quarta-feira, 20 de novembro de 2024

ESTUDO 02

 

"O Lado Negro da Música Brasileira" (Pesquisa 02)

 

Religiosidade católica e africana, cultura dos povos negros, escravidão e questões sociais atuais da negritude, esses são os temas que perpassam a exposição “O Lado Negro da Música Brasileira”, de autoria de Pe. José Paulino Martins (jesuíta, artista plástico e Diretor de Formação Cristã da ETE), que faz um paralelo com músicas da MPB para abordar temas sobre a consciência negra, comemorada em novembro.

 

A exposição já foi prestigiada por centenas de pessoas (entre estudantes da ETE e de outras escolas locais, colaboradores da Instituição e comunidade em geral). O nome da exposição remete à ressignificação do uso da palavra “negro”, ainda imposta no dia a dia de forma ofensiva, em tom preconceituoso e racista, o dito “racismo estrutural”.

 

Inspiradas em músicas de compositores e/ou intérpretes como Chico César, Sandra de Sá, Elis Regina, Caetano Veloso, Nando Reis, Negra Li e Maria Gadú, as pinturas carregam sentimentos e histórias de muitas vozes que ecoaram ao longo do tempo. Agora chega na ETE FMC, como uma oportunidade de sensibilizar a comunidade acadêmica e a população santa-ritense de forma geral sobre a temática, através da abertura da Mostra ao público, especialmente das visitas guiadas por Pe. Paulino em clima intimista.

 

Obra: NOSSA SENHORA DA RUA

Música: “Drume Negrinha/ Drume Negrita” (Caetano Veloso) - LINK

Técnica: Acrílica sobre tela.

 

“Drume, negrinha/ Que eu te transo uma nova caminha/Que venha ter muito axé/Que tenha gosto d'ocê”.

Traçando um paralelo com a história de Maria, que era uma mulher pobre de uma aldeia periférica e sem espaço digno de dar à luz ao seu filho, a pintura “Nossa Senhora da Rua” retrata uma mulher em situação de rua, sozinha com seu filho bebê em uma noite escura. Nesse caso, para Pe. Paulino, a música “Drume Negrinha” seria a canção de ninar em face ao sofrimento da fome e desamparo em que a mulher ninaria seu filho: “Drume, negrinha/ Que eu te transo uma nova caminha/Que venha ter muito axé/Que tenha gosto d'ocê”.

 

Fazendo um retrato de todas as “Marias” dos centros urbanos, as cores contrastantes (preto, branco e vermelho) alertam para a gravidade da situação. A lâmpada pendurada sugere a Estrela de Belém, a auréola denota uma mulher santa, a posição lembra a estátua de Pietá, em que uma mãe embala seu filho diante do sofrimento. O coração à mostra, foi o modo que o artista encontrou para representar a dor no coração dilacerado dessa mãe.

 

Obra: AS PRIMAS VERAS

Música: “Negra Livre” (Negra Li e Nando Reis) - LINK

Técnica: Acrílica sobre tecido, sobre Eucatex.

 

“Sou negra livre / Negra livre / Cheguei aqui a pé / Para desnudar / Para derreter / Para descolar / Pra viver...”

 

Inspirado na composição de Nando Reis, interpretada por Negra Li, o quadro “As Primas Veras” retratam mulheres negras que alegremente carregam balaios de flores, para se enfeitarem, enfeitarem seus amados e seus caminhos. São livres. Vão para onde querem e fazem o que querem. Não são mais obrigadas a carregarem pesadas Latas D’água Na Cabeça.

 

 

Obra: RESPEITEM MEUS CABELOS

Música: “Respeitem Meus Cabelos, Brancos” (Chico César) - LINK

Técnica: Acrílica sobre tela.

 

“Cabelo veio da África / Junto com meus santos / Benguelas, zulus, gêges / Rebolos, bundos, bantos / Batuques, toques, mandingas / Danças, tranças, cantos / Se eu quero pixaim, deixa / Se eu quero enrolar, deixa / Se eu quero colorir, deixa / Se eu quero assanhar, deixa / Deixa, deixa a madeixa balançar”

 

A pintura representa o valor do cabelo natural crespo como afirmação da negritude, entendendo o cabelo crespo como sinônimo de resistência e autoestima diante do que é exigido pelo mercado de trabalho e pela sociedade.

 

O cabelo exerce papel fundamental na construção da estética e identidade do indivíduo, nesse contexto, o Black Power é um dos estilos mais carregados de valores e simbolismos, ganhando inclusive o nome de, traduzindo do inglês, “Poder Negro”.

 

 

Obra: BLACK IS BEAUTIFUL

Música: “Black is Beautiful” (Elis Regina) - LINK

Técnica: Acrílica sobre tela.

