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Missionários em território de guerra
“Somos chamados de loucos por deixar o Brasil e ir para um
lugar onde há frequentes conflitos e guerras”
Por Rafael Langraff
Entrevista com casal de missionários em preparação para ir
para uma região em guerra
A existência de tantas guerras ao redor do mundo é uma
realidade incômoda a todos, mas principalmente àqueles que discursam de modo
tão veemente acerca do progresso humano e a paz conquistada por suas
ideologias. Basta ligar a televisão ou acessar a internet e facilmente nos
deparamos com diversas notícias acerca da “escalada dos conflitos” – esta
parece ser a expressão da moda preferida por jornalistas e comentaristas – em
várias partes do globo. Em 2024 a ONU registrou 134 conflitos ao redor do
mundo. Estes conflitos não são algo novo e revelam uma verdade antiga acerca do
mundo corrompido pelo pecado. Entre as guerras mais noticiadas está a invasão
da Ucrânia pela Rússia iniciada a três anos e que apenas escancarou o conflito
que se arrasta desde 2014. Em Moçambique, uma guerra civil ameaça a segurança
da população e afeta a pregação do evangelho enquanto divide o país – e os
cristãos – por meio de ideologias políticas. Esta polarização ideológica também
não é novidade. Apesar da atual impulsão por conta das redes sociais, trata-se
de um tumor antigo, enraizado no mundo desde o final da Segunda Guerra Mundial
e da Guerra Fria – ou seria muito antes, ainda no século 18?
Fato é que nestes países em conflitos existem cristãos fiéis
orando e trabalhando pela verdadeira paz que somente Cristo pode dar. Eles
precisam de nossa ajuda. Oração e recursos financeiros são bem-vindos, mas
nosso Mestre também nos ensinou a orar para que o Senhor mande trabalhadores
para a seara1 e, de fato, muitos cristãos têm sido chamados por Deus para
pregar entre povos que sofrem com guerras.
Pedro e Sara
Este é o caso de Pedro e Sara.2 Filha de libaneses, Sara
passou parte de sua infância no Oriente Médio e veio para o Brasil já
adolescente. Ela e Pedro se conheceram na faculdade, casaram-se e estão se
preparando para ir para uma região que atualmente é palco da Guerra entre
Israel e o Hamas. “Talvez por conta do testemunho de vida da Sara, muitas
pessoas compreendem o chamado específico em nossas vidas, e por isso recebemos
apoio de muitos irmãos”, afirma Pedro. Contudo, “já tivemos que lidar com
muitas críticas daqueles que acreditam que não precisamos atravessar o oceano
para falar de Jesus, e que podemos pregar aqui mesmo. Eles nos chamam de loucos
por deixar nossa vida aqui no Brasil e ir para um lugar distante onde há
frequentes conflitos e guerras”. No entanto, diz Pedro, “sabemos que precisamos
ir, independente do contexto da região”.
E este contexto não é simples. “O país já vinha sofrendo com
uma profunda crise econômica, e atualmente com a guerra isso se agravou.”
Segundo Sara, seus familiares “estão bem, graças a Deus suas cidades não foram
atingidas, porém encontram dificuldades com relação ao trabalho, pois muitas
cidades ao redor foram bombardeadas. De forma geral, a situação atual é
catastrófica, onde vemos pessoas praticamente presas dentro de casa, com falta
de alimentos básicos como arroz e farinha. Ouvimos relatos de que as pessoas da
região não conseguem dormir em razão do barulho dos aviões, mísseis e
bombardeios. Todos estão esgotados emocionalmente e fisicamente,” diz ela.
“Além disso, em outros lugares da região, os deslocados internos têm dormido
nas ruas ou em tendas, pois as escolas e abrigos estão lotados. E isso se
agrava com a falta de alimentos, água, cobertores, colchões, recursos financeiros
entre outros itens de necessidades básicas. Infelizmente, um cenário
lamentável, um país tão rico em paisagens e histórias sendo destruído dessa
forma.” Sobre a igreja local, Sara observa que são “grandes as oportunidades,
pois as portas estão abertas. Eles recebem doações de enlatados e colchões de
igrejas estrangeiras, mas o cenário é terrível e precisamos clamar por
segurança e proteção. Atualmente, são mais de 1,5 milhão de deslocados internos
além de refugiados sírios e palestinos que estão presentes naquela localidade”.
Ao questionar Pedro e Sara se, mediante a este quadro, algo
mudou no desejo deles de irem para o campo, responderam categoricamente: “Não,
pelo contrário, apesar de ser muito triste o que está acontecendo lá, isso nos
motiva ainda mais, pois iremos para ajudar a compartilhar a mensagem de
salvação e esperança em Jesus. Gostaríamos de ir logo, mas sabemos que Deus tem
o Seu tempo e enquanto isso precisamos concluir nosso preparo”.
Preparando-se para ir
O jovem casal missionário está se preparando em um seminário
teológico onde têm tido apoio de sua igreja no processo. Mas nem todos os
vocacionados encontram semelhante apoio. Dois principais problemas dificultam a
preparação de missionários no Brasil. “Temos colegas que também estão se
preparando para o campo e sentem falta do apoio da igreja”, diz eles, “essa
falta de apoio muitas vezes ocorre pelo fato das igrejas terceirizarem o
trabalho missionário para as juntas e agências”. Além do problema da
burocracia, há o fato de as agências missionárias precisarem lidar
constantemente com planejamento e metas que as distanciam da realidade do
missionário. Este mesmo fator afeta a relação com a igreja, onde o
distanciamento da realidade do campo cria uma falsa percepção de que as dificuldades
que o missionário enfrenta não são de responsabilidade da igreja, mergulhando
seus membros em uma espécie de comodismo. Some a isto que os “pastores muitas
vezes não percebem potenciais entre suas ovelhas por conta do distanciamento do
processo de formação dos missionários.” Christopher Wright alerta que a missão
é algo intrínseco à natureza da igreja. Em um de seus livros, Wright afirma que
“a missão não foi feita para a igreja, mas a igreja foi feita para a missão”.3
As agências missionárias têm sua importância, mas a terceirização de algumas
áreas essenciais à igreja tem gerado uma disfunção no cristianismo.
