Através do Brasil: um livro que idealizou o país...
Lançado em 1910, o best-seller didático de
Manoel Bomfim e Olavo Bilac divulgou, durante décadas, a utopia de uma nação
pacífica, unindo o velho e o novo em torno de ideais republicanos. E mantendo
hierarquias regionais, raciais e de gênero...
Desenho que
ilustrou a décima edição, de 1923, pela Livraria Francisco Alves. Fonte: Iba
Mendes
Por Paula Ribeiro e Piero Detoni
Quando atentamos ao contexto histórico da passagem
do século XIX para o XX é possível averiguar que não são poucas as tentativas
de se equacionar a representação da nacionalidade brasileira. Ou seja, a
sintetização de uma identidade nacional é algo que passa pelos horizontes
intelectuais e políticos dos nossos homens e mulheres de letras. Isso em uma
situação onde várias transformações marcam aquela sociedade e remodelam a
paisagem do país, podendo modificar o entendimento corrente acerca da ideia de
nação. A Abolição, a Proclamação da República, a necessária inclusão dos
cidadãos analfabetos nas escolas e o crescimento acentuado da população urbana
do país são algumas das sinalizações mais visíveis e tangíveis de que os tempos
são outros. É nesse cenário em movimentação acelerada e de transformações
potentes que emergem as campanhas em prol da alfabetização dos jovens
brasileiros. Vale ressaltar que a Carta Constitucional de 1891 restringe
o voto do analfabeto. Para que a cidadania possa ser conquistada se faz
necessário a difusão da instrução popular, posto que somente dessa forma o status
quo pode ser, de alguma forma, alterado. Essa disposição demanda a
publicação de uma série de livros infantis, até então pouco produzidos, para o
uso das escolas regulares, meio pelo qual tais sujeitos acreditam alcançar o
seu público alvo, fomentando o interesse pela nacionalidade nos primeiros anos
da aprendizagem escolar.
Emerge um novo público leitor no Brasil: a criança
e o jovem. Acontecimento progressista uma vez que são raríssimos os livros
didáticos nas poucas escolas primárias criadas pela primeira lei brasileira de
Instrução Pública, de 1827. Dizemos que os objetivos de escolarizar a
literatura infantil alcançam o plano ideal para esse tipo específico de bem
cultural, a partir do qual os seus autores escrevem as suas obras por meio de
um olhar duplo. Eles atendem aos reclames do público nascente, oriundo das
políticas públicas voltadas à educação nacional, bem como aos anseios e aos
desejos das autoridades republicanas, na medida em que esse olhar cruzado lhes
confere a autoridade de escritores engajados em prol da causa educacional no
Brasil (NAGLE, 1976).
Após a República, os livros de leitura passam a
retratar o passado nacional a partir das transformações a que o país assiste.
Eles possuem uma missão estratégica: o compromisso de criar uma representação
possível para a nacionalidade e para o que é ser brasileiro(a), além de
transmitir aos jovens uma cadeia de símbolos, narrativas e metáforas que
retratam o país a partir da sua nova roupagem sociopolítica. Quer dizer, os
livros de leitura servem para fomentar uma interpretação homogênea, patriótica
e cívica do Brasil. O seu recente boom não esconde o seu claro
compromisso político: de se portarem como articuladores e como difusores de
representações da civilização nos trópicos, realçando os padrões nacionalistas
requeridos à época, onde são destacadas ideias que frisam a identidade e a
grandeza do Brasil, bem como as condutas de sociabilização necessárias para que
se forme um povo com atributos distintivos visando o progresso, a moralidade e
a defesa nacional. Nesse tipo de gênero escolar o conceito de pátria é bastante
presente, enfocando as preocupações com o território nacional e com a
disseminação dos limites geográficos, tanto físicos quanto sentimentais.
