sábado, 23 de dezembro de 2023

VALDENSES ...3a.Parte

 

3-O GRANDE MASSACRE

 

O primeiro trabalho dos valdenses, com o fim da praga, foi a reorganização da sua sociedade. Não havia uma casa em todos os seus vales onde a morte não tinha ido, todos os laços tinham sido rompidos, as famílias estavam quase extintas, mas agora, o destruidor está longe, os habitantes dispersos começaram a trabalhar em conjunto, e juntar as mãos e os corações na restauração de igrejas em ruínas, levantando as habitações que caíram, e criando novas famílias e lares.

 

Outros eventos de natureza auspiciosa, que ocorreram nessa época, contribuiram para reavivar os espíritos dos valdenses, e para iluminar com um brilho de esperança o cenário da recente grande catástrofe. O exército partiu, após a paz ter sido assinada entre o monarca francês e o duque, e os vales voltaram mais uma vez ao domínio da Casa de Sabóia. Uma década e meia de relativa tranquilidade permitiu que a população criasse raiz em si, de novo, e os seus vales e lados das montanhas pudessem estar novamente sob plantio direto. Quinze anos, um curto espaço de tempo para respirar em meio a tempestades tão horríveis!

 

Esses quinze anos terminaram, e agora é 1650, e os valdenses estão entrando na sombra de sua maior tragédia. O trono de Sabóia era ocupado neste época por Carlos Emmanuel II, um jovem de quinze anos. Ele era um príncipe de disposição moderada e compassiva, mas era aconselhado e governado por sua mãe, a duquesa Cristina, que tinha sido nomeada regente do reino durante a sua menoridade. A mãe era descendente de uma raça que sempre foi conhecida pela sua dissimulação, crueldade e devoção fanática à Roma. Ela era filha de Henrique IV e Maria de Médicis, e neta de Catarina de Médicis, cujo nome está tão visivelmente ligado a uma tragédia que recebeu, como merecido, a maldição da humanidade – O Massacre da noite de São Bartolomeu. O temperamento feroz e superstição sombria da avó tinha passado para a neta. Em nenhum reinado as lágrimas e o sangue dos valdenses fluíram tão profusamente, um fato do qual não podemos explicar de forma satisfatória, a menos na suposição de que os sofrimentos que agora os sobrecarregam não vieram do príncipe que ocupa o trono, mas por causa da fria, cruel e sanguinária regente que governava o reino. Em suma, há razão para acreditar que não era fácil o espírito da Casa de Sabóia, mas o espírito astuto dos Médici, solicitado pelo Vaticano, que decretou essas cenas de carnificina que começamos agora a registar.

 

O golpe não desceu todo de uma vez; uma série de ataques menores anunciaram o maior e cabal. Maquinações, ardis e roubos legalizados pavimentaram o caminho para um extermínio que era para ser completo e definitivo.

Primeiro vieram os monges. A pestilência, como vimos, visitou os Vales em 1630. Veio, entretanto, uma segunda praga, não desta vez a peste, mas um enxame de capuchinhos. Eles haviam sido enviados para converter os “hereges”, e ansiosamente começaram a desafiar os pastores para a controvérsia, em que tinham certeza de triunfar. Algumas tentativas, porém, convenceu-os de que a vitória não seria tão fácil como tinham pensado. Os “hereges” fizeram “um Papa de sua Bíblia”, e se queixaram, e como este foi um livro que não tinham estudado, eles não sabiam onde encontrar as passagens que tinham certeza que refutavam os pastores valdenses, eles poderiam silenciá-los apenas ao expulsá-los, e entre outros que eles enviaram para o exílio estava Antoine Leger, o tio do historiador. Assim foram as pessoas privadas de seus líderes naturais [Muston, p. 126]. Os valdenses foram proibidos, sob pena de confisco e morte de comprar terras agrícolas ou negociar fora do seu próprio estreito território. Algumas de suas igrejas foram fechadas. Seu território foi transformado em uma prisão por uma ordem que os proíba de atravessar a fronteira até mesmo por algumas horas, salvo nos dia de feira. Todas as comunidades de Bobbio, Villaro, Angrogna e Rora foram ordenadas a manter uma missão dos capuchinhos, e estrangeiros cristãos foram proibidos de se estabelecer nos vales sob pena de morte e uma multa de mil coroas de ouro sobre as comunidades que os recebessem. Esta lei foi dirigida contra os seus pastores, que desde a peste, eram em sua maioria franceses ou suíços. Esperava-se que em poucos anos os valdenses ficassem sem ministros. Monts-de-Piete [N.T.: instituições que tinham por finalidade fornecer crédito por meio do penhor] foram criadas para induzir os valdenses, a quem os confiscos, as más colheitas, e os alojamentos dos soldados tinham reduzido a grande dificuldade, para penhorar seus bens, e quando todos haviam sido colocados em penhor foi oferecido a restituição completa sob a condição de renunciar à sua fé. Dotes foram prometidos para jovens donzelas, nas mesmas condições [Muston, p. 129]. Estes vários artifícios tiveram um sucesso surpreendentemente pequeno. Algumas dezenas de pervertidos valdenses foram adicionados à igreja romana. Era claro que o “bom trabalho de proselitismo” estava procedendo muito lentamente. Medidas mais eficientes deveriam ser tomadas.

