terça-feira, 26 de dezembro de 2023

A ÁRVORE DA SERRA INTERPRETAÇÃO...02


 

Crítica e interpretação de textos do poeta Augusto dos Anjos.

 

A cena edipiana em ‘A árvore da serra’

        “A árvore da Serra” é um dos sonetos mais populares de Augusto dos Anjos. Comumente o vemos recitado em aulas, festas, saraus literários e demais reuniões em que se declama o poeta. A atração que exerce sobre o público vem em grande parte da sua carga dramática — um dramatismo que chega a descambar para o patético.

 

      O poema estrutura-se como um diálogo entre um pai e um filho; o primeiro quer matar uma árvore sob a alegação de que ela não tem alma e constitui obstáculo a que ele envelheça em paz. O filho protesta, afirmando que as árvores possuem, sim, alma, e aquela que o pai pretende matar tem a sua. São inúteis os protestos, pois um machado acaba ceifando a árvore e, com ela, a vida do filho.

 

      O dramatismo do soneto o insere no que Kayser chama de “apóstrofe lírica”, que é o lirismo marcado por elementos de tensão. Pai e filho se antagonizam, e a vitória de um representará a morte do outro. Esse dado concorre para a pungência da composição, a qual é realçada pela maneira como o poeta elabora o desfecho. Após o último apelo do filho (Não mate a árvore, pai, para que eu viva), suspende-se o diálogo e a deliberação do pai se revela não mais por palavras, mas pela ação. A conjunção aditiva sugere que houve um intervalo expectante entre o último pedido e o ato de ceifar o vegetal (E quando a árvore…). Ou seja: entre palavras e ação medeia um tempo em que reverbera a súplica do filho e não se conhece a resolução do pai. Esta só se explicita quando se narra a queda da árvore, ceifada por um machado ao qual se estendem as características de quem o manuseia (insensibilidade, estupidez). 

 

     O desfecho é narrado por um emissor, ou seja, um terceiro personagem, que se identifica com o filho.  Mediante a animização presente em “olhando a pátria serra”, ele praticamente confirma que as árvores têm alma; do contrário, no momento de morrer, essa árvore não olharia com ar saudoso para o lugar onde nasceu.

 

     Acentua o apelo emocional o último terceto, de grande visualismo na descrição da queda da árvore. Que não é só dela: árvore e filho caem simultaneamente, um abraçado à outra, como se constituíssem um mesmo organismo, uma mesma entidade. Essa imagem confirma o protesto inicial do filho; matar a árvore seria também matá-lo. A referência à morte ganha valor expressivo por se apresentar como uma perífrase de caráter metaléptico (e nunca mais se levantou da terra). “Não mais se levantar da terra” é um dos efeitos de morrer. As reiterações perifrásticas, por sinal, constituem uma marca do estilo de Augusto dos Anjos, cujo excesso formal já levou a que o vinculassem ao expressionismo e ao barroco.

 

          É possível associar “A árvore da Serra” a pelo menos dois outros poemas de Augusto: “Vozes da morte” e “Debaixo do tamarindo”.  Os versos iniciais do primeiro remetem diretamente “A árvore Serra”; são eles: “Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,/ Tamarindo de minha desventura…”. Há em ambas as composições a ideia de morrer fundido ao organismo vegetal, bem como a referência à melancolia: n’”A árvore da Serra”, por meio da expressão “moço triste”; em “Vozes da morte”, pela alusão à “desventura”. A diferença é que em “Vozes da morte” insinua-se a perspectiva de permanência. Escreve o poeta no primeiro terceto: “Não morrerão, porém, tuas sementes!”, e alguns versos depois, justifica a própria continuidade com o amor que teve pela árvore: “Na multiplicidade dos teus ramos, /Pelo muito que em vida nos amamos,/ Depois da morte, inda teremos filhos!” Ou seja, a ideia de morte, presente em “não mais se levantar da terra”, é substituída por um sentimento de perenidade facultado pela sobrevivência das sementes. O amor, energia universal, torna possível resistir à “podridão”, à “ultrafatalidade de ossatura” que o poeta refere no segundo quarteto.