O aclamado livro de leitura Através do Brasil
foi publicado por Bomfim em coautoria com Bilac no ano de 1910. André Botelho
assinala que o projeto dos intelectuais enlaça uma parceria de amizade
confirmada ainda no ano de 1888, quando saído da Bahia Bomfim se muda para o
Rio de Janeiro com o objetivo de terminar os seus estudos na Faculdade de
Medicina da capital federal (BOTELHO, 2002). Através do Brasil é pensado
como livro de leitura para os alunos do curso médio das escolas primárias
brasileiras. Livros de leitura são o que hoje chamamos de paradidáticos.
De todo modo, depreende-se dessas leituras que o
aspecto ficcional da narrativa de viagem escrita por Bomfim e Bilac possui
esteio referencial de “vivência” e de “experiência”, tornando o livro um gênero
híbrido entre literatura e história. Os autores, para além da viagem imaginada
no livro, são, também, conhecedores dos personagens e dos cenários que compõem
a obra. É um livro de “literatura-histórica” ou vice-versa.
Através do Brasil é aceito e
divulgado pelo Conselho Superior de Educação Pública, situado na cidade
do Rio de Janeiro. O livro é adotado por diversos estados, tais como São Paulo,
Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, Sergipe e Amazonas. Considerar a recepção
positiva da obra entre o público escolar brasileiro faz de Bomfim e de Bilac, outsiders
da história disciplinada, autores consagrados e estabelecidos na confecção
desse tipo de gênero “fronteiriço” entre literatura e história. Passadas cerca
de quatro décadas desde a sua primeira edição, Através do Brasil torna-se
um verdadeiro best-seller nacional. De acordo com Mariza Lajolo (2000),
o livro conta, em 1958, com 43 edições publicadas. De fato, um grande sucesso
caso pensemos, por exemplo, nas demais obras de Bomfim, que durante o século XX
passam por um processo de eclipse acentuado. E levamos também em consideração
que os números são expressivos em termos de publicação pedagógica no Brasil,
tanto em termos de edições, como visto, quanto em longevidade do seu uso no
ensino. “Em 1965 o livro deixou de ser editado. A considerar os números aqui
apresentados, calcula-se, por alto, uma quantidade de mais de meio milhão de
exemplares vendidos” em território nacional (SANTOS, OLIVA, 2004, p.
112).
Na parte introdutória do livro, Bomfim e Bilac
argumentam que o intuito principal movido por eles nessa iniciativa intelectual
é o de propor uma narrativa capaz de deixar à disposição dos estudantes os
“cenários e costumes mais distintivos da vida brasileira” (BOMFIM; BILAC, 2000,
p. 43), mesmo concordando que a escola primária deva ensinar muito mais do que
a obra se propõe. Percebemos que o texto confeccionado pelos dois autores
almeja difundir representações do Brasil que sejam assimiladas pelos alunos
tendo como mote orientador certos aspectos básicos do que é concebido como a
nossa formação histórico-social até a Primeira República. Para alcançar esse
intento a narrativa do livro é elaborada de maneira ligeira, contendo 82
capítulos curtos, com imagens e com uma linguagem de fácil assimilação por
parte do público infanto-juvenil.
O livro traz, a partir da jornada de Carlos
e de Alfredo, a ideia de transformar em tecido narrativo o conceito de nação
para os alunos das nossas escolas republicanas. A narrativa é envolvida pela
viagem que atravessa todo o território nacional. Na arquitetura teórica do
livro aparece a relação entre o particular e o geral, entre a formação dos(as)
meninos(as) no plano humanístico e a construção imaginada do Brasil como um
todo coletivo distinto. O eixo orientador do livro é de fácil compreensão: os
seus personagens, assim como os seus jovens leitores, experienciam uma espécie
de autoformação, o que os leva, em concomitância, a situarem os traços
definidores que os ligam ao plano da coletividade social que os posicionam
historicamente, ou seja, o Brasil.
São dois meninos gaúchos, Carlos e Alfredo, com as
respectivas idades de 15 e 10 anos de idade, os protagonistas da obra. Eles são
notificados que o pai, o engenheiro Meneses, está enfermo, o que movimenta a
narrativa e o enredo do livro. A viagem está ligada, pois, a procura do pai, em
uma jornada que se inicia em Pernambuco e tem como ponto de chegada o Estado do
Rio Grande do Sul.