 

A “Congregação para a Propagação da Fé”, instituída pelo Papa Gregório XV em 1622, já havia se espalhado pela Itália e França. O objeto desta congregação foi originalmente apresentar em palavras suficientemente simples e inocentes a “de Propaganda Fide” (para a Propagação da Fé). Desde a primeira instituição desta, contudo, o seu objetivo tinha sido objeto de alargamento, ou, se não seu objetivo, em todos os eventos de seu título. Sua primeira denominação moderna foi suplementada pela expressão enfática, “et Extirpandis Haereticis” (e a extirpação dos hereges). A membresia dela tornou-se logo numerosa: incluiu tanto leigos quanto sacerdotes, todos os escalões, desde o nobre ao prelado, ao camponês e o pobre, iam para inscrever-se nela, pelo incentivo de uma indulgência total a todos os que participassem no bom trabalho tão inequívoco indicado na cláusula em um breve e conciso “et Extirpandis Haereticis”. As congregações nas cidades menores relatavam para as cidades metropolitanas, cidades metropolitanas para a capital, Roma, onde nas palavras de Leger:  "estava sentada como uma grande aranha que segurava os fios dessa teia poderosa".

 

Em 1650 a “Congregação para a Propagação da Fé” foi estabelecida em Turim. Os chefes conselheiros de Estado, os grandes senhores do país, e os dignitários da Igreja, matricularam-se como um conselho de presidentes. Congregações de mulheres se formaram, sendo a líder a Marquesa de Pianeza. Ela era a primeira dama da corte, e como não tinha “a rosa branca de uma vida inocente”, ela era mais zelosa possível nesta causa, na esperança de fazer expiação dos erros do passado. E tinha empenho extremo em promover o objetivo da congregação e seu próprio espírito impetuoso que infundiu em todos abaixo dela. “Os propagandistas da senhora”, diz Leger [Leger, Parte II. Cap. 6, p. 72-3], “distribuídos nas cidades em distritos, e cada um visitando o distrito atribuído a eles duas vezes por semana, subornando meninas simples, servos e as crianças por seus encantos e promessas lisonjeiras e passando a serem ameaçadores se não fossem ouvidos. Eles tinham seus espiões em toda parte, que, entre outras informações, verificavam se existiam famílias cristãs divergentes, e se houvesse seria ali onde os propagandistas iriam fazer mais forte pressão, estimulando a chama da discórdia, a fim de separar o marido, as crianças de seus pais; prometendo-lhes, e certamente conferindo-lhes, grandes vantagens, se eles consentissem em assistir à missa. Se eles ouviam de um comerciante cujo negócio estava mal, ou de um senhor que por causa de jogos de azar estava sem dinheiro, aquelas senhoras estendiam à mão com a sua dabo tibi (eu te darei), na condição de apostatar da fé, e o prisioneiro desta artimanha era da mesma forma aliviado de sua prisão, o que na verdade seria entregar-se a eles. Para fazer face às despesas muito pesadas desse proselitismo, para manter essa máquina funcionando, comprar as almas que se vendiam por pão, coletas regulares eram feitas nas capelas, nas famílias e particulares, nas lojas, nas estalagens, nas casas de jogos de azar, nas ruas, em todos os lugares estava o esmoleiro em operação. A Marquesa de Pianeza de si mesma, grande senhora como ela era, usava cada segundo ou terceiro dia para fazer um circuito em busca de adesões, até mesmo indo para as tabernas para esse propósito … Se qualquer pessoa de condição, que se acreditava capaz de contribuir com uma moeda, tivesse a chance de chegar a qualquer hotel da cidade, estas senhoras não deixariam de esperar por ele, de bolsa na mão, e solicitar uma doação. Quando as pessoas conhecidas por pertencer à religião [reformada ou protestante] chegavam a Turim, não tinham escrúpulos de pedir dinheiro deles para a propagação da fé, e por causa da influência da Marquesa, ou medo de perder o seu serviço e arruinar seus negócios, muitas vezes induziam essa pessoa a obedecer”.