 

           Em “Debaixo do Tamarindo”, os quartetos se abrem com dois adjuntos de tempo de valor antitético. O primeiro, “No tempo de meu pai”, antecipa um conteúdo sombrio.  O que marca o tempo do pai, vinculando melancolicamente o poeta ao passado, é a representação hiperbólica do pranto, da tristeza, do trabalho. Vejamos a estrofe inteira:  “No tempo de meu Pai, sob estes galhos,/ Como uma vela fúnebre de cera,/ Chorei bilhões de vezes com a canseira/ De inexorabilíssimos trabalhos!”.

 

      Ao tempo do pai se opõe um “hoje” que introduz uma espécie de conciliação.  Escreve agora o poeta: “Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,/ Guarda, como uma caixa derradeira,/ O passado da Flora Brasileira/ E a paleontologia dos Carvalhos!” Nessa quadra, ao contrário da anterior, destaca-se o sentimento de proteção, metonimicante indicado pelo substantivo “agasalhos”. Abranda-se a tristeza do eu lírico pelo reconhecimento e a aceitação do vínculo ancestral, que envolve  também a mãe, representada por esse “Carvalhos” (sobrenome de Dona Mocinha) escrito com letra maiúscula.

 

     Nos útlimos versos, o poeta afirma a certeza (mais do que o desejo) de que a sua Sombra vai se fundir às raízes da árvore numa síntese homogênea, o que significa uma espécie de retorno à origem; segundo as teorias científicas da época, a evolução ocorre do homogêneo para o heterogêneo. Logo, a volta à homogeneidade supõe o retorno, a cessação da vida, ou melhor, a absorção do espirito do poeta (ou da sua consciência) pelo organismo vegetal. Essa ideia também aparece no final de “Vozes da morte”, em que ele apostrofa à árvore nos seguintes termos: “Não morrerão, porém, tuas sementes!/ E assim, para o Futuro, em diferentes/ Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,/ Na multiplicidade dos teus ramos,/ Pelo muito que em vida nos amamos,/ Depois da morte, inda teremos filhos!”

 

    Comparando-se os três sonetos, percebe-se que “A árvore da Serra” destoa dos outros dois. Primeiro, porque a árvore enfocada nesta composição não é o tamarindo querido do poeta, mas uma distante e solitária árvore serrana. Segundo, porque em seu desfecho não se contempla nenhuma perspectiva de conciliação ou continuidade — pelo  contrário. A percepção desse contraste parece-me um primeiro passo para compreender “A árvore da serra”, que já recebeu pelo menos duas interpretações.

 

          Há quem considere esse poema um protesto ecológico, e há quem o veja como o relato de uma tragédia. Ele não me parece nem uma coisa nem outra. No tempo em que foi escrito, praticamente não se falava em ecologia, nem as árvores precisavam ter alma para escapar à sanha dos derrubadores de florestas. Quanto à possibilidade de relatar uma tragédia, acho-a também improvável, mesmo porque alguns dos que defendem essa interpretação confundem dados biográficos do poeta.

 

         Eis o que escreve sobre o assunto Soares Feitosa, criador do “Jornal de Poesia” e um dos defensores dessa interpretação: “a mãe de Augusto mandara matar a filha do vaqueiro por quem o jovem Augusto se apaixonara e (…) toda a amargura da obra de Augusto se devia a esse fato, retratado no soneto A Árvore da Serra”. A filha do vaqueiro se chamaria Francisca, representada metaforicamente pelo junquilho, e os cedros seriam “as moças paraibanas, do coronelato dos engenhos senhoriais, do Nordeste zelinsdoregueano”.

 

          O primeiro equívoco dessa interpretação está em que Francisca era na verdade irmã de Augusto; a jovem filha de retirantes com quem ele teve um caso e que levou uma surra a mando de Donha Mocinha chamava-se Amélia; segundo Ademar Vidal ela foi “o drama passional vivido pelo poeta. Paixão mesmo. Por isso Dona Mocinha procurou agir energicamente. A moça teve de casar-se com outro, pois a sua condição social não permitia que o ‘autor do mal’ realizasse seus desejos de com ele contrair matrimônio”. (O Outro Eu de Augusto dos Anjos, p. 79). A troca de Amélia por Francisca, no entanto, tinha o seu motivo: corriam rumores de que havia uma ligação do poeta com essa irmã, que apareceria num de seus poemas associada a Santa Francisca, aquela “cujo cilício as tentações suplanta”.

