Às portas do carnaval, eu
só penso em outra Festa!
Por Guilherme de Carvalho
“Muitas pessoas dizem que lá, na capela, elas mal
percebem quanto tempo se passou. É quase como se o tempo e a eternidade se
fundissem, quando céu e terra se encontram. Qualquer um que tenha testemunhado
o que está acontecendo pode concordar que é algo incomum e totalmente fora do
script.” (Tom McCall)
Às portas do carnaval, essa festa tão terrena, tão
brasileira e supostamente tão “obrigatória”, eu e meus amigos estamos vidrados
em outra festa: o surpreendente revival que está acontecendo neste momento na
capela da Asbury University, uma pequena universidade metodista em Wilmore,
Kentucky. Milhares de pessoas, especialmente jovens, estão afluindo ao local
para participar de um culto religioso que já dura nove dias. Muitos estão se
convertendo ao cristianismo e se reconciliando com familiares. As pessoas
cantam, pulam, choram, mas também meditam, oram e relatam experiências
extraordinárias com a presença de Deus. De algum modo, parece que eles sentem
um prazer imenso de estar ali. A alegria parece ser a nota dominante da coisa.
Por aqui, quem
quer pular carnaval está atrás de alegria também, e alegria é a marca do brasileiro – alega-se. “A alegria é a prova dos
nove”, dizia Oswald de Andrade. Previsivelmente, este brasileiro puritano aqui
acha tudo isso uma grande balela. O carnaval é a festa dos desesperados, que
sempre foi o mundo do brasileiro; a vontade de cantar, dançar, beber, rir,
cair, trepar, beijar todo mundo e se esbaldar até morrer. Gastar tudo,
esticar-se, arriscar-se, estourar os limites, esquecer da vida miserável em um
país que anda em círculos: morrer, basicamente. O carnaval é um grito de
desespero.
Mas o que esperar de um pastor evangélico? Estamos
aqui para isso mesmo, para chamar a farsa de farsa. Há tanta alegria no
carnaval quanto há na pinga brava.
Daí o hábito evangélico (moralista, triste,
blablablá) de organizar seus retiros, sumir nas roças, orar pelos montes
esperando a banda passar. Aqui estamos nós, de novo, os carolas, retirados para
períodos de oração e reflexão. Em nossa defesa: para festejar também: neste
ano, nosso assunto é “espiritualidade e boa mesa”, porque a mesa é lugar de
festa. Não a festa com desconhecidos, anônima, massificada, de copos de
plástico, mas a festa com os amigos, com rostos e histórias e copos de vidro;
não para armar o bote, “pegar” alguém, fazer as maldades gostosas e depois vomitar
na rua, mas para servir ao outro uma comida boa e um amor de verdade. Na mesa
da comunhão não cabem urubus; no carnaval, no entanto, a carniça é demais para
evitá-los.
O assombroso fenômeno de Asbury encoraja os
crentes brasileiros a lembrar com toda a clareza por que ficamos bem longe
dessa nossa festa irrecuperável, esse grandioso símbolo brasileiro que para nós
não significa nada. Não é porque os crentes saibam fazer boas festas, mas
porque preferem nenhuma à farsa anual. Ou melhor: preferem se reunir com os
amigos e aguardar a festa de verdade.
Mas será que essa festa de verdade existe? E se
tudo isso não passar de alucinação puritana? Quem sabe os resmungos evangélicos
e seu desgosto com o carnaval sejam só isso, coisa de gente chata, perdedora e
mal-amada, ódio da vida, herança maldita do puritanismo, neurose de gente reprimida.
Não é mais fácil imaginar que não existe céu, nem hell below us, e above us
only sky?
Mas então chegam essas notícias perturbadoras, do
professor universitário do Kentucky, e de outro, e de outro, de um lugar no
qual o tempo para de passar, o céu encontra a terra e as pessoas estão caindo
de joelhos e cantando de alegria sem parar? De um lugar subitamente magnético,
sedutor, delicioso e, para o desespero das pessoas laicas e normais, religioso?
John Lennon que me perdoe, mas só consigo imaginar uma coisa: esse enorme e
brilhante céu acima de nós existe mesmo.
Meu amigo Ângelo voou correndo para lá e contou o
que sentia: “Descanso, descanso, descanso, descanso, descanso! Lágrimas,
lágrimas, lágrimas, lágrimas, lágrimas, a casa de meu Pai!” Estaria ele louco?
Não, não... Ele é um pouco diferente, mas não é nada maluco. Pelo contrário,
ali está um lugar de gente sóbria. Por sinal, meu outro amigo Davi, filósofo
analítico, já comprou suas passagens.
Não
é loucura, é alegria. Ele está alegre! Alegre
porque na casa do Pai. Que intrigante essa conversa de casa-de-pai. Lembra, é
claro, a parábola do Filho Pródigo, no Evangelho de Lucas: “Vou retornar à casa
de meu pai e dizer: Pai, pequei contra o céu e contra o senhor,e não sou mais
digno de ser chamado seu filho” (Lucas 15,18-19). Isso depois de lambuzar-se em
terra estrangeira torrando seus recursos até quase morrer comendo comida de
porcos. Alegria é voltar para casa, é ter um Lar, e se descobrir filho sem
merecer. Mas esse lar nem é em Asbury; é uma meia-volta completa na existência.
Não tem jeito! Com esse céu glorioso, brilhando
azul e dourado acima de nós, dá para ver com clareza o que há no final do
barranco. Sejamos honestos, para milhões de brasileiros o carnaval é um buraco
sujo, um trem no meio do caminho; uma ladeira abaixo que sempre foi a mesma do
filho pródigo: festinhas com meretrizes, cuidar de porcos e comer porcarias.
Mas seu fim não é um lamento, não é o fim da festa.
Pelo contrário, na parábola que Jesus conta, o filho mais novo encontra nada
menos que outra festa: um abraço e um beijo do pai; roupas e sapatos novos, um
anel da família no dedo, e um belo churrasco de carnes gordas, o novilho
cevado! Havia outra festa, justamente naquele lugar do qual ele fugia com todas
as forças: a casa de seu Pai. Havia outra festa e havia outras alegrias antes
insuspeitadas, com seus abraços, seus beijos e seus vinhos; alegrias com sabor
de perdão, de bondade e de reconciliação, e com muitos amigos. Tantos eram
eles, e tantas as suas festas, que acusaram Jesus: “comilão, beberrão e amigo
de pecadores!” Jesus sabia fazer festa, continua fazendo festa, e prometeu a
seus alunos um festão, no fim de todas as coisas.
Asbury nos faz lembrar, como disse C. S. Lewis, que
um dia beberemos alegria da fonte da alegria; e, às portas do carnaval, eu só
consigo pensar nesse festão!
Artigo originalmente publicado na Gazeta do Povo. Reproduzido com permissão.
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