DIA DA
CONSCIÊNCIA NEGRA
Laurentino
Gomes: “Infelizmente, a história da escravidão é contada por pessoas brancas”
Autor
do livro 'Escravidão', jornalista diz que depoimentos e biografias sobre o tema
são raras. Passado escravocrata manteve os negros na pobreza no Brasil, e requer
segunda abolição...
A
escravidão existe desde o início da história humana, mas só atingiu uma escala
industrial quando colonos europeus levaram à força 12,5 milhões de africanos
para a América. O resultado desse processo é que, pela primeira vez, a cor
negra da pele se torna sinônimo de sujeito escravizado. As duas constatações
estão no livro Escravidão, de Laurentino Gomes, conhecido pelos best-sellers
1808, 1822 e 1889. Se na primeira trilogia o autor reconstituiu a construção institucional
do Brasil nos anos que antecederam a proclamação da República, a nova pesquisa
se debruçou sobre a formação social do país. "Se você quiser entender o
Brasil em uma dimensão mais profunda, precisa estudar a escravidão. Tudo que
fomos no passado, o que somos hoje e que nós gostaríamos de ser no futuro tem a
ver com a escravidão", afirmou ao EL PAÍS, em uma livraria em São Paulo.
O
legado da escravidão, que perdurou por mais de 300 anos e trouxe ao país cerca
de 5 milhões de negros e negras, deixou sequelas profundas. O autor afirma que
o Brasil precisa de uma segunda abolição, "já que a maioria da população
pobre é negra, sem acesso à educação, saúde e empregos decentes", diz.
Laurentino
também defende que países que utilizaram mão de obra escrava devam pedir
perdão, ainda que a questão seja polêmica. "É uma questão de honestidade,
algo simbólico, porque foi um massacre, uma tragédia humanitária de grandes
proporções. Agora, tenho dúvida se seria possível pagar essa dívida. Hoje, na
África, há uma elite que é herdeira militar beneficiada pelo tráfico de
escravos, aliado aos europeus. O rei Ashanti, em Gana, era fornecedor de
cativos para ingleses e holandeses. Quem vai indenizar quem?", questiona.
Pergunta.
Você aprendeu mais com a trilogia feita anteriormente ou com esse livro?
Resposta.
Com essa trilogia. A trilogia anterior me ajudou a entender o Brasil do ponto
de vista burocrático, institucional, legal, ou seja, como foi a construção do
estado brasileiro durante o século XIX depois do rompimento dos vínculos com
Portugal. São três datas ícones: 1808, que é a chegada da corte fugindo das
tropas de Napoleão Bonaparte e o início o processo de independência do Brasil.
O resultado é 1822, com a independência de fato. O Brasil se mantém como monarquia
durante 67 anos, o que os historiadores chamam de uma "flor exótica da
América", já que estávamos cercados de repúblicas. E a terceira data é
1889. Essa três datas ajudam muito a entender o que nós temos em Brasília hoje,
essa promiscuidade entre interesses públicos e privados. Mas, se você quiser
entender o Brasil em uma dimensão mais profunda, precisa estudar a escravidão,
que é o assunto mais importante da história do país.
P. De
que forma?
13 anos
como doméstica, 4 sem receber. A escravidão no quarto de empregada
O
discurso de medo na sessão do Senado que aprovou a abolição
R. Tudo
que fomos no passado, o que somos hoje e que nós gostaríamos de ser no futuro
tem a ver com a escravidão. Primeiro por uma razão estatística: o Brasil foi o
maior território escravista da América, com quase 5 milhões de cativos
africanos. Isso dá 40% do total de africanos escravizados que embarcaram para o
Novo Mundo, estimado em 12,5 milhões. Foi o país que mais tempo demorou para
acabar com o tráfico negreiro, com a Lei Eusébio de Queirós, em 1850, e o
último a acabar com a própria escravidão, em 1888. O Brasil foi construído por
escravos, em todos os ciclos econômicos, passando pelo açúcar, ouro, diamante,
café. A escravidão não é um assunto acabado, tema de museu ou livro de
história. Ela está presente na realidade brasileira. Os abolicionistas do
século XIX, como Joaquim Nabuco, Luiz Gama, André Rebouças e José do
Patrocínio, defendiam que o Brasil precisava fazer duas abolições. A primeira
era parar de comercializar gente como mercado, algo ocorrido com a Lei Áurea. A
segunda era incorporar os ex-escravos na sociedade brasileira como cidadãos,
dando terra, emprego, educação, e isso o Brasil jamais fez. O país abandonou
sua população afrodescendente à própria sorte.
P. Por
que o Brasil os abandonou?
R.