 

Evidentemente tais detalhes biográficos, sobre os quais há muitas e por vezes desencontradas versões, ajudam pouco a que se chegue a uma interpretação do poema — desse e de qualquer outro. Por que os cedros seriam “as moças paraibanos do coronelato”, e o junquilho uma representação de Fransisca, ou Amélia? Esse tipo de hermenêutica, centrado no homem e não na obra, visa atender mais a uma expectativa do leitor, que vê nos textos um reflexo direto da angústia pessoal do artista. Isso termina por empobrecer-lhe a poesia, que envolve uma multiplicidade de sentidos além do biográfico. Os poemas refletem, claro, os infortúnios pessoais, mas fazem isso por meio de um código que articula outros sentidos. O mais sensato, em vez de se ater ao biografismo, é observar a recorrência das imagens, o contexto intra e extratextual e a inserção do poema na cultura do seu tempo. Tentaremos fazer isso, não sem descartar a biografia, mas associando-a a determinadas matrizes do momento científico e filosófico em que o poeta viveu, bem como a alguns temas recorrentes na sua poesia.

 

Para compreender o poema, deve-se considerar que a tendência a dar alma a coisas, vegetais e bichos é comum em Augusto dos Anjos. Decorre do que há de monismo em sua obra. O monismo, concepção filosófica que remonta ao eleatismo grego, defende que “a realidade é constituída por um princípio único, um fundamento elementar, sendo os múltiplos seres redutíveis em última instância a essa unidade”. Augusto, a bem da verdade, não foi monista, pois os inúmeros contrastes que via na natureza, no cosmo e no próprio ser humano não lhe permitam partilhar dessa concepção unitária. Pelo contrário, acossado por dualismos de toda ordem, perseguiu até morrer esse “Danado Número Um” a que se refere num de seus poemas. No entanto, a teoria monista lhe foi conveniente para alimentar o animismo por meio do qual pretendia irmanar os elementos do universo. O monismo foi sobretudo, para ele, uma forma de contestar o materialismo com o qual tomou contato na Escola de Direito do Recife, onde basicamente se estudava o positivismo de Augusto Comte.

 

      Como já tive oportunidade de escrever, Augusto dos Anjos “vivenciou as dúvidas e contradições próprias do final do século XIX e início do século XX, com o positivismo ameaçando credos religiosos e propondo um ordenamento social pautado, essencialmente, em valores da razão e da ciência. (…) Embriagado de Spencer e de Haeckel, o poeta sonha com o momento em que o indivíduo, absorvido na corrente da evolução universal, enfim se libertará da memória e da culpa. Ao mesmo tempo (…), refere com rigor mórbido o pesadelo de um eu profundamente solitário, angustiado por fantasmagorias e temores irracionais”.

 

Augusto rejeitava profundamente o positivismo. A crítica ao Filósofo Moderno, em “Monólogo de uma Sombra, é uma eloquente manifestação desse repúdio. As especulações do Filósofo Moderno só poderiam levar, como ele diz nesse poema, “ao horror dessa mecânica nefasta a que todas as coisas se reduzem”; um universo puramente material, mecânico, é um universo sem alma. A tal perspectiva o poeta opõe um animismo de fundo panteísta, por meio do qual se irmanariam  todas as criaturas.  .

 

           Alexei Bueno destaca acertadamente, em sua introdução às obras completas do poeta, “a maneira como o monismo evolucionista se transformou na poesia de Augusto dos Anjos em uma espécie de sistema místico totalizador, que lhe serviu de base tão legítima para o exercício estético quanto diversos sistemas religiosos para poetas místicos de todos os tempos”. (Augusto dos Anjos: origens de uma poética, p. 33). Por via dessa visão mística totalizante, Augusto se solidariza com as “espécies sofredoras”. E vai mais além: é capaz de empatizar com os reinos vegetal, animal e até mineral, que representaria um nível estacionário da matéria e, com isso, uma espécie de colapso no processo evolutivo, do qual o homem seria o trágico coroamento. “Trágico” porque a nobreza que a consciência confere ao ser humano o torna responsável pelos que, sem voz, buscam ascender a um patamar superior — ou, na sua linguagem, aspiram à  “ganglionária célula intermédia”. Esse dever de solidariedade para com os organismos não pensantes é uma das formas pelas quais na sua poesia revela-se o sentimento de culpa.

