Teologia
em forma narrativa pode ser terapêutica?
Por
Davi C Ribeiro-Lin
Durante
meu trabalho de doutorado, minha tese sugeriu que Agostinho de Hipona (354-430)
em suas Confissões (397-401) não está apenas escrevendo uma autobiografia, mas
uma teografia, uma narrativa centrada no outro, escrita por uma
pessoa-em-relação e que usa o tema da confissão (“abrir as feridas do pecado”,
“louvar o médico”) para se apresentar como um paciente “pela língua de meu
cálamo” (Conf. 11.2.2) diante do Cristo Médico (Christus Medicus). À medida que
Deus se torna seu médico interior, as Confissões tornam-se como um ato
terapêutico para seu escritor, “assim agiram em mim quando as escrevia e agem
quando as leio” (Retract. 2.6.1).
Agostinho
procurou suscitar no leitor uma resposta orientada à saúde, “quando são lidas e
ouvidas despertam o coração, a fim de que ele não durma no desespero” (Conf.
10.3.4). Ou seja, a narrativa das partes difíceis da vida de Agostinho não se
destinava apenas a ele mesmo e à recuperação do seu coração, mas principalmente
a gerar esperança e saúde ao nosso próprio coração inquieto (Conf. 1.1.1).
Seguindo a visão de Agostinho de Hipona ao escrever Confissões para transmitir
esperança em meio à angústia a um público mais amplo, procurei seriamente
compreender se a perspectiva de Agostinho tinha potencial para se tornar um
recurso terapêutico para as sociedades do século 21. Na época do meu doutorado
não tive oportunidade de testar sua aplicabilidade através de uma metodologia
que fizesse desta visão uma intervenção prática concreta. Mas isso logo mudou
quando entrei na sala de aula.
Nos
últimos anos (2019-2022), estudantes de pós-graduação em teologia do Seminário
Teológico Servo de Cristo em São Paulo (Brasil) escreveram suas teografias pessoais
e recontaram uma fase de vida particularmente difícil ou um evento estressante
em suas vidas, tendo as Confissões como modelo. Após terem tido diversas aulas
sobre a visão terapêutica das Confissões, esses alunos passaram a reconhecer
Agostinho como referência para recontar suas próprias histórias pessoais e
narrar uma jornada existencial ou experiência pessoal estressante em uma
teografia. Conforme propôs Agostinho, esse trabalho teve forma de uma oração de
formato eu-tu dirigida ao médico divino, e por ela as biografias pessoais de
fragmentação e perda puderam ser percorridas pela linguagem poética dos salmos
e pela teologia agostiniana da graça.
O
material rico, significativo e pessoal produzido me convenceu de que estes
estudantes não só foram capazes de ouvir o coração de Agostinho (Conf. 10.3.4),
mas as suas próprias teografias aumentaram a sensação de estarem sob o cuidado
benevolente de Deus e promoveram a vulnerabilidade, a gratidão e a humildade. A
memória ferida, quando transpassada pela flecha da graça e colocada a caneta no
papel, narrou uma existência vulnerável dentro da presença de Deus. Como
sugeriu o apóstolo Paulo, ao recontar experiências dolorosas, “onde abundou o
pecado, superabundou a graça” (Rm 5.20). À medida que a cultura contemporânea
flerta com o individualismo e o narcisismo, muitas vezes os líderes cristãos
desenvolvem as suas habilidades antes de seu caráter e virtudes. Entendi que
estas teografias num programa de formação pastoral como um Mdiv (Mestrado em
Divindade) constituíam um antídoto contra culturas de liderança que não são
moldadas por uma profunda consciência da graça e da humildade.
Além
disso, tornou-se claro que os estudantes poderiam responder melhor à proposta
de Agostinho ao expressar as partes difíceis da vida através da escrita
narrativa dos acontecimentos de sua vida, entrelaçando a biografia com um
significado teológico. De particular importância é a ligação intrínseca entre o
reconhecimento de sentido e as narrativas, pois as histórias conseguem configurar
eventos dispersos num todo coerente. As narrativas de vida concedem estrutura
para a reinterpretação da experiência, organizam a memória e reavaliam
acontecimentos negativos e angustiantes. Reescrever a narrativa de alguém
alinha-se terapeuticamente com o que Agostinho intuiu (Retract. 2.6.1), de que
escrever é uma técnica poderosa para reconstruir um evento de vida estressante
ou traumático.