 

Enquanto estava ocupada na execução dessas tramas, a Marquesa de Pianeza foi acometida de morte. Sentindo remorsos, e querendo fazer expiação, ela chamou seu senhor, de quem estava separada há muitos anos, à sua cabeceira, e ordenou-lhe, como valorizava o repouso de sua alma e da segurança de sua própria, para continuar “a boa obra”, em que no coração dela tinha sido tão bem estabelecido, da conversão dos valdenses. Para estimular o seu zelo, ela deixou-lhe uma quantia em dinheiro, que, no entanto, ele não podia tocar até que tivesse cumprido a condição em que foi concedido. O marquês assumiu a tarefa com a maior boa vontade [Muston, p. 130]. Um fanático e um soldado, ele só conseguia pensar em uma maneira de converter os valdenses. Foi então que estourou a tempestade.

 

Em 25 de janeiro de 1655, veio a famosa ordem de Gastaldo. Este decreto ordenou que todos as famílias valdenses domiciliadas nas comunidades de Lucerna, Fenile, Bubiana, Bricherasio, San Giovanni e La Torre, em suma, todo esse rico distrito que separa a capital da planície do Piemonte, devessem  sair de suas habitações no prazo de três dias e retirar-se para os vales de Bobbio, Angrogna e Rora. Isso eles deveriam fazer, sob pena de morte. Eles foram ainda obrigados a vender suas terras para romanistas no prazo de vinte dias. Aqueles que estavam dispostos a abdicar da fé cristã ficariam isentos do decreto.

 

Qualquer coisa mais desumana e bárbara sob as circunstâncias deste edital não seria fácil de imaginar. A intensidade de um inverno Alpino com terrores desconhecidos das regiões mais ao norte. Como poderia uma população, como aquela em que o decreto caiu, incluindo crianças e velhos, doentes e acamados, cegos e coxos, empreender uma viagem através dos rios cheios, de vales enterrados na neve, e sobre montanhas cobertas de gelo? Eles inevitavelmente pereceriam, e do edito que os expulsou nada mas era do que uma forma de condená-los a morrer de frio e de fome. “Orai”, disse Cristo, quando alertou os seus discípulos a fugir, quando vissem os exércitos romanos em redor de Jerusalém, “Orai para que vossa fuga não aconteça no inverno”. A propaganda romanista em Turim escolheu esta época para a fuga forçada dos valdenses. Os frios picos gelados olhavam para esta tropa miserável, que agora estavam cruzando as torrentes e escalando as trilhas das montanha, mas o coração do perseguidor era mais frio ainda. É verdade que uma alternativa foi oferecida a eles: ir à missa. Será que eles consideraram isto? O historiador Leger informa-nos que ele tinha uma congregação de quase duas mil pessoas, e que nenhum homem de todos eles aceitaram a alternativa. “Eu posso muito bem comprovar este testemunho deles”, ele observa, “visto que fui seu pastor por onze anos, e eu conhecia cada um deles pelo nome; se eu não tinha motivo para chorar de alegria, bem como de tristeza, quando eu vi que toda a fúria desses lobos não foi capaz de influenciar um desses cordeiros, e que nenhuma vantagem terrena poderia abalar sua constância. E quando eu marquei os vestígios de seu sangue sobre a neve e o gelo sobre a qual eles tinham arrastado seus membros dilacerados, eu não tinha motivos para bendizer a Deus que eu tinha visto realizadas em seus pobres corpos o que restava da medida dos sofrimentos de Cristo, e especialmente quando eu vi essa cruz pesada suportada por eles com uma coragem tão nobre? ” [Leger, parte ii. cap. 8, p. 94].

 

Os valdenses de outros vales receberam esses pobres exilados, e com alegria compartilharam com eles seus próprios pratos humildes e escassos. Eles espalharam a mesa para todos, e serviram polenta com castanhas assadas, leite e manteiga de suas mountanhas, e não se esqueceram de adicionar um copo de vinho tinto com que os seus vales produziam [Monastier, p. 265]. Seus inimigos ficaram espantados quando viram a comunidade inteira se levantar como um só homem e partir.

