Ana
Julia, a sucuri.
Somos
criaturas que vieram do pó, igualmente dependentes do sopro de vida do Criador
Por
Tiago Pereira
Recentemente,
a notícia da morte de uma cobra se destacou nos jornais. Com mais de 6 metros
de comprimento, ela era uma das maiores sucuris do mundo, monitorada pelos
biólogos há muitos anos e bastante conhecida na região de Bonito, no Mato
Grosso do Sul. E ela não era uma cobra qualquer. O que mais chamou atenção foi
um fato bem peculiar. Sua majestade, a rainha das águas do pantanal, tinha nome
e apelido: ela era Anajulia, a Vovozona.
Dar
nome aos animais é uma das primeiras tarefas atribuídas ao homem na Bíblia.
Essa história está presente no segundo capítulo de Gênesis, que nos mostra Deus
trazendo os animais para que o homem lhes dê um nome (Gn 2:19). As ilustrações
presentes em muitos materiais infantis costumam colocar Adão apontando para os
animais e dizendo: “este é o hipopótamo”, “este é o avestruz”, ou ainda “vou te
chamar de urso”, e assim sucessivamente, executando um trabalho que parece ser
de cunho puramente taxonômico. Mas será que é isso que o texto realmente está
querendo nos ensinar? O trabalho do homem ali no jardim era apenas um trabalho
de organização sistemática, dando nomes às criaturas em alguma língua antiga e
desconhecida?
Se o
registro bíblico faz questão de nos contar essa história, ela definitivamente
não é banal. Mas é preciso voltar uma página na história da criação do livro de
Gênesis. No relato presente no primeiro capítulo, o homem tinha recebido uma
ordem específica: dominar e subjugar a criação (Gn 1:26-28), uma ordem direta,
mas talvez difícil de compreender e executar. No capítulo seguinte, então, o
autor parece ter a intenção de qualificar melhor como aquela função deveria ser
exercida. Quando o homem é posto no jardim do Éden, a ordem é apresentada agora
com dois novos verbos: cultivar e guardar (Gn 2:15).
Entendemos
então que o domínio sobre a criação deveria ser visto a partir de uma lógica de
cuidado e serviço, e isso só se daria a partir de um reconhecimento das
relações de interdependência entre a terra e todos os seres criados. Se a ordem
de nomear os animais é dada logo em seguida, ela também precisará ser vista a
partir desta ótica.
Diversos
estudiosos apontam que, no contexto do Antigo Oriente Próximo, nomear alguma
coisa, fosse um objeto ou pessoa, implicava uma imposição de poder e autoridade
sobre ela, uma forma de exercer domínio sobre o outro. Um exemplo emblemático
acontece quando Daniel e seus amigos recebem novos nomes por ordem de
Nabucodonosor, rei da Babilônia, mostrando que, no mundo caído, o ato de nomear
muitas vezes era exercido de forma autoritária e tirana. Mas se nomear é uma
forma de dominar, também vemos que no Antigo Testamento esse ato sempre implica
uma relação de proximidade e conhecimento da parte de Deus. O ato de nomeação
era a base para um relacionamento, e vemos isso muitas vezes quando Deus chama
seus escolhidos. Na ordem criacional, portanto, entendemos que exercer um
domínio através da nomeação deveria ocorrer de acordo com a lógica divina, não
humana. O intento divino nunca foi que o domínio do homem sobre as demais
criaturas se desse pela exploração, abuso e opressão, mas sim por um
relacionamento amoroso e responsável. O Criador, aquele que nomeia cada estrela
existente no céu (Is 40:26), nos chama a participar de sua obra. Nós não
criamos, mas como imagens do Criador, temos o privilégio de nomear suas
criaturas.
Para
cumprir a ordem de dominar, o homem precisaria se aproximar, observar e
estudar. E conhecer as demais criaturas exigiria tempo e dedicação, mas também
respeito aos limites, tanto os delas como os nossos. Só assim os nomes poderiam
ser dados. A autoridade do homem sobre a criação seria exercida através do
reconhecimento das necessidades de cada um e da percepção de que somos
igualmente criaturas que vieram do pó, igualmente dependentes do sopro de vida
do Criador e da terra que nos dá o alimento. Essa autoridade dentro da criação
só poderia ser exercida em benefício das outras criaturas. E isso só será
possível quando os humanos entenderem suas relações de interdependência e
cooperação fundamental com todas as demais criaturas e com a terra.
A cobra
encontrada morta no Pantanal não ganhou um nome quando foi chamada de sucuri,
mas de Ana Julia. Talvez sua morte tenha sido por causas naturais, mas se ela
foi morta por alguém de forma intencional e deliberada, essa pessoa não a
conhecia pelo nome, e talvez ela não fosse nem uma sucuri, mas apenas uma
cobra. Mas todos que a conheceram como Ana Julia exerceram um pouco desse
mandato tão nobre. Cada animal nomeado, conhecido e cuidado por nós tem esse
privilégio de fazer parte do jardim que nós cultivamos, e através de seus nomes
nós podemos conhecer melhor o Criador.
Tiago
Pereira é biólogo formado pela Universidade Federal de Viçosa, mestre e doutor
em Botânica também pela UFV, com pós-doutorado em Biologia Molecular e Filogeografia.
Atualmente, faz parte da equipe de trabalho da Associação Brasileira de
Cristãos na Ciência (ABC2) como coordenador nacional dos Grupos de Estudo. É
membro da igreja presbiteriana, casado com Eliza e pai de Pedro e Maria Clara.
Sem comentários:
Enviar um comentário