Carta
das mulheres pela paz no Natal num mundo em guerra
Com a
aproximação do Natal de Jesus, as histórias das cartas “Trégua de Natal” e
“Carta Aberta de Natal” são um incentivo à promoção da paz?
Por
Lidice Meyer Pinto Ribeiro
Na
Primeira Grande Guerra, na semana que antecedeu o dia 25 de dezembro de 1914,
houve o milagre da “Trégua de Natal” na Frente Ocidental. Nesta ocasião
soldados alemãs e ingleses se confraternizaram em meio a cantigas natalinas,
abraços e até mesmo partidas de futebol. Infelizmente nos anos seguintes este
breve armistício foi se tornando cada vez menor até que deixou de existir. Esta
é uma história bem conhecida.
Mas
poucos talvez conheçam a história das mulheres que lutaram pela paz no Natal de
1914. Tudo começou com uma carta publicada em dezembro de 1914, assinada por
diversas sufragistas alemãs intitulada: "À Aliança Internacional pelo
Sufrágio Feminino, por meio de sua presidente, Sra. Chapman Catt". A carta
era assim dirigida: “Às mulheres de todas as nações, saudações calorosas e
sinceras nestes tempos miseráveis e sangrentos". Numa proposta inovadora,
estas mulheres, expressaram que a “guerra criminalmente reacendida” não deveria
separar as mulheres de todos os países que anteriormente estavam unidas “pelo
esforço comum pelo objetivo mais elevado – a liberdade pessoal e política”.
Apelando para a compaixão feminina, apontavam que "a verdadeira humanidade
não conhece o ódio nacional, nem o desprezo nacional. As mulheres estão mais
próximas da verdadeira humanidade do que os homens".
Alguns
dias depois, uma nova carta, assinada pela ativista alemã dos direitos das
mulheres, Clara Zetkin, foi publicada. Em meio a crescente xenofobia trazida
pela guerra, Clara escreveu que as mulheres de todo o mundo deveriam proteger
os seus filhos contra o "ruído vazio" do "orgulho racial
barato" que enchia as ruas, e que "o sangue dos mortos e feridos não
deve tornar-se uma corrente para dividir o que é necessário entre o presente e
o futuro. Esperança: uni-vos".
Em resposta
às cartas da Alemanha, a sufragista britânica Emily Hobhouse organizou a
redação e assinatura de uma carta pela promoção da paz que ficou conhecida como
“Carta Aberta de Natal”. Hobhouse era conhecida pelo seu ativismo em relação às
condições das mulheres e crianças nos campos de concentração britânicos na
África do Sul. Ao ler as cartas das sufragistas alemãs, Hobhouse percebeu a
importância das mulheres de todo o mundo na mitigação dos danos da guerra e na
promoção da paz. Escreveu então uma carta resposta que intitulou “Carta de
Saudação de Natal” em dezembro de 1914 e coletou as assinaturas de mulheres que
desejassem a paz. Cento e uma mulheres unidas pelo desejo de "relações
fraternas inalteradas" e um fim rápido das hostilidades assinaram a carta,
incluindo norte-americanas e Kasturba, a esposa de Gandhi.
A
saudação da carta dirigia-se abertamente às "Irmãs", enfatizando a
irmandade feminina mundial. Como, devido à guerra, era impossível enviar a
carta-resposta diretamente às mulheres da Alemanha, o conteúdo dela foi
publicado em um jornal dos Estados Unidos, uma nação neutra nesta época. Era
uma carta de Natal em um mundo em guerra: “A mensagem de Natal soa como uma
zombaria para um mundo em guerra, mas aquelas de nós que desejaram e ainda desejam
a paz podem certamente oferecer uma saudação solene àquelas de vocês que se
sentem como nós”.
Na
primavera de 1915, cento e cinquenta e cinco mulheres alemãs escreveram a
"Carta aberta em resposta à carta aberta de Natal de mulheres inglesas
para mulheres alemãs e austríacas", publicada em 1 de março de 1915. A
carta começava: “Às nossas irmãs inglesas, irmãs da mesma raça, expressamos em
nome de muitas mulheres alemãs o nosso caloroso e sincero agradecimento pelas
suas saudações de Natal, das quais só ouvimos falar recentemente. Esta mensagem
foi uma confirmação do que previmos – que as mulheres dos países em guerra, com
toda a fidelidade, devoção e amor ao seu país, podem ir além e manter a
verdadeira solidariedade com as mulheres de outras nações em guerra, e que as
mulheres realmente civilizadas nunca percam sua humanidade...”.
Em
continuidade às cartas pela paz, entre 28 de abril e 1 de maio de 1915, um
grande congresso reunindo 1.150 mulheres da América do Norte e da Europa
aconteceu em Haia para discutir propostas de paz. O evento foi chamado de
Congresso Internacional de Mulheres, ou Congresso das Mulheres pela Paz. A
ideia deste Congresso já existia desde o início da guerra, em agosto de 1914,
quando Rosika Schwimmer, natural da Áustria-Hungria que trabalhava em
Inglaterra, ao ser impedida pela guerra de regressar a casa, delineou a ideia
de uma conferência internacional de neutros para mediar entre as nações em
guerra. Dentre as mulheres presentes no Congresso de 1915, Chrystal Macmillan,
uma das signatárias da Carta Aberta de Natal e Rosika Schwimmer foram
escolhidas para viajar às nações neutras e defender a proposta de paz do
Congresso de Mulheres. Como parte desta estratégia, viajaram aos Estados Unidos
e apresentaram suas propostas ao Presidente Woodrow Wilson. Muitas das
propostas de paz elaboradas por elas foram usadas por Wilson nos seus Quatorze
Pontos, e os esforços das mulheres ajudaram a encorajar a fundação posterior da
Liga das Nações.