 

A grande desgraça vinha rápido sobre os cascos desta calamidade inicial. Uma única parte da nação valdense tinha sofrido sob o decreto cruel de Gastaldo, mas o objetivo da Propaganda era o desaparecimento de toda a raça, e o assunto já havia se passado para a perfídia consumada e crueldade deliberada. Desde os vales superiores, para onde haviam se retirado, os valdenses enviaram representações respeitosas ao tribunal de Turim. Eles descreveram seu estado deplorável em termos tão comoventes - e que teria sido difícil ter exagerado sobre isso - e rogaram o cumprimento de tratados em que a honra e a fidelidade da Casa de Sabóia foram prometidas, em linguagem tão moderada e justa, que alguém teria pensado que sua súplica devesse necessariamente prevalecer. Mas, não! Os ouvidos de seu príncipe tinham sido envenenados pela mentira. Até mesmo o acesso a ele foi negado. Como considerou a Propaganda, sua representação, embora acompanhada de lágrimas e gemidos, foram totalmente ignoradas. Os valdenses foram encantados por víboras surdas. Eles foram despachados com respostas ambíguas e ilusórias promessas até que o dia fatal de 17 de abril chegasse, quando não era mais necessário dissimular e dar respostas mentirosas [Leger, Parte II., P. 95-6].

 

No dia acima citado, 17 de abril de 1655, o Marquês de Pianeza partiu secretamente à meia-noite de Turim, e apareceu diante dos Vales liderando um exército de quinze mil homens [Ibidem, parte iv., Pg. 108]. Representantes valdenses estavam batendo na porta do marquês, em Turim, enquanto ele estava na estrada de La Torre. Ele apareceu diante das muralhas daquela cidade, às oito horas na noite de sábado, do mesmo dia 17 de abril, com cerca de 300 homens; o corpo principal do seu exército ele tinha deixado acampado na planície. Este exército, secretamente preparado, era composto de piemonteses, compreendendo um bom número de bandidos, que foi prometido o perdão e o espólio dos saques se eles fossem obedientes as ordens, algumas companhias de bávaros, seis regimentos franceses, cuja sede de sangue das guerras contra os huguenotes não foi capaz de saciar, e diversas companhias de católicos irlandeses, que banidos por Cromwell, chegaram no Piemonte aos poucos, vindos do massacre de seus companheiros protestantes na sua terra natal [Monastier, p. 267].

 

Os valdenses haviam construído às pressas uma barricada na entrada de La Torre. O marquês ordenou a seus soldados atacá-la; mas os sitiados resistiram tão corajosamente que, depois de lutar três horas, o inimigo percebeu que não tinha feito qualquer avanço. À uma hora da manhã de domingo, o conde Amadeu de Lucerna, que conhecia o local, fez um movimento de flanco ao longo das margens do Pelice, serpentiando silenciosamente através dos prados e pomares, e, avançando pela parte oposta, atacou os valdenses pela retaguarda. Olhando em volta, os valdenses furaram as fileiras dos seus agressores, e recuaram para as colinas, deixando La Torre nas mãos do inimigo. Os valdenses tinha perdido apenas três homens em todos os esses combates até então. Era agora entre duas horas e três horas da manhã de domingo, e embora fose cedo, os romanistas se dirigiram em um só corpo para a igreja e cantaram o Te Deum [Muston, p. 135]. O dia era o domingo de ramos, e foi desta forma que a Igreja Romana, por seus soldados, celebrou esta grande festa de amor e boa vontade nos vales Valdenses.

 

Os valdenses estavam mais uma vez em suas montanhas. Suas famílias tinham sido previamente levadas para as suas fortalezas naturais. Sua sentinelas vigiavam dia e noite ao longo das alturas da fronteira. Eles podiam ver os movimentos do exército de Pianeza sobre as planícies abaixo. Eles viram os seus pomares, sendo derrubados, e as suas habitações sendo consumidas pelas tochas dos soldados. Na segunda-feira dia 19, e terça-feira dia 20, uma série de escaramuças tiveram lugar ao longo da linha de passagem de suas montanhas e fortes. Os valdenses, apesar de mal armados e em número bem menor, pois eles eram proporcionalmente, como um contra cem, eram vitoriosos em todos os pontos. Os soldados papistas caíam na derrota vergonhosa, levando relatos maravilhosos de coragem e heroísmo dos valdenses aos seus companheiros na planície, e infundindo pânico incipiente no acampamento [Leger, Parte II., P. 108-9].