Embora
Confissões dirija-se a Deus como o médico da vida interior de Agostinho e tem a
intenção de promover saúde, é surpreendente que um estudo sistemático da sua
visão terapêutica e seus efeitos ainda não tenha se concretizado. As
considerações para tal empreendimento já se encontram maduras quando se
considera que, nos últimos trinta anos, a área de pesquisa em Religião,
Espiritualidade e Saúde (Religion, Spirituality and Health – RSH) estabeleceu
firmemente a conexão entre espiritualidade e saúde mental e criou condições
favoráveis para o diálogo interdisciplinar e a verificação empírica. Percebendo
que ainda há trabalho a ser feito, esta intuição evoluiu em um projeto de
pesquisa e intervenção, denominado “Teografia como Cura Animarum: Confissões de
Agostinho como construção de sentido narrativo para a saúde mental”. Esta
pesquisa tem como objetivo verificar os efeitos da teologia de Agostinho na
saúde mental por meio de um modelo empírico de escrita narrativa que é
interdisciplinar em seu conceito, promove a construção de significado para
gerar histórias redentoras e pode ser avaliado em seus resultados na saúde. Esperamos
que esse trabalho resulte em (I) reconstrução crítica da teologia das
Confissões em diálogo com a pesquisa em psicologia (II) compreensão do processo
pedagógico que estimula narrativas terapêuticas entre culturas (III) resultados
transculturais na interface do uso de narrativas para a construção de
significado e a saúde mental.
Bruner
(2004) argumentou que as narrativas de vida são variantes das narrativas
canônicas da cultura, moldadas por processos linguísticos cognitivos e
estruturais e de coautoria da pessoa e do contexto cultural no qual o
significado está inserido (McAdams, 2001). Ao ouvir o evangelho e a cultura,
além de trazer inspiração sobre a história da igreja, este projeto será capaz
de reconhecer quais temas, conceitos e imagens ressoam de forma mais pungente e
como o legado de Agostinho fertiliza o diálogo entre narrativas de vida,
teologia e cultura.
Na sua
palestra inaugural do OMSC (Overseas Ministries Studies Center – Centro de
Estudos de Ministérios Internacionais) no Seminário Teológico de Princeton
(setembro de 2020), Andrew Walls sugeriu que, visto que o centro de gravidade
do cristianismo mudou do Ocidente para o Sul Global, os continentes da Ásia,
América Latina e África tornaram-se “laboratórios teológicos” tanto quanto a Europa
e a América do Norte. O Seminário Servo de Cristo em São Paulo (Brasil) tem
sido nosso próspero “laboratório teológico” para a escrita de narrativas
teológicas e a construção de sentido. Como eu estou em fase de transição para
um cargo de tempo integral em Massachusetts, Estados Unidos, no Seminário
Teológico Gordon-Conwell, e continuo como professor visitante no Brasil, o
projeto agora tem a oportunidade de servir globalmente. Gordon-Conwell possui
representatividade significativa de diversas nacionalidades, especialmente de
estudantes asiáticos e latino-americanos, mas também estudantes africanos,
europeus e da Oceania. Estas novas teografias possibilitam a construção de um
diálogo verdadeiramente mundial e uma comparação intercultural. Contamos que
estas narrativas incluam participantes com histórias de migrantes, visto que a
própria herança de Agostinho era de um homem que vivia entre culturas, o
“mestiço” Agostinho (González, 2016).
A atual
crise global de saúde apela à igreja para mais uma vez examinar e redefinir o
seu papel na sociedade, este projeto traz uma contribuição específica na
interseção entre os estudos missionários, os estudos agostinianos e a história
da igreja e sua importância na revisão da missão da saúde. Com o aumento do
reconhecimento da relevância contemporânea do legado de Agostinho na promoção
da saúde mental, somos lembrados que o cristianismo desde o seu início tem se
empenhado por cura e restauração. Embora as definições de saúde tenham mudado
ao longo dos séculos, a ausência de uma compreensão teológica da terapia
deve-se à saúde ser um conceito e uma tarefa que foi amplamente secularizada.
Embora a tarefa da terapia e da saúde mental nas sociedades contemporâneas
pertença principalmente à psicologia, uma perspectiva teológica sobre a saúde e
a terapia não deve ser deixada de lado. Pesquisas sobre Agostinho, terapia e
saúde apontam para um campo aberto para os teólogos e os lembram de não
negligenciar um tema muito presente nos evangelhos. O papel de Cristo está
associado ao de médico que cura os enfermos, carrega as doenças e perdoa os
pecadores. Ele é o agente da vida em sua plenitude que supera doenças físicas,
interpessoais e espirituais, ênfase que as Confissões de Agostinho de Hipona
podem nos ajudar mais uma vez a recuperar. Agostinho, no entanto, não teve os
privilégios que nos foram concedidos no século 21, quando o cristianismo se
tornou um fenômeno global. A recuperação da tarefa terapêutica da teologia pode
agora acontecer num período de grande expansão teológica mundial dentro do
cristianismo global: panelas fervendo de energia espiritual e narrativas
redentoras vindas de todo o mundo orientadas à saúde.
Davi C,
Ribeiro-Lin, doutor em teologia, psicólogo e professor assistente de teologia
pastoral – Gordon-Conwell Theological Seminary.
Publicado
originalmente no site Overseas Ministries Study Center. Reproduzido com
permissão do autor.
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