O estudo de Através do Brasil abre-nos a
possibilidade de compreendermos a relação estabelecida pela intelectualidade do
período entre literatura, história e educação, com destaque para a assimilação
narrativa dos trânsitos envolvendo a estruturação do modelo político
republicano e o processo educacional no Brasil. Nossa hipótese é que o livro
carrega consigo um itinerário básico do que é a memória cultural brasileira,
que se configura como elemento destacado nesse processo de constituição de
identidades e de estabelecimento de programas político-sociais, com
repercussões ainda hoje visíveis nos modos como concebemos as representações do
Brasil. A narrativa amplia a percepção do real, ainda mais transvestida de
ficção conciliada com o plano da ordem do discurso. André Botelho, assim como
Mariza Lajolo, argumenta que a genealogia de Através do Brasil, para
além dos seus similares europeus de literatura infantil nas versões italiana e
francesa, estende as suas raízes junto aos romances de formação, que tem na
figura de Goethe e em seu livro Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meisters os
seus exemplos mais representativos (BOTELHO, 2002; LAJOLO, 2000). Argumenta-se
que a literatura infantil simplifica, dando abertura para um público mais
estendido, os modelos narrativos oferecidos pelos romances de formação. Mas há,
diferentemente destes, uma multiplicidade de personagens na literatura
infanto-juvenil, não se concentrando em um único personagem que se forma humanisticamente.
Podemos conceber esse tipo de literatura escolar a partir da noção de, na falta
de uma expressão mais precisa, romance de formação pedagógico-social,
pois no decorrer da sua narrativa os componentes formativos são de natureza
coletiva: eles operam com a noção de identidade social e com a criação de uma
memória cultural apta a servir de sustentação a um ideário patriótico.
Prosseguindo com a caracterização dada por Lajolo
(2000) ao nosso romance de formação pedagógico-social, a autora
relaciona-o com a tradição ocidental dos relatos de viagem, uma das mais
duradouras e populares formas de representação da dialética espaço-tempo, a
qual faz do viajante um símbolo expressivo de narrador. Assim, a viagem através
do Brasil é uma forma bastante adequada para se representar o Brasil como
unidade nacional – de apresentá-lo enquanto uma nação imaginada (ANDERSON,
2008).
Sobre a construção do texto a advertência
introdutória para o livro é inequívoca: “se há nestas páginas alguma fantasia,
ela serve unicamente para harmonizar numa visão geral os aspectos gerais da
vida brasileira” (BOMFIM; BILAC, 2000, p. 47). Nessa passagem percebemos o
claro intento de Bomfim e de Bilac em produzir efeitos de real. Mas lembrando,
e isso é bem evidente, que o ficcional coabita o texto histórico. Há, na
verdade, um marcante hibridismo fronteiriço. O que há de inovador na narrativa
de Através do Brasil, assim como nos seus similares europeus usados como
matrizes do brasileiro, reside na mobilização da ficção como componente
capaz de ampliar a realidade dos leitores. A utilização dos recursos ficcionais
para se ampliar a percepção da experiência da história é efetivada para
envolver os estudantes em torno da ideia de identidade nacional.
Percebemos que é pretensão de Bilac e de Bomfim
destacar a identidade linguística nacional, fazendo com que os(as) leitores(as)
reconheçam certa identidade de fala no Brasil, apesar da sua heterogeneidade
regional. Talvez essa seja uma preocupação mais de Bilac. Cabe destacar que ao
final do livro há um vocabulário com expressões brasileiras que podem ser
acessadas pelos(as) leitores(as).
Vale destacar o conteúdo iconográfico do livro,
composto de 68 ilustrações, distribuído entre fotografias, desenhos e cartões
postais. A imagem funciona como uma espécie de leitura visual. É um princípio
orientador da obra, em que as imagens condensam partes ou blocos narrativos.