 

A culpa é sempre da covardia. Pianeza agora começou a ter dúvidas. A lembrança que tinha outrora de poderosos exércitos que pereceram nessas montanhas o assombrava e o inquietava. Ele fez então uso de uma arma que os valdenses já foram menos capazes de lidar do que a espada. Na quarta-feira, dia 21, antes do amanhecer, ele anunciou, por meio do som da trombeta nas diferentes trincheiras valdenses, a sua disposição em receber e tratar os seus representantes para a paz. Representantes foram enviados ao seu acampamento, e na sua chegada ao quartel-general foram recebidos com a maior urbanidade e suntuosamente entretidos. Pianeza expressou grande pesar pelos excessos que seus soldados haviam cometido, e que tinha sido feito, segundo ele, contrário as suas ordens. Ele protestou e disse que tinha entrado em seus vales apenas para prender alguns poucos fugitivos que haviam desobedecido a ordem de Gastaldo, que as comunidades maiores não tinham nada a temer, e que se eles permitissem um único regimento por poucos dias, em sinal de sua lealdade, tudo estaria terminado amigavelmente. A astúcia do homem conquistou os representantes, e apesar das advertências sobre a sua sagacidade, do pastor Leger em particular, os valdenses abriram as passagens dos seus vales e as portas de suas casas para os soldados de Pianeza.

 

Ai deles! Essas pessoas pobres estavam para ser liquidadas. Elas haviam recebido sob o seu teto, os assassinos de si mesmas e de suas famílias. Os dois primeiros dias, a 22 e 23 de abril, foram passados em relativa paz, os soldados comiam na mesma mesa, dormiam sob o mesmo teto, e conversavam tranquilamente com suas vítimas. Esse intervalo era necessário para permitir toda a preparação a ser feita para o que viria a seguir. O inimigo agora ocupa as cidades, as vilas, as casas e as estradas ao longo dos vales. Eles ocuparam as alturas. Duas grandes passagens levavam para a França: uma sobre as neves dos altivos Col Julien, e a outra pelo Vale do Queyras em Dauphine. Mas, que pena! A fuga não era possível por qualquer passagem. Ninguém poderia atravessar a Col Julien nesta temporada e viver, e a fortaleza de Miraboue, que guardava o estreito desfiladeiro que dava para o Vale do Queyras, o inimigo tinha sido cuidadoso em o ocupar [Leger, Parte II., P. 110]. Os valdenses estavam presos, como numa rede, fechados como numa prisão.

 

Por fim, o golpe caiu como a queda repentina de um raio. As quatro horas da manhã de sábado em 24 de abril de 1655, foi dado o sinal da colina do castelo de La Torre. [É o que diz Leger, que foi uma testemunha ocular destes horrores]. Mas quem deveria ensaiar a tragédia que se seguiu? “É Caim uma segunda vez”, diz Monastier, “derramando o sangue de seu irmão Abel” [Monastier, p. 270]. Num instante milhares de assassinos começaram o trabalho de morte. Desmaios, terror, agonia, aflição, em um momento se espalharam pelos Vales de Lucerna e Angrogna. Embora os demônios tenham sido enviados a estes campos para se deleitarem em crimes e se divertirem com sangue, eles não conseguiram superar os soldados da Propaganda. Embora as vítimas subissem as montanhas, com a velocidade que podiam, os assassinos estavam em seu encalço. As torrentes que rolaram para baixo das alturas logo começaram a ser misturadas com sangue. Brilhos de luzes pálidas explodiam através da fumaça escura que estava rolando pelos vales, pois um sacerdote e um monge acompanhavam cada grupo de soldados, para incendiar as casas logo que os presos haviam sido expedidos. Ai de mim! Que sons são aqueles que atingem o ouvido repetidamente? Os gritos e gemidos dos moribundos são repetidos e repercutidos nas rochas ao redor, e parecia que as montanhas tinham assumido um lamento pelo abate de seus filhos. “Nosso Vale de Lucerna”, exclama Leger" que era como um Goshen, foi agora convertido num Monte Etna, arremessando cinzas e fogo e chamas. A terra se assemelhava a uma fornalha, e o ar se encheu de uma escuridão como o do Egito, que pode ser sentido, por causa da fumaça das cidades, vilas, templos, palácios, granjas e prédios, todos queimando nas chamas do Vaticano" [Leger, Parte II., p. 113].

 

Os soldados não estavam satisfeitos com a rápida execução pela espada; eles inventaram novos e até então inéditos modos de tortura e morte. Nenhum homem neste dia ousou escrever em palavras simples todos os atos repugnantes e horríveis desses homens; a sua maldade nunca pode ser todo conhecida, porque nunca pode ser dito tudo sobre isso.

