Muito além de um insulto
O texto de O Fascismo Eterno,
de Umberto Eco, faz parte de uma conferência realizada em inglês na
Universidade Columbia em 25 de abril de 1995, em um simpósio organizado
pelos departamentos de italiano e de francês da universidade, visando o
público estudantil, a fim de celebrar, segundo o autor, a libertação da
Europa. O contexto, na época, era o do atentado de Oklahoma e
ressurgimento de organizações militares de extrema direita nos Estados
Unidos. O texto foi publicado também em junho de 1995 na revista The New York Review of Books e traduzido para a Rivista del Libri
em agosto do mesmo ano sob o título “Totalitarismo fuzzy e
Ur-Fascismo”. Esse mesmo texto foi ainda traduzido e publicado em
diversos jornais no mundo. No Brasil, virou um livreto de 64 páginas
cuja primeira edição saiu em 2018 pela Editora Record.
Nesse
livro, Umberto Eco faz uma reflexão oportuna e atual (apesar dos 25
anos da conferência) sobre o sentido da história e a importância da
memória em tempos aparentemente inocentes onde cepas ideológicas
oportunistas se espalham com virulência em várias partes do mundo
incluindo seu acolhimento constrangedor no Brasil.
Dependendo
do grau de polarização política, é comum a pecha de fascismo ou
fascista a governos, pessoas ou sociedades que manifestam algum apreço
às características (não todas) do fascismo italiano liderado por Benito
Mussolini entre os anos de 1921 e 1943. Para Eco, que viveu os
estertores do fascismo italiano em 1942, aos 10 anos, o fascismo não se
restringe apenas a um insulto. “O termo ‘fascismo’ adapta-se a tudo
porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e
ele continuará sempre a ser reconhecido como fascista. Tirem do fascismo
o imperialismo e teremos Franco e Salazar; tirem o colonialismo e
teremos o fascismo balcânico. Acrescentem ao fascismo italiano um
anticapitalismo radical (que nunca fascinou Mussolini) e teremos Ezra
Pound. Acrescentem o culto da mitologia celta e o misticismo do Graal
(completamente estranho ao fascismo oficial) e teremos um dos mais
respeitados gurus fascistas, Julius Evola.”
Hoje
há uma profusão de títulos de livros e teses de escritores,
historiadores, sociólogos e ex-secretários de estado tentando entender o
fascismo, sobretudo sua recidiva em nossos dias.
Contudo,
essa reflexão de Umberto Eco, longe de ser uma espécie de guia para
detectar fascistas na vizinhança, é um alerta para quem preza por
sociedades onde prevalece o Estado Democrático de Direito. Ele disseca
quatorze arquétipos do fascismo italiano que delineiam os filhotes de
serpentes presentes na translucidez do ovo, como na metáfora de Ingmar
Bergman sobre o nazismo, um primo do fascismo.
As
democracias morrem não sem antes adoecerem. Os sintomas podem ser
diagnosticados na comparação com os arquétipos enumerados por Umberto
Eco em O Fascismo Eterno. À guisa de spoiler,
aqui vão três deles: (1) “Pensar é uma forma de castração. Por isso, a
cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes
críticas”; (2) “O desacordo é visto como um sinal de diversidade. O
Ur-Fascismo cresce e busca o consenso utilizando e exacerbando o natural
medo da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou que
está se tornando fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é,
portanto, racista por definição e (3) O Ur-Fascismo provém da frustração
individual ou social. Isso explica por que uma das características
típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas,
desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política,
assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos. Em nosso tempo,
em que os velhos ‘proletários’ estão se transformando em pequena
burguesia (e o lumpesinato se auto exclui da cena política), o fascismo
encontrará nessa nova maioria o seu auditório”.
Soa familiar? A leitura e reflexão dos onze arquétipos restantes é assustadoramente reveladora do que vivemos hoje no Brasil.
• Paulo Zacarias é editor, tradutor, professor de Ciências e membro da 4ª Igreja Presbiteriana Independente em Sorocaba, SP.
>> Conheça também o livro Capitalismo e Progresso: Um diagnóstico da sociedade ocidental, de Bob Goudzwaard
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