 

 

“Eu quero um Homem de cor/ Um deus negro do Congo ou daqui / Que se integre no meu sangue europeu / Black is beautiful, black is beautiful”

De punhos serrados, o símbolo universal de resistência utilizado principalmente dentro do movimento negro, o Jesus retratado no quadro “Black is Beautiful” substitui a mão em formato de benção,para assumir uma postura de defesa aos oprimidos. Na mão esquerda, a figura carrega um trecho do livro do Êxodo “Eu sou o que sou” (Êxodos 3:14), palavras que Deus disse a Moisés quando confrontado com a pergunta.

 

Esse diálogo se dá exatamente no momento em que Deus, ouvindo o clamor do seu povo, no Egito, resolve enviar um libertador, Moisés. Moisés preocupado em com quais credenciais se apresentar diante do povo e do faraó, ouviu de Deus: “Diga ao povo que Eu sou o que eu sou”, se definindo pelo verbo, pelo ser, mostrando que não se pode ser definido ou reduzido em apenas palavras, sendo, portanto, o que é e o que se propõe a ser. Dessa forma, a imagem do homem negro pintada por Pe. Paulino não tem amarras com definições, sobretudo porque estas comumente menosprezam, zombam e isolam a existência negra.

 

Obra: NAVIO NEGREIRO

Música: “O Navio Negreiro” (*Poema de Castro Alves musicado por Caetano Veloso) - LINK

Técnica: Acrílica sobre tela colada em MDF sobre tecido.

 

“ ’Stamos em pleno mar / Era um sonho dantesco... o tombadilho / Que das luzernas avermelha o brilho / Em sangue a se banhar / Tinir de ferros... estalar do açoite... / Legiões de homens negros como a noite / Ferimento semelhante ao feito pelo soldado que feriu Jesus.”

 

 Um rio de sangue divide o quadro, representando os negros que eram raptados, violentados e colocados de forma a não oferecerem resistência, quase sempre deitados e acorrentados. Pe. Paulino quis transmitir esse ambiente violento, torturante e insalubre em sua obra “Navio Negreiro”.

 

Em contrapartida, se ergue ao centro um corpo negro acorrentado com braços abertos, fazendo alusão ao Cristo Crucificado, no mesmo momento em que um homem, com a mesma ferida na costela que os romanos fizeram a Jesus, o abraça também em sofrimento. Colocando assim Deus como Aquele que sofre em conjunto e, ao mesmo tempo, O que acolhe os aflitos. “Diante de tragédias humanitárias semelhantes são feitas perguntas como “Onde está Deus”? Por que deixou isso acontecer? O que fizemos para merecer isso? “Pois Deus estava no navio negreiro, sofrendo, se humilhando e morrendo junto a eles, a cada um deles”, explica Pe. Paulino.

 

Obra: A CARNE MAIS BARATA É A NEGRA

Música: “A Carne” (Elza Soares) - LINK

Técnica: Acrílica sobre tela com textura e colagem de papel.

 

“A carne mais barata do mercado é a carne negra / (Só-só cego não vê) / Que vai de graça pro presídio / E para debaixo do plástico / E vai de graça pro subemprego / E pros hospitais psiquiátricos”

 

 A técnica utilizada forma um dos quadros mais impactantes da exposição, “A Carne mais barata é a negra”, que mescla anúncios de jornais da época às imagens fortes que povoam o imaginário popular de violência praticada ao povo negro ao longo da história. Ilustrando desde referências às obras de Debret, até a escravização e eventos polêmicos como a morte de George Floyd, homem negro asfixiado por um policial branco dos EUA em 2020.

 

No quadro, se entrelaçam verticalmente 9 corpos em um só corpo. Abaixo do quadro há um homem no pau de arara. Passando por uma mulher que tem em seu rosto um instrumento de tortura usada na escravidão, se chega à George Floyd sendo sufocado por um homem branco e acende a imagem de um homem negro de braços abertos, auréola na cabeça e olhos firmes que olham em direção do observador, semelhante as figuras que retratam Jesus.

 

Permeando o quadro, os recortes de classificados reais da época da escravidão trazem anúncios agressivos de compra, venda e recompensa por pessoas negras em jornais. Entre divulgação de comércio e fuga de pessoas escravizadas fugidas, os cerca de 20 textos inseridos na pintura que já retratam tanta dor, carregam um teor de naturalidade revoltante: “Vende-se uma preta, muito moça com cria; sabendo lavar perfeitamente, e bem desembaraçada para o serviço doméstico; é muito sadia, e o motivo da venda é não querer servir mais a seus antigos senhores.”

 

Obra: BELEZA PURA

Música: “Beleza Pura” (Caetano Veloso) - LINK

Técnica: Acrílica e giz pastel óleo sobre tela.

 

“Moça preta do Curuzu / Beleza Pura! / Federação / Beleza Pura! / Boca do rio / Beleza Pura! / Dinheiro não!... / Quando essa preta / Começa a tratar do cabelo / É de se olhar / Toda trama da trança / Trança do cabelo / Conchas do mar / Ela manda buscar / Prá botar no cabelo / Toda minúcia, toda delícia...”

 

Trazendo a alegria e a beleza da mulher negra, a obra “Beleza Pura” brinca com cores quentes e frias, texturas fluídas e diferentes técnicas, onde o fundo da tela envolve a face de uma mulher com cabelos trançados com conchas e um adorno colorido.