Um segundo problema é causado pela desinformação. As
notícias compartilhadas raramente são livres de viés ideológicos: “Poucas
Igrejas realmente trazem as informações de forma imparcial. Percebemos que a
maior parte levanta a bandeira de apenas um lado do conflito sem observar o que
realmente acontece. Os noticiários brasileiros têm sido tendenciosos nesse
sentido”. Pedro e Sara afirmam acompanhar os noticiários das mídias orientais e
observar muitas diferenças em comparação com o que é transmitido no Brasil em
relação ao conflito: “A realidade é que muitos inocentes estão morrendo e há
muitas coisas que acabam sendo distorcidas e mal compreendidas. Nossos irmãos
em Cristo estão igualmente sofrendo no meio do fogo cruzado!”.
“A igreja brasileira, influenciada pela mídia, tende a
pensar que esta guerra é apenas entre Israel e os terroristas”, acrescenta o
casal, porém “temos relatos de muitos cristãos sofrendo na região. São poucas
evidências de que Israel atacou apenas alvos terroristas, assim como não
podemos também pensar que muitos muçulmanos, que não apoiam o Hamas e nem o
Hezbollah, não estão sofrendo diante de todo este conflito. No lugar de
escolhermos um dos lados, precisamos nos unir em oração para que judeus e muçulmanos,
israelenses e árabes tenham um encontro com Jesus”. É no mínimo incoerente o
discurso de ódio proferido por muitos cristãos a favor da guerra, das mortes e
da aniquilação de povos que deveriam ser o alvo de nossas orações e do
evangelho da salvação pregado pela Igreja. Deus não tem prazer na morte do
ímpio, antes deseja que estes convertam-se de sua maldade.4
No entanto, nem tudo é problemático na preparação dos
missionários no Brasil. “Temos muito conteúdo de qualidade disponível em
português e muitos cursos de preparação em diversas áreas e diferentes
instituições missionárias. Cursos pagos ou gratuitos, online ou presenciais,
existem muitas oportunidades de capacitações. Temos olhado alegremente para
este contexto no Brasil”, diz Pedro, “conseguindo ver uma visão de Reino na
condução de eventos e projetos missionários que ocorrem em conjunto entre
igrejas de várias denominações, o que reforça a importância de uma cooperação
entre os cristãos”.
É neste ponto que os seminários teológicos ganham relevância
no direcionamento do estudo e na preparação do missionário. “Apesar de termos
feitos outros cursos durante esse tempo de preparação, que também foram muito
importantes,” afirma o casal, “sentíamos falta de conhecimento e base sólida
com relação ao estudo teológico para que nos sentíssemos mais preparados para
exposição do evangelho e eventuais questionamentos”. Muitos vocacionados têm
sido bem treinados pelas agências missionárias em cursos próprios. Na
perspectiva do casal, “estudar missiologia foi importante para entender o
movimento missionário, antropologia cultural, tópicos de contextualização do
evangelho e entender o papel da igreja, do missionário e das agências.” No
entanto, Pedro e Sara acreditam que o estudo teológico aplicado tem auxiliado a
“estruturar o conhecimento sobre a fé cristã. Certamente seremos questionados
sobre os fundamentos da nossa fé e sobre a veracidade das Escrituras”. Segue
que o estudo da missiologia é importante, mas também é fundamental que o
conhecimento bíblico e teológico faça parte da formação dos missionários.
Por certo ainda há muito a ser feito. Precisamos melhorar os
processos de preparação daqueles que são enviados, além de proporcionar à
igreja do Brasil informações que apresentem a verdade nas zonas de conflito.
Devemos amar o mundo pecador sem aderir partidarismo ou ideologias, antes
unificados pela mensagem da cruz de Cristo. É necessário aproximar as igrejas
da realidade do missionário a fim de que possamos orar e contribuir de maneira
adequada. E estes são apenas alguns dos desafios que se apresentam.
É maravilhoso ver como Deus sustenta sua missão despertando
e capacitando jovens cristãos para pregar o evangelho em todas as nações. Pedro
e Sara estão entre tantos que consagraram suas vidas à causa do Reino e
precisam do apoio da Igreja. Que seu testemunho nos motive a abraçar, com zelo
e fidelidade, a missão à qual fomos chamados por Deus. “Recentemente uma irmã
nos disse que é muito lindo nos ver servindo ao Senhor dessa maneira e que ela
gostaria de estar fazendo algo semelhante, mas não podia, pois tinha seu
trabalho e seus afazeres. No entanto, a realidade é que todos temos uma missão,
seja para longe, seja para perto, ou para onde estamos atualmente. Em nosso
trabalho, com nossos vizinhos ou familiares, Deus chamou a todos para anunciar
o evangelho de Cristo”, concluiu o casal.
Notas
1. Mateus 9.38
2. Os nomes são fictícios para proteger a integridade dos
missionários
3. Wright, C. J. H. A missão do povo de Deus. São Paulo:
Vida Nova. 2012, p.30
4. Cf. Ezequiel 33.11
Entrevista feita em outubro de 2024.
Rafael Z. Langraff
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