeiro grupo iniciou os estudos em 1957, com a língua Kaiwa. Com a criação da Universidade de Brasília, em 1962, a SIL passou a dar aulas de linguística e a cooperar no Centro de Estudos das Culturas e Línguas Indígenas. Em 1973, a Wycliffe Bible Translators (WBT), coirmã da SIL, formatou um curso de linguística e missiologia, que durou até 1982, quando a WBT deixou o país e o trabalho foi assumido pela então recém-criada Associação Linguística Evangélica Missionária (ALEM), a primeira organização brasileira com foco em tradução da Bíblia.

 

Esse movimento continua a crescer, com participação decisiva da igreja brasileira e o trabalho de organizações como ALEM, Missão Novas Tribos do Brasil, Missão Evangélica da Amazônia, Associação Missionária para Difusão do Evangelho, Missão Pioneiros da Bíblia, A Fé Vem Pelo Ouvir, CONPLEI, Gravações Brasil, Horizontes América Latina, Jocum, Junta de Missões Nacionais, Junta de Missões Mundiais, Agência Presbiteriana de Missões Transculturais, WEC/Projeto Amanajé, Jesus Film Project e Movida.

 

A maioria dos projetos tem sido financiada pela Seed Company e quando finalizados, os livros são impressos em Barueri, na gráfica da Sociedade Bíblica do Brasil. A integração entre organizações no Brasil para colaboração mútua tem recebido apoio da AMTB, com a parceria essencial da Aliança Global Wycliffe para capacitações e conexões estratégicas com outros países da América Latina e outras regiões do mundo.

 

Nota

1. A dedicação do Novo Testamento na língua Oro Wari, os Pacaas Novos, foi em agosto de 2023. A tradução começou em 1962 e levou cerca de 50 anos de muito aprendizado e esforço dos primeiros missionários. Hoje 35 aldeias, das 36 existentes, têm igrejas plantadas e pastoreadas por pastores Oro Wari. Agora eles pregarão com o NT, na sua língua, em suas mãos, e o povo poderá crescer ainda mais, na graça e no conhecimento do Senhor Jesus, lendo e meditando na palavra que transforma.

 

Artigo publicado originalmente na seção “Os evangélicos no Brasil” da edição 407 de Ultimato.

Raquel Villela Alves é membro colaboradora da Missão ALEM, coordenadora de tradução na área de comunicação de COMIBAM, coordenadora da Aliança Pró-Tradução da Bíblia e da intercessão missionária na AMTB e representante no Brasil da Rede de Oração Ethne (formada por organizações comprometidas com povos não alcançados).

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