Isso é verificado na introdução da obra, em que os autores assumem que as
imagens são pretextos para que os leitores conheçam a realidade do país. As
imagens utilizadas reproduzem e agenciam representações do cotidiano nacional,
com seus cenários típicos e seus “tipos nacionais”, que são seus personagens
secundários. “As ilustrações são posicionadas no transcorrer da narrativa,
normalmente intercalando o relato. Percebe-se, à medida que vão aparecendo, uma
efetiva coerência entre o texto escrito e o texto iconográfico” (SANTOS; OLIVA,
2004, p. 109). A menção a esse aparato iconográfico é importante em razão da
reedição da obra nos anos 2000, pela Companhia das Letras, suprimir o
suplemento iconográfico, bem como por alterar capítulos em sua forma e em seu
conteúdo, retirando excertos, modificando títulos, acrescentando outros que não
estão no plano original (SANTOS; OLIVA, 2004, p. 112).
Através do Brasil mobiliza um quadro de lições morais. Esse intuito está ainda no primeiro
bloco temático da viagem, em que há o contato dos educandos com problemas
edificantes, o que, na posição dos autores, torna o texto único para cada aluno
em especial e para cada segmento social em particular. Como exemplo de função
moralizante percebemos o destaque conferido ao elemento familiar. A importância
da família aparece na relevância dada ao lar. É uma concepção de família
tradicional.
A viagem realizada através do Brasil sinaliza
alegoricamente para a diversidade de paisagens geográfico-sentimentais e dos
sujeitos históricos que compõem as regiões do Brasil, onde se sublinha,
ademais, o valor moral das populações que ficam à margem dos supostos centros
de civilização do país. Mesmo sendo possível conceber uma diferenciação entre
Norte e Sul da federação, sendo o primeiro mais atrasado em relação ao segundo
mais civilizado, não se pode deixar de assinalar que essa distância
espaço-temporal é suavizada na narrativa através do realce que os autores dão
para a caracterização moral dos personagens, dotando-os dos atributos mais
valorosos de exemplaridade, mesmo que eles, ao longo da trama, se mostrem em
profundo estado de carência material. A construção dos personagens concebida
por Bomfim e por Bilac não é atravessada por atributos deterministas do meio e
da raça tão caros à intelectualidade brasileira da República. A proposição
pedagógica dos estudiosos, que se relaciona com a difusão de um sentido
patriótico mais amplo, se direciona para a compreensão das dimensões da
bondade, da solicitude, da generosidade, da honestidade, da lealdade, da
fraternidade e da empatia, mobilizados enquanto atributos de moralidade
edificante que acompanham e sugestionam os personagens do livro (HANSEN, 2007).
A partir do périplo pelos estados da federação os
jovens viajantes constroem um horizonte comum entre o que se passa com eles em
termos de experiência e o conhecimento que os alunos-leitores possuem sobre o
Brasil. Ou seja, os personagens deixam à disposição imagens “afetivas do
Brasil” que são convidativas aos alunos para que eles descubram as identidades
possíveis do país até então desconhecidas. Além dos aspectos geográficos, a
viagem de Carlos e de Alfredo disponibiliza informações sobre fatos e heróis
históricos, sobre os mais diversos costumes das populações, sobre a arquitetura
dos grandes monumentos do país. A narrativa aprofunda-se nas descrições
moralizantes dos personagens, tendo sempre o cuidado de positivar as suas qualidades.
Dessa forma, entendemos que a história narrada sobre os dois meninos viajantes
serve como um pretexto para que os alunos das escolas primárias possam conhecer
o Brasil e todas as suas ditas potencialidades, bem como para que se formem
moralmente.
Ao longo da tessitura da narrativa de Através do
Brasil são apresentados pelos autores paisagens e cenários brasileiros
ligados ao lado agreste do país, ao seu interior ainda não civilizado, em suma,
ao que os autores da época caracterizam como sertão ou “Brasil profundo”. Isso
pode ser constatado a partir da forma como os sertanejos estruturam e habitam o
seu ambiente mais particular e organizam a sua rotina, como podemos perceber na
trama do capítulo quarto, “Garanhuns”, em que é retratada a casa da “Velha
Africana”, a qual oferece abrigo e alimentação aos garotos durante a viagem. É
possível constatar na passagem a seguir um claro objetivo de explicar aos
jovens leitores como se dá a intimidade e as vivências dos sertanejos do
interior do país:
A boa velha levou-os para o interior do casebre.
Era uma choupana rústica, mas asseada, com paredes de barro preto, e chão duro,
batido de torrões. A um canto o fogão, no centro uma mesa de madeira tosca;
alguns bancos de pau, e o catre, em que dormia a dona da casa, completavam a
mobília. (…) Tudo aquilo revelava um cuidado constante; tudo estava limpo e
varrido (BOMFIM, 2000, p. 69-70).
Nessa altura do texto existe a tentativa de
evidenciar que mesmo distante da civilização o sertanejo possui os seus valores
intocáveis, ainda que no caso explicitado acima seja nítida a carência material
da casa da “Velha Africana”. Porém, esse elemento não impacta de modo algum em
sua personalidade. Esse dado serve para refletirmos o valor positivo que Bomfim
e Bilac delegam aos mestiços, aos negros e aos índios (caboclos), posto que os
mesmos se distanciam das teorias raciológicas correntes que incutem nos
leitores a ideia de que essa parte da população passa por um estágio de atraso,
ou mesmo degeneração (SCHWARCZ, 2018), diante do restante do país.
Através do Brasil, deixando
em segundo plano a dimensão política da nação, reforça o vínculo afetivo entre
os habitantes de uma mesma comunidade imaginada, fomentando a criação de um
sentimento maior de coesão. Lembrando que os personagens do livro representam
as classes sociais do país. Essa disposição sentimental é visível na obra no
momento em que os jovens viajantes tomam consciência das mazelas enfrentadas
por Juvêncio no sertão. Há empatia mútua. Nesta passagem, quando os irmãos
ficam longe de Juvêncio por certo tempo, encontramos esse registro de forma
destacada:
Vendo partir Juvêncio, Carlos e Alfredo esqueceram
as mulheres lavadeiras; sentiram-se sós e tomados de uma grande tristeza. O
sertanejo fazia-lhes muita falta ao coração; amavam-no já como se fora um
irmão. Ademais, Juvêncio era a vida, a animação, a alegria do grupo. Tudo
aquilo, agora, lhes parecia morto; o rio, o sol, as árvores, o céu, a corrente:
tudo, sem o companheiro, se lhes mostrava torvo e triste” (BOMFIM; BILAC, 2000,
p. 182).
Passadas cerca de duas décadas após os eventos da
Abolição da escravidão e do advento da República faz-se necessário, após a
chegada de sucessivas ondas de imigrantes no país, transpor os limites da
sociedade escravocrata e de classes estabelecida no Império através do
fortalecimento dos vínculos cívico-afetivos entre as populações que compõe o
quadro social brasileiro presente. Essa perspectiva trazida por Bomfim e por
Bilac se materializa a partir dos laços de amizade criados entre Alfredo e
Carlos, representantes de uma classe média urbana da República, com o jovem
sertanejo Juvêncio. Este passa a participar da trama a partir do capítulo XIII,
sendo descrito como
um rapazinho de dezesseis ou dezessete anos,
vestido à moda do sertão; camisa de algodão grosso branco, paletó e calças de
algodão riscado, sapatos e chapéu de couro vermelho. O tipo era simpático,
moreno, entre caboclo e mulato – de rosto largo, boca rasgada, olhos vivos e
inteligentes (BOMFIM; BILAC, 2000, p. 113).
Uma possibilidade de entendimento do enredo de Através
do Brasil é a do congraçamento entre os distintos “Brasis” que Euclides da
Cunha aborda como separados tanto pelo tempo quanto pelo espaço através da
antinomia entre o litoral e o interior, ou entre a República e o sertão. A
construção da nacionalidade é tornada visível na obra a partir de uma
representação comum entre um sertão com os seus homens e as suas mulheres
moralmente nobres e valorosos, mesmo que atrasados, caminhando lado a lado,
conciliados com juras de alegrias mútuas, com o litoral e os seus cidadãos
republicanos também bons, dignos, nobres, porém, mais adiantados (BENTO, 2015,
p 196-197).
