Indígenas e ribeirinhos
cuidam da criação de Deus?
Se quisermos o jardim de Deus
guardado e cuidado, precisamos de um olhar mais cuidadoso que nos livre de
repetir discursos prontos e acríticos
Por Phelipe Reis
De uns tempos para cá, tenho ouvido com muita frequência a afirmação de que os
povos tradicionais, como os indígenas e os ribeirinhos, protegem seus
territórios e cuidam do meio ambiente. Tal afirmação reverberada com certo
exagero, tem gerado um desconforto em mim, diante de algumas observações que
faço em minhas viagens pelo Amazonas.
Sendo natural do interior do Amazonas e vivendo aqui há trinta anos, tenho tido
o privilégio de conhecer rios e comunidades na região do baixo Amazonas. Nos
últimos quatro anos, tenho viajado com bastante frequência pelos rios
Uaicurapá, Mamuru, Tracajá e pelos rios Andirá e Marau, dentro da Terra
Indígena Andirá-Marau, onde vive o povo Sateré-Mawé, cuja população chega a
cerca de 10 mil pessoas.
Certa vez, numa viagem pelo rio Marau, após horas de navegação de barco e
rabeta, chegamos a uma comunidade Sateré muito distante. Me chamou a atenção a
grande quantidade de lixo plástico espalhada pela aldeia – eram embalagens de
salgadinhos e bolachas, produtos de higiente e limpeza, balas e doces em geral.
Isso deve-se, naturalmente, a uma mudança sociocultural de anos, causada, em
parte, pela influência do estilo de vida urbano importado pelos Sateré –
processo que se reflete nos hábitos alimentares das pessoas.
Hoje, por exemplo, produtos naturais, carne de caça e pesca, perderam espaço
para itens industrializados, como salsicha, calabresa, carne em conserva
enlatada, etc., o que aumenta a produção de resíduos plásticos em locais em que
não há nenhum sistema de gestão ou coleta desse material. O destino deles será
o fogo, o solo ou a água, no processo sazonal de cheia e vazante do rio. Esse
mesmo cenário se repete em praticamente todas as outras comunidades indígenas,
pelo rio Andirá e Marau.
Gerson Guaita, servidor do ICMBIO em Santarém, PA, descreve observações semelhantes
quanto às mudanças nos costumes das comunidades tradicionais: “Anteriormente, a
alimentação se baseava exclusivamente em produtos da floresta, nada que gerasse
resíduo não orgânico. Hoje não, é grande o consumo de enlatados e produtos
embalados e o destino das embalagens acaba sendo o mesmo de antes, porém estes
impactam muito mais o ambiente”.
A bióloga e mobilizadora do movimento ambientalista cristão Renovar
Nosso Mundo, Raquel Arouca, comenta algo na
mesma direção: “Nas minhas visitas ao Amazonas, também vi muito lixo nas
comunidades, mas observei que eles não tinham muita percepção do [problema] do
lixo, nem da troca de estilo de vida que está ocorrendo e nenhuma percepção das
consequências daquela nova realidade”. Por outro lado, Arouca é enfática ao
afirmar que “a presença dos povos originários é sinônimo de floresta em pé”.
Dialogando com a reflexão aqui posta, o teólogo Werner Fuchs diz que esse
padrão de consumo urbano baseado em produtos industrializados, muitas vezes, é
projetado para populações ribeirinhas e indígenas como algo chique. “É uma
forma de colonizar as mentes e alterar costumes. Por trás está o interesse
comercial, que rejeita ou omite qualquer interesse de sustentabilidade”, afirma
Fuchs.
Em outra ocasião, navegando pelo rio Mamuru, passamos em diversas comunidades
ribeirinhas, atravessando a fronteira entre Amazonas e Pará, e pude observar a
placa de uma associação em várias locais. Os moradores me contaram que a associação
era beneficiada por uma madeireira que atuava na região e fornecia trabalho
para as pessoas, internet, barcos e outras benfeitorias às comunidades. Essa
madeireira foi alvo de uma operação da Polícia Federal em 2020, em que uma grande quantidade de madeira ilegal foi apreendida. O
ministro da época, Ricardo Salles, foi ao local e liberou a madeira.
De um lado, é possível perceber claramente o aparelhamento e a ineficiência dos
órgãos responsáveis e, do outro, temos o silêncio, a omissão e a conivência de
uma população explorada, cooptada e empobrecida, que prefere receber uns trocados
no final do mês e ter sinal de internet em casa no meio da floresta, mesmo que
seja a custo da destruição desta floresta.
Outro aspecto que me intriga nesta reflexão é observarmos vários indígenas, de
um extremo ao outro do Amazonas, que se alinham com uma vertente política que
quer “explorar os recursos da Amazônia”, desprezando dispositivos legais
importantes conquistado com luta ao longo dos anos e sem considerar os impactos
socioambientais a médio e longo prazo. Percebemos que muitos desconhecem o
complexo jogo de interesses político-econômicos que interferem nessa questão.
Dessa forma, negligencia-se a importante
responsabilidade de cuidar, zelar e respeitar o jardim criado por Deus.
Contribuindo com nossa reflexão, o teólogo Timóteo Carriker argumenta que essa
perspectiva meio romântica da contribuição indígena decorre de uma visão, tanto
da academia quanto da mídia, que ainda segue a ideia ultrapassada do “bom
selvagem”, de Jean-Jacques Rousseau. Ele acrescenta que essa perspectiva já foi
abandonada por antropólogos fora do Brasil, mas que, estranhamente, grande
parte da antropologia brasileira ainda mantém este discurso, o que influencia a
mídia e fomenta um discurso acrítico. Carriker conclui: “Obviamente, a teologia
indígena tem o seu lugar na discussão teológica como qualquer teologia étnica
tem. Acredito que temos até de privilegiar qualquer perspectiva antes e ainda
marginalizada, mas não romantizar ou, pior, elevá-la ao absoluto”.
O que pretendo apontar com tudo isso? Minhas colocações se dão a partir da
observação da realidade e dos fatos, bem como da vivência e conversas com
ribeirinhos e indígenas. Embora não nos permitam chegar a conclusões,
obviamente, pois não podemos generalizar um imenso universo tendo como
referência este pequeno recorte da Amazônia enquadrado pelas minhas lentes,
penso que podem apontar para questões importantes que necessitam de pesquisas e
discussões mais aprofundadas.
Essa percepção mais crítica e profunda que sugiro, evita que deslizemos no erro
de alimentarmos visões ingênuas e discursos enviesados acerca da relação dos
povos tradicionais com o meio ambiente, sem considerar as complexas
transformações e as relações de interesses em seus mais diversos aspectos
sociais, culturais e econômicos.
Numa perspectiva cristã, Gerson Guaita aponta caminhos para aprofundar a
reflexão: “Já passei por diversas comunidades ribeirinhas e vejo pessoas
completamente dedicadas ao cuidado ambiental e outras agindo na ilegalidade,
com mentalidade exploratória. Acredito que a cosmovisão cristã nos
ajuda a entender melhor esse contexto. Sendo
população tradicional ou não, todos somos seres que precisamos nos reconectar
com Deus, com o próximo e com a criação”.
Faço coro com Gerson e defendo que se queremos de fato a Amazônia em pé,
o jardim de Deus guardado e cuidado, precisamos elaborar um olhar mais
cuidadoso e criterioso que
nos livre de repetir discursos prontos e acríticos, propagados pela academia,
mídia e influencers autodeclarados indígenas, muitos dos quais nunca se
banharam nos rios e nunca tocaram os pés no chão, onde vivem os povos aos quais
afirmam pertencer.
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