Desde
2022 temos acompanhado diariamente pelos noticiários a guerra entre Rússia e
Ucrânia. Este ano soma-se ainda o conflito Israel-Palestina. Não há como se
manter isento e impassível. A cada informação sobre os conflitos nos comovemos
com tanta dor e o sofrimento causado pelas guerras. Em meio a tantas notícias
tristes, na proximidade da celebração do Natal de Jesus, as histórias das
cartas “Trégua de Natal” e “Carta Aberta de Natal” devem nos motivar a nos
esforçarmos para contribuir de alguma forma pela paz. Uma simples troca de
cartas entre mulheres de nações em guerra ajudou a promover os objetivos da
paz. Se um grupo de mulheres conseguiu fazer a diferença no início do século
20, o quanto hoje poderia ser feito com a união de todos, homens e mulheres em
prol da paz.
--
Carta
aberta de Natal
Dezembro
de 1914
Às
Mulheres da Alemanha e da Áustria
Irmãs,
Algumas
de nós desejamos enviar-lhes uma palavra nesta triste época de Natal, embora só
possamos falar através da imprensa. A mensagem de Natal soa como uma zombaria
para um mundo em guerra, mas aquelas de nós que desejaram e ainda desejam a paz
podem certamente oferecer uma saudação solene àquelas de vocês que se sentem
como nós. Não esqueçamos que a nossa própria angústia nos une, que estamos
passando juntas pela mesma experiência de dor e sofrimento.
Presas
nas garras de circunstâncias terríveis, o que podemos fazer? Lançadas neste mar
turbulento de conflito humano, só podemos atracar naquelas praias calmas onde
estão, como rochas, as verdades eternas – Amor, Paz, Fraternidade.
Oramos
para que vocês acreditem que aconteça o que acontecer, podemos manter nossa fé
na paz e na boa vontade entre as nações; embora tecnicamente em inimizade em
obediência aos nossos governantes, devemos lealdade àquela lei superior que nos
ordena a viver em paz com todos os homens.
Embora
nossos filhos sejam enviados para matar uns aos outros e nossos corações
estejam dilacerados pela crueldade desse destino, mesmo assim, através da dor
suprema, seremos fiéis à nossa feminilidade comum. Não permitiremos que nenhuma
amargura entre nesta tragédia, santificada pelo sangue vital dos nossos
melhores, nem mancharemos com ódio o heroísmo do seu sacrifício. Embora muito
tenha sido feito por todos os lados, vocês deplorarão, tão profundamente quanto
nós, devemos nos recusar firmemente a dar crédito a essas histórias falsas tão
livremente contadas a nós, umas às outras?
Esperamos
que diminua a sua ansiedade saber que estamos a fazer o nosso melhor para
suavizar a sorte dos seus civis e prisioneiros de guerra nas nossas terras, ao
mesmo tempo que confiamos na sua bondade de coração para fazer o mesmo pelos
nossos na Alemanha e na Áustria.
Vocês
não sentem que a vasta matança de nossos exércitos adversários é uma mancha na
civilização e no cristianismo, e que um horror ainda mais profundo é despertado
ao pensar nessas vítimas inocentes, as incontáveis mulheres, crianças, bebês,
velhos e doentes, perseguidos pela fome, doenças e mortes nas áreas devastadas,
tanto no Oriente como no Ocidente?
Tal
como vimos na África do Sul e nos Estados dos Balcãs, o peso da guerra moderna
recai sobre os não-combatentes e a consciência do mundo não consegue suportar
tal situação.
Não é
nossa missão preservar a vida? A humanidade e o bom senso não nos levam a dar
as mãos às mulheres dos países neutros e a exortar os nossos governantes a
impedir mais derramamento de sangue?
O
alívio, por mais colossal que seja, pode alcançar apenas poucos. Podemos ficar
quietas e deixar que os indefesos morram aos milhares, como devem morrer – a
menos que nos despertemos em nome da Humanidade para salvá-los? Só existe uma
maneira de fazer isso. Todas devemos insistir para que a paz seja feita
apelando à Sabedoria e à Razão. Uma vez que, em última instância, são elas que
devem decidir as questões, será que podem começar demasiado cedo, se quiserem
salvar a feminilidade e a infância, bem como a masculinidade da Europa?
Mesmo
através do choque de armas, valorizamos a visão do nosso poeta, e já parecemos
ouvir:
“Cem
nações juram que haverá
“Piedade,
Paz e Amor entre os bons e os livres.”
Que o
Natal apresse esse dia. A paz na Terra desapareceu, mas pela renovação da nossa
fé de que ela ainda reina no coração das coisas, o Natal deverá fortalecer-nos
tanto a vós como a todas as mulheres para lutarmos pelo seu regresso.
Somos
suas nesta irmandade de tristeza,
Emily
Hobhouse e mais 100 signatárias
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