Verificamos na obra um forte senso crítico em
relação à instituição escravidão, e um discurso que, de certo modo, valoriza o
negro. A elucidação dos seus personagens faz eco ao contradiscurso de Bomfim às
teorias raciais correntes. Esse é o caso de Juvêncio, que simboliza o estatuto
marginalizado do negro no Brasil; o qual sendo coagido no passado continua em
estado de pauperização e de exclusão no tempo presente. No entanto, e aqui
entra em cena o contradiscurso de Bomfim e de Bilac, mesmo vivendo em condições
desfavoráveis Juvêncio consegue se alçar ao posto de maior valoração moral
possível, rompendo com as teorizações deterministas da raça e do meio que
circulam fortemente nas Américas. Juvêncio é considerado dentro do enredo como
alguém inteligente, leal, bondoso, dócil, fraterno, solicito e humano. Os
autores desenham esse personagem como o arquétipo do brasileiro: um negro
sertanejo advindo das parcelas da população até então marginalizadas pela
civilização. No entanto, ele é apresentado como um sujeito preso aos grilhões
do seu responsável legal, o esposo da sua madrinha, já que é órfão. No decorrer
da narrativa esse personagem entra com um processo na justiça requerendo a
guarda do menino como forma de aprisioná-lo ao seu poder parental. Mas o
sertanejo “brioso” não aceita a condição que lhe é imposta pela vida e passa a
percorrer os sertões ao encontro de sua tão sonhada liberdade pessoal.
A figuração dos negros é uma forma de sociabilizar
as crianças brancas com os integrantes étnicos que fazem parte do Brasil. Mas
nos capítulos III, “A Velha Africana”, e IV, “Garanhuns”, os elementos de
pigmentação da cor aparecem como índices definidores do distanciamento social
entre os personagens. A “Velha Africana” é denominada pelos meninos como a “boa
preta” ou a “boa velha”, a qual os qualifica de “Ioiô” – uma clara expressão de
como os escravos se relaciona com os seus senhores, o que demonstra resquícios
dos tempos da escravidão em que a dominação do homem branco é patente e tomada
como algo do plano natural. Assim, em um segundo momento, Através do Brasil
pode reificar, mesmo que indiretamente, as relações de poder entre brancos e
negros atravessada pela herança escravocrata.
A forma como a “Velha Africana” acolhe os meninos
em seu casebre é uma demonstração dos sentimentos morais de amabilidade, de
bondade, de confiança e de generosidade. O retrato da sua casa, onde aparece o
quintal, sinaliza que mesmo passando por dificuldades materiais tudo parece
harmonioso e próspero – resultado do trabalho na pequena lavoura que cultiva
para o seu usufruto. Nessa passagem os autores sugerem que o trabalho livre é uma
espécie de bálsamo, com tons de redenção, para os negros recém-saídos do regime
escravocrata. Mas mesmo que Bomfim e Bilac, republicanos e abolicionistas
históricos, ativem uma representação positiva dos negros, não compreendemos que
a mesma seja pautada pela simetria, mas, sim, por atributos de piedade e de
compaixão (cristãos?), fazendo com que a questão dos negros no Brasil não seja
solucionada, mas reificada por uma visão que naturaliza a desigualdade. O apelo
moralizante incutido pela narrativa camufla indiretamente as disparidades
histórico-sociais existentes no país (GRÜNDLER; SPESSATTO, 2014).
Por outro lado, há, também, através da noção de
vínculo afetivo, a aproximação supostamente harmoniosa entre os personagens que
representam os “tipos brasileiros”. Uma ilusória democracia racial? É o caso do
capítulo XVIII, “Na fazenda”, em que Carlos e Alfredo, ao lado de Benvindo, um
caboclo que os auxilia no início da jornada, são convidados a fazerem parte de
uma roda de repente. A imagem narrativa da festa corrobora com a hipótese de
que Bomfim e Bilac intuem colocar em evidência junto aos estudantes leitores de
Através do Brasil a dimensão miscigenada do povo brasileiro, mesmo não
havendo transformações sociais de classe e que certo distanciamento social impregnado
no olhar dos jovens viajantes prevaleça.
Há outra disparidade social no todo da trama
apontada por Claudefranklin Santos e Terezinha Oliva: a presença pouco
expressiva de mulheres na obra. “Das 65 personagens de Através do Brasil,
53 (81, 6%) delas são do sexo masculino e 12 (18,4%) do sexo feminino” (SANTOS;
OLIVA, 2004, p. 114). Aos homens estão reservados os papéis principais na obra.
Já as mulheres estão situadas em uma posição secundária e são geralmente
especificadas sem os seus nomes (como a mãe dos meninos). As suas funções e as
suas atribuições na narrativa situam-se em um plano subalterno. Elas são
estereotipadas, recebendo adjetivações: cândidas, prendadas, amantíssimas,
simples ou ingênuas. Aparecem em condições como de velhas, amargas, pobres ou
faladoras. É só no capítulo 31 que encontramos uma mulher com nome próprio:
Maria das Dores. Apenas por ajudar Alfredo enfermo que ela ganha relevância
narrativa. Mas no geral, vale frisar, as mulheres não ocupam o primeiro plano
da economia narrativa de Através do Brasil, e quando aparecem seus
estereótipos reificam uma posição inferior.
Vale mencionar que a ideia de progresso permeia a
obra, como na cena dos meninos no engenho. Essa ekphrasis é elaborada a
partir de dois movimentos coadunados: constatado o declínio da área açucareira
do nordeste diante da modernidade do círculo cafeeiro evidencia-se, de maneira
alegórica, o atraso do interior e o progresso citadino. É marcante, nesse
sentido, está passagem: “São Paulo possui muita coisa digna de ser vista:
magníficos jardins, esplêndidas casas, bairros novos já animados, e muitas boas
escolas. O progresso d’esta terra nunca cessou” (BOMFIM; BILAC, 2000, p. 343).
Além disso, a ideia do distanciamento existente
entre “civilização” e “barbárie” não deixa de acompanhar o texto. Percebemos,
então, que um dos objetivos da trama é o de levar a ilustração para as regiões
mais afastadas do mapa geográfico do Brasil e para as suas populações. Essa
situação é de fácil visualização no livro a partir do momento em que o indígena
é retratado como elemento com laivos de barbárie em contraponto com os meninos
que são os representantes da civilização no país.
O encerramento do livro pode ser um aceno
implícito de uma forma específica de elaboração da experiência, qual seja, a
utópica, posto que o engenheiro Meneses, entendendo que a viagem dos seus
filhos só é possível em razão do auxílio de um valoroso sertanejo, que naquele
momento encontra-se em uma situação difícil no Amazonas, acometido por uma
enfermidade, advoga no sentido da urgência de encontrar Juvêncio e levá-lo
seguro para o seio da sua família no Rio Grande do Sul. Essa posição do pai dos
garotos é uma metalinguagem para a suposta harmonia social (e racial) que o
livro propõe.
É através de uma situação inusitada, a da viagem em
busca do pai ausente, que se estabelece a aliança entre os personagens, que são
representantes de classes antagônicas. Após o anúncio de um futuro reencontro
do trio o enredo se encaminha para uma explicação mais condizente com a
realidade do país. Quando os irmãos regressam para o Sul do continente
brasileiro e as diferenças, não só regionais, mas de ethos de classe,
são colocadas em destaque – onde se demonstra, então, a desigualdade entre os
personagens. Mas é a partir do final da trama que conferimos a originalidade
desse best-seller nacional. Carlos, Alfredo e o pai, ícones das elites
nacionais, não se sentem completos sem a presença de Juvêncio, o que nos faz
interpretar que um dos enredos possíveis para Através do Brasil sinaliza
para a inserção do sertanejo no seio daquela família, sendo, então, um indício
do congraçamento entre camadas díspares do povo brasileiro. Porém, fica a
questão: é um congraçamento utópico ou a absorção, via aculturação, do
sertanejo pela civilização?
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