 

A composição de Caetano que serviu de inspiração para o quadro perpassa cenários da Bahia, e que abriga o maior número de pessoas negras no Brasil (81,4% segundo o IBGE - 2019), onde a população negra tem mais autoestima e que abriga diversas iniciativas culturais de empoderamento, como o bloco Ilê Aiyê, primeiro bloco afro do Brasil e uma das expressões culturais que consolidou o Carnaval de Salvador.

 

Obra: SANGUE E AÇÚCAR

Música: “Olhos Coloridos” (Sandra de Sá) - LINK

Técnica: Acrílica sobre tela.

 

“Você ri da minha roupa / Você ri do meu cabelo / Você ri da minha pele / Você ri do meu sorriso / A verdade é que você / Tem sangue crioulo / Tem cabelo duro / Sarará crioulo”

 

Neste quadro de Pe. Paulino, a letra de Sandra de Sá, que enaltece o cabelo negro e denuncia o preconceito racista, ganha outro contorno quando os personagens são colocados em meio a uma plantação de cana de açúcar, local que já foi, e ainda hoje é, cenário de trabalho de escravos ou análogo à escravidão.

 

Na imagem, três homens jovens com cabelos com penteados afro diferentes entre si seguram canas, enquanto uma cana entra, perpassa e perfura o peito de todos eles, em uma alusão ao “sangue e açúcar”, ou seja, dividindo e passando pelos sabores e dissabores de uma vida dura.

 

 Obra: LOUVAÇÃO A MARIAMA

Música: “Louvação a Mariama” (Milton Nascimento) - LINK

Técnica: Acrílica sobre tela com textura

“Maria Mulata / Maria daquela / Colônia favela / que foi Nazaré”

Por teu Ventre Livre / que é o verdadeiro / pois nos gera livres no Libertador,

acalanta o Povo que está em cativeiro / Mucama Senhora e Mãe do Senhor.

Desce novamente às redes da vida / do teu Povo Negro, Negra Aparecida!

 

A música “Louvação a Mariama”, de Milton Nascimento, conta a história de uma mulher negra, pobre, forte, acolhedora, corajosa e pregadora da liberdade, trazendo paralelos com Maria, Mãe de Jesus. Pe. Paulino afirma que é um bom paralelo, porque Nazaré na época era uma cidade sem significado, tal qual uma favela, inclusive sendo descrita na Bíblia (João 1:46) a contestação e o preconceito de Natanael frente à revelação de que o Messias havia nascido em Nazaré, dizendo “alguma coisa boa pode sair de Nazaré?”, já que a cidade era vista com desdém na época.

 

Nesse sentido, dando eco a Maria Negra, Pe. Paulino pintou Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, em um cenário que remete ao rio em que foi resgatada, uma rede envolvendo seu corpo, revelando a forma como foi encontrada e, em vez da coroa, (doada pela princesa Isabel) traz sobre a cabeça um turbante colorido, como seria próprio de uma rainha africana.

 

Obra: NANÃ

Música: “Dona Cila” (Maria Gadú) - LINK

Técnica: Acrílica sobre tela.

 

 

 

“Salve, salve essa nega / Que axé ela tem / Te carrego no colo e te dou minha mão / Minha vida depende só do teu encanto / Cila pode ir tranquila /

Teu rebanho tá pronto / Teu olho que brilha e não para / Tuas mãos de fazer tudo e até / A vida que chamo de minha / Neguinha, te encontro na fé”

 

Nessa obra, o artista dá voz à figura de uma anciã do candomblé, Nanã, orixá da sabedoria e dos pântanos. Para Pe. Paulino, além de defender o respeito à pluralidade religiosa, a pintura relembra a importância do papel da avó, da benzedeira e do aconselhamento das figuras com experiência de vida.

 

O padre ressalta que o gênesis africano é muito semelhante ao judaico-cristão, relacionando a lama como matéria-prima para criação do ser humano e, segundo a crença, a lama foi oferecida por Nanã, orixá feminino tida como a Grande-Mãe, por ser o barro um material mais maleável, moldável. Por isso a pintura retrata uma mulher idosa sob um jarro, jorrando água e revestida de flores da cor lilás (seus símbolos e sua cor), e portando um instrumento sagrado chamado ibiri, um instrumento muito poderoso segundo a crença do candomblé. O ibiri tem a finalidade de afastar os espíritos (eguns) para o seu espaço sagrado, e eliminar as energias negativas da comunidade, proporcionando a longevidade.

 

A música escolhida conversa com essa figura da avó, figura de bondade e sabedoria. Dona Cila, avó de Maria Gadú.

 

"Ó meu pai do céu, limpe tudo aí

Vai chegar a rainha

Precisando dormir

Quando ela chegar

Tu me faça um favor

Dê um banto a ela,

Que ela me benze aonde eu for

 

O fardo pesado que levas

Deságua na força que tens

Teu lar é no reino divino

Limpinho cheirando alecrim

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