 

Da terrível narração de Leger, selecionamos apenas alguns exemplos, mas, mesmo esses poucos, ainda que declarados moderamente, se tornam, sem nossa intenção, uma coleção de horrores. Filhinhos foram arrancados dos braços de suas mães e pegos pelos seus pequenos pés tiveram suas cabeças arremessadas contra as rochas; ou colocadas entre dois soldados e seus membros trêmulos arrancados pela força deles. Seus corpos mutilados foram jogados nas estradas ou nos campos, para serem devorados por feras. Os doentes e os idosos foram queimados vivos em suas casas. Alguns tinham as mãos, braços e as pernas decepados e fogo aplicado nas partes cortadas para estancar o sangramento e prolongar o seu sofrimento. Alguns eram esfolados vivos, outros assados vivos, alguns estripados, ou amarrados em árvores de seus próprios pomares e tiveram seus corações arrancados. Alguns foram horrivelmente mutilados, e de outros, os cérebros foram cozidos e comidos por estes canibais. Alguns foram lançados nos sulcos de seus próprios campos, e arados no solo como adubo nele. Outros foram enterrados vivos. Pais foram levados à morte com as cabeças decapitadas de seus filhos suspensos ao pescoço. Pais foram obrigados a olhar para as suas crianças serem atacadas, então massacradas, antes de serem eles mesmos mortos. Mas devemos parar aqui. Não podemos mais continuar com a terrível narração de Leger. Lá houveram tantos atos vis, abomináveis e monstruosos, completamente e extremamente repugnantes, horríveis e perversos, que não nos atrevemos a transcrever. O coração dói, o cérebro começa a ter vertigens. “A minha mão treme”, diz Leger, “de modo que eu mal posso segurar a caneta, e minhas lágrimas se misturam em torrentes com a minha tinta, enquanto eu descrevo as obras desses filhos das trevas – parecendo serem mais terríveis do que as do próprio príncipe das trevas” [Leger, Parte II., p. 111].

 

Nenhum relato geral, porém terrível, pode transmitir de modo correto uma idéia dos horrores da perseguição como a história de casos individuais; mas isso, estamos impedidos de dar. Poderíamos tomar esses mártires um por um - poderíamos descrever o destino trágico de Pedro Simeão de Angrogna - a morte bárbara de Madalena, esposa de Pedro Pilon de Villaro - uma triste história - mas não, essa história não poderia ser contada - de Anne , filha de João Charbonier de La Torre - o martírio cruel de Paul Garnier de Rora, cujos olhos foram arrancados primeiro, que resistiu a outras horrível injúrias, e, por último, foi esfolado vivo, e sua pele, dividida em quatro partes , estendida nas grades das janelas das quatro principais casas de Lucerna - poderíamos descrever esses casos, com centenas de outros igualmente horríveis e terríveis, nossa narrativa iria se tornar tão angustiante que os nossos leitores, incapazes de prosseguir, abandonariam a página. Literalmente os valdenses sofreram todas as coisas das quais fala o apóstolo, como suportado pelos mártires da antiguidade, com outros tormentos então não inventados, ou que a raiva de um Nero escolheu infligir: “Foram apedrejados, serrados, tentados, mortos ao fio da espada; andaram vestidos de peles de ovelhas e de cabras, desamparados, aflitos e maltratados. (Dos quais o mundo não era digno), errantes pelos desertos, e montes, e pelas covas e cavernas da terra”. (Epístola aos Hebreus 11:37-38).

 

Estas crueldades formam uma cena que é incomparável e única na história de alguns países civilizados. Houve tragédias em que mais sangue foi derramado e mais vidas sacrificadas, mas nenhuma em que os atores estavam tão completamente desumanizados e as formas de sofrimento tão monstruosamente nojentos, tão indizivelmente cruéis e revoltantes. O massacre do Piemonte, neste contexto é único. Ele foi mais diabólico do que todas as atrocidades e assassinatos de antes ou depois, e Leger ainda pode avançar o seu desafio para “todos os viajantes, e todos os que estudaram a história dos pagãos antigos e modernos, quer entre os chineses, tártaros e turcos, eles nunca presenciaram ou ouviram falar de tais perfídias execráveis e barbaridades tais”.