Quando você olha a história da abolição no Brasil, há uma história branca. O
Brasil, no final do século XIX, tornou-se um pária no cenário internacional,
como foi a África do Sul na época do Apartheid. A elite brasileira se deu conta
de que a escravidão comprometia a imagem do país perante o mundo supostamente
desenvolvido. Havia uma nobreza aqui, como se fosse Versailles ou a Corte
Espanhola, de um país que se julgava europeu, monárquica, com uma imagem
imperial. Mas a realidade nas ruas era de escravidão, pobreza e analfabetismo.
A Lei Áurea procura livrar o país dessa nódoa, mas o Brasil nunca fez nenhum
esforço para incorporar sua população, porque isso significava abrir mão dos
privilégios, riquezas, redirecionar os recursos do Estado para pessoas que não
tinham oportunidade. O resultado disso é que hoje nós somos um dos países mais
segregados do mundo, embora não tenhamos leis de segregação racial como houve
nos EUA até a luta pelos direitos civis. Mas somos um país segregado na
geografia, basta ir ao Rio de Janeiro e ver quem mora nos bairros violentos e
dominados pelo crime organizado e quem vive em Copacabana ou no Leblon, na zona
sul. Também é um país segregado nos números, indicadores sociais. Por qualquer
critério que você queira medir o Brasil, seja renda, emprego, segurança
pública, existe um abismo entre oportunidades para a população branca e negra.
Um homem negro aqui tem oito vezes mais chances de morrer em um homicídio do
que um homem branco. Nós somos um país profundamente preconceituoso. No
passado, desenvolvemos alguns mitos de que seríamos uma grande democracia
racial, de que a convivência era cordial e amigável. Se você entrar numa rede
social agora vai ver as manifestações de racismo explícitas, cruas, inclusive
no discurso do presidente da República.
"O
país abandonou sua população afrodescendente à própria sorte"
P. Qual
a maior diferença da escravidão ocorrida nas Américas para a escravidão na
história?
R. É
como se a escravidão fizesse parte do código genético humano. Houve no Egito
Antigo, na Babilônia, na Grécia Antiga e na África antes da chegada dos
europeus. A própria etimologia da palavra escravo, slave em inglês, vem de
"slavo", do povo branco que era escravizado no leste da Europa pelo
Império Romano. A africana tem duas novidades: a primeira é a escala
industrial, com 12,5 milhões de pessoas embarcadas em cerca de 35 mil viagens
de navios negreiros para trabalhar em atividades no Novo Mundo que podem ser
consideradas pré-industriais. A divisão dos trabalhos, os turnos, a hierarquia,
a maneira de funcionamento de um engenho de açúcar no Nordeste brasileiro, ou
de uma mina de diamante, se assemelhavam muito às futuras fábricas da revolução
industrial na Inglaterra. A segunda característica está no nascimento do
racismo: é a primeira vez na história da humanidade que há a associação entre a
escravidão e a cor negra da pele. Há toda uma ideologia construída, inclusive
de fundo religioso, para dizer que os africanos eram selvagens, bárbaros, pagãos,
praticantes de religiões demoníacas, e que portanto a melhor coisa que poderia
acontecer com o africano era ser escravizado para se incorporar a suposta
civilização europeia que se instalava nos trópicos. Era muito comum nas
discussões do parlamento brasileiro a ideia de que a escravidão era a redenção
dos escravos. O Padre Antônio Vieira, no final do século 17, defendia a ideia
de que era uma graça divina que os escravos tivessem tido a oportunidade de
serem escravizados para se incorporar a Igreja Católica.
P. A
Igreja Católica fez uma distinção entre índios e africanos, certo?
"Se
você entrar numa rede social agora vai ver as manifestações de racismo
explícitas, cruas, inclusive no discurso do presidente da República"
R. Há
uma discussão filosófica e teológica sobre a conveniência ou não de escravizar
índios. Mas a realidade é que os índios foram massacrados. Portugueses e
espanhóis, quando chegaram à América, tentaram de todas as formas escravizarem
os índios. A primeira carga de escravos que cruza o oceano atlântico não foi da
África para o Brasil, mas foi daqui para Portugal, em 1511. Uma nau chamada
"Bretoa", de um senhor chamado Fernando de Noronha, que hoje dá o
nome ao nosso arquipélago no nordeste, levando uma carga de pau-brasil, peles
de onça pintada, papagaios e 35 indígenas que seriam leiloados em Portugal. Nos
três séculos seguintes o Brasil matou um milhão de indígenas a cada 100 anos de
diversas maneiras: expulsão de terras, guerras, extermínio e, principalmente,
pelas doenças, como gripe, sarampo e varíola. A inviabilidade prática da
escravidão, todo esse massacre