 

    O animismo presente “A árvore da serra” não é, pois, novidade nas composições de Augusto dos Anjos. O que chama a atenção é que esse animismo aparece no contexto de um conflito entre pai e filho. A circunstância de um ter de morrer (já que a morte da árvore representa a morte do filho) para que o outro sobreviva reproduz a cena do Complexo de Édipo — embora, curiosamente, de forma invertida. Na cena edipiana clássica, o pai é que é obstáculo à sobrevivência do filho e, por isso, deve simbolicamente morrer. No soneto, pelo contrário, é o filho que deve desaparecer para que o pai continue vivo e tenha uma velhice tranquila

 

    A afirmação inicial do pai (de que as árvores não têm alma) é a justificativa para que se corte o vegetal. Sendo o pai, historicamente, a voz da autoridade e do poder, não é um despropósito ver nessa justificativa uma contestação às crenças animistas do poeta. E uma contestação repreensiva, feita por quem, além de pai, constituiu-se para Augusto num dos primeiros porta-vozes das ideias positivistas. O doutor Alexandre dos Anjos tinha cultura, refinamento de espírito e admiração pela ciência. Segundo R. Magalhães Júnior, o pai de Augusto “era abolicionista e republicano, com uns laivos de positivismo. Além de ter pendores artísticos (…), possuía boa cultura humanística e grande curiosidade intelectual” (Poesia e vida de vida de Augusto dos Anjos, p. 15). Embora não tivesse aderido ao positivismo no nível em que o fez seu irmão, Generino dos Santos, o Dr. Alexandre mostrava-se sensível ao ideário de Augusto Comte e seus seguidores. Ele, que instruiu os filhos desde a alfabetização, foi por anos professor de Augusto e certamente, de forma direta ou não, lhe passou essas ideias.

 

     A dramatização presente em “A árvore da serra” traduz a dualidade em que se debatia o espírito do poeta — dualidade entre o racionalismo de base científica e a religiosidade que latejava em seu íntimo. Essa religiosidade, por sua vez, refletia e ao mesmo tempo alimentava o sombrio ambiente do engenho em que Augusto fora criado. Segundo Horácio de Almeida, “os filhos de Dona Mocinha revelavam-se extremamente medrosos”; tanto Augusto como os irmãos viviam “num meio de avisos sobrenaturais e almas de outro mundo, ainda agravado pela solidão do engenho”. (RMJ, p18).

 

     O Dr. Alexandre, com sua cultura e pendor científico, era uma força contrária a isso. E no conflito espelhado em “A árvore da serra”, o pai supera intelectualmente o filho. Vence-o naquilo de que o filho não podia se desvencilhar — a dependência ao animismo, que fundamenta a sua visão mística do mundo. No final da composição, como vimos, a morte do solitário espécime vegetal confirma a verdade segundo a qual as árvores têm alma. Ou seja: o filho tem razão — mas paga duramente por isso. O preço de ter razão contra o pai é a morte, a culpa, a castração — simbolizada justamente pelo corte da árvore. 

 

            O conflito edipiano aparece em outras composições de Augusto dos Anjos e não há por que desconhecê-lo em “A árvore da Serra”. Isso torna pertinente o apelo a elementos da psicanálise para compreender a sua poesia. Mesmo porque, conforme já tivemos ocasião de observar, entre os muitos contrastes presentes na obra do paraibano destaca-se o de um “cérebro inicialmente exigido e decantado, porém logo esgotado em seus esquemas, desgastado em suas racionalizações, derrotado por obsessões e suspeitas que ao próprio eu lírico, em sua prodigiosa intuição, apontam o limite além do qual a inteligência nada mais tem a dizer. É quando, num reconhecimento da impotência da instância racional, que não pode explicar os dualismos em que se debate a alma humana, o poeta parece conceder a primazia ao sonho, privilegiando o saber que deriva do inconsciente”.

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