Os autores desses atos, pensando que talvez as suas atrocidades não fossem conhecidas pelo resto do mundo ou até mesmo que não se acreditassem na veracidade deles, tiveram a coragem de negar o que já tinha sido feito, mesmo antes do sangue secar nos vales. Pastor Leger tomou rápidos e efetivos meios para demonstrar a falsidade dessa negação, e prover provas evidentes, irrefutáveis e incontestáveis desses horríveis crimes para a posteridade. Ele viajou de comunidade em comunidade, logo após o massacre, com a presença de notários, que registraram os depoimentos e declarações de sobreviventes e testemunhas oculares desses fatos, na presença do Conselho e consistório do lugar [ii Leger, parte. , p. 112]. A partir das evidências dessas testemunhas ele compilou e deu ao mundo um livro, que o doutor Gilly caracterizou como um dos mais “terríveis” de todos os tempos. [O livro é de onde temos tão amplamente feito citações, intitulado Histoire Générale des Eglises Evangeliques des Vallees de Piemont ou Vaudoises. Par Jean Leger, Pasteur et des modérateur Eglises des Vallées, et depuis la violence de la Persecution, appele al'Eglise Wallonne de Leyde. A. Leyde, 1669.]. Os originais desses depoimentos Leger deu a Sir Samuel Morland, que depositou-os, juntamente com outros documentos importantes relacionados com os valdenses, na Biblioteca da Universidade de Cambridge.

 

Dor incontrolável tomou conta dos corações dos sobreviventes à vista de seus irmãos mortos, da sua terra devastada, e de sua Igreja reduzida a escombros. “Oxalá a minha cabeça se tornasse em águas”, exclama Leger", e os meus olhos numa fonte de lágrimas, que eu chorasse de dia e de noite os mortos da filha do meu povo! Veja se há dor igual a minha dor". “Foi então”, acrescenta ele, “que os fugitivos, que haviam sido arrebatados como tições do fogo, puderam se dirigir a Deus nas palavras do Salmo 79, que, literalmente e enfaticamente descreve o seu estado: "Ó Deus, os gentios vieram à tua herança; contaminaram o teu santo templo; reduziram Jerusalém a montões de pedras. Deram os corpos mortos dos teus servos por comida às aves dos céus, e a carne dos teus santos às feras da terra. Derramaram o sangue deles como a água ao redor de Jerusalém, e não houve quem os enterrasse” [Leger, Parte II., P. 113].

 

Quando a tempestade amainou, Leger reuniu os sobreviventes dispersos, a fim de se aconselhar com eles em relação as medidas a serem tomadas agora. Isso não nos surpreende ao descobrir que alguns tinham começado a cultivar a ideia de abandonar os Vales completamente. Leger fortemente os persuadiu contra o pensamento de abandonar sua antiga herança. Eles deviam, segundo ele, reconstruir sua Sião na fé, pois o Deus de seus pais não permitiria a Igreja dos Vales de ser por fim derrubada. Para incentivá-los, ele se comprometeu a estabelecer uma representação dos seus sofrimentos e condição de diante de seus irmãos de outros países, que, ele tinha certeza, apressariam a sua ajuda nesta grande crise. Estes conselhos prevaleceram. “Nossas lágrimas já não são de água”, assim escreveu o remanescente dos abatidos valdenses aos protestantes da Europa", elas são de sangue; pois elas não se limitam a obscurecer nossa visão, elas sufocam muito nossos corações. Nossas mãos tremem e as nossas cabeças doem pelos muitos golpes que recebemos. Nós não podemos conceber uma carta que responda adequadamente à intenção de nossas mentes, e a singularidade de nossa desolação. Oramos para que nos desculpem, e recolham em meio a nossos gemidos o significado daquilo que de bom grado expressamos". Após esta tocante introdução, eles começaram com uma representação de seu estado, manifestando-se em termos de moderação o que contrastava fortemente com a extensão de sua destruição. A Europa protestante ficou horrorizada quando ouviu falar do massacre.

 

Em nenhum lugar essa notícia terrível despertou uma profunda simpatia ou acendeu uma forte indignação do que na Inglaterra. Cromwell, que estava então à frente do Estado, proclamou um jejum, ordenou uma coleta para as vítimas, e escreveu a todos os príncipes protestantes, e ao rei da França, com a intenção de conquistar sua simpatia e auxílio em nome dos valdenses. [O montante arrecadado na Inglaterra, em números redondos, foi de 38.000 libras. Desse total, foram investidos 16.000, sobre a supervisão do Estado inglês aos pastores, mestres e alunos nos vales. Esta última quantia foi apropriada por Charles II, sob o pretexto de que ele não era obrigado a implementar os compromissos de um usurpador]. Uma das mais nobres, assim como mais sagrada das tarefas já realizadas pelo grande poeta, que então agiu como secretário Protetor dos Latinos, foi a escrita destas cartas. A pena de Milton não foi menos gloriosamente ocupada quando se escreve em nome desses sofredores venerados por causa da consciência, do que quando então escreveu o “Paraíso Perdido”. Em sinal do profundo interesse que ele tomou neste caso, Cromwell enviou Sir Samuel Morland, com uma carta ao duque de Sabóia, expressando o espanto e tristeza que sentiu diante das barbaridades que foram cometidas contra aqueles que eram seus irmãos na fé. O embaixador de Cromwell visitou os vales a caminho de Turim, e viu com seus próprios olhos o espetáculo medonho que a região ainda apresentava. “Se”, disse ele, dirigisse ao duque, os horrores que ele tinha visto apenas para dar o ponto à sua eloquência, e acendesse sua simplicidade republicana em fervor puritano, “se os tiranos de todos os tempos e eras estivessem vivos novamente, eles sem dúvida se envergonhariam ao descobrir que nada, nem o mais bárbaro desumano, em comparação dessas obras, já tinha sido inventado por eles. "Entretanto”, continuou ele,“os anjos são atingidos com horror; homens ficam tontos de assombro, o céu parece espantado com os gritos dos moribundos, e a terra está vermelha com o sangue de tantas pessoas inocentes. Não Vinga-te, ó Deus, por tamanha maldade, esse massacre parricida! Deixe o sangue deles, ó Cristo, lavar esse sangue! ” [The History of the Evangelical Churches of the Valleys of Piedmont: containing a most exact Geographical Description of the place, and a faithful Account of the Doctrine, Life, and Persecutions of the ancient Inhabitants, together with a most naked and punctual Relation of the late bloody Massacre, 1655. By Samuel Morland, Esq., His Highness’ Commissioner Extraordinary for the Affairs of the said Valleys. London, 1658. A História das Igrejas Evangélicas dos Vales do Piemonte: contendo uma descrição geográfica mais precisa do lugar, e um relato fiel da doutrina, vida e perseguições dos antigos habitantes, juntamente com uma relação mais exposta e pontual do massacre sangrento, 1655. Por Samuel Morland, ao ilustríssimo senhor, Sua Alteza Comissário Extraordinário para os Assuntos dos referido Vales. Londres, 1658.]

 

Temos repetidamente salientado a Castelluzzo em nossa narrativa deste povo e os seus muitos martírios. Ela está intimamente ligada com o massacre de 1655, e como tal se tornou a inspiração de Milton. Ela fica na entrada dos Vales, os pés envoltos em penas de madeiras; acima, está uma massa de escombros e pedras caídas, que inúmeras tempestades juntaram em volta da sua cintura como em seu seio. De entre esta suprema coluna salta, como um pilar e parece tocar as nuvens brancas que estão flutuando ao passar no meio do céu. Pode-se ver uma mancha escura na face do penhasco, logo abaixo das rochas do coroamento da cimeira. Ela parece tomar a forma da sombra de uma nuvem que passa sobre a montanha, se não fosse imóvel. Essa é a boca de uma caverna tão espaçosa que é dito ser capaz de conter algumas centenas de pessoas. Para esta câmara amigável os valdenses estavam acostumados a fugir quando o vale abaixo se tornou um pandemônio, brilhando com o aço, o vermelho com o crime, e reverberando com execrações e blasfêmias. Para essa caverna muitos valdenses fugiram na ocasião do grande massacre. Mas,ali o perseguidor os seguiu, e arrastando-os para fora lançaram abaixo, para o horrível precipício.

 

A lei que indissoluvelmente liga grandes crimes com o local onde foram perpetrados, escreveu o massacre de 1655 nesta montanha, e o mantém em memorial eterno em sua rocha. Não há outro monumento aos mártires em todo o mundo. Enquanto Castelluzzo permanecer, a memória deste terrível crime não pode morrer, através de todas as eras vai continuar a chorar, e esse nosso choro o poeta interpretou em seu sublime soneto:

“Vinga, Senhor, teu santos abatidos, cujos ossos 

Se encontram espalhados nas frias montanhas alpinas. 

Que foram as tuas ovelhas, que foram teu antigo rebanho, 

Mortos pelos Piemonteses sanguinários, rolaram 

Mães com seus filhos abaixo pelas rochas. Seus gemidos 

Os vales ecoaram aos montes, e eles 

Para o céu

O seu sangue mártir e cinzas agora semeam

Todos os campos italianos, onde ainda permanecem sob

A tripla tirania; que a partir desses pode crescer

Cem vezes mais, ao ter aprendido o Teu caminho,

Podem fugir da desgraça da Babilônia” 

 

Traduzido por Edimilson de Deus Teixeira

Fonte: Providence Baptist Ministries

https://goo.gl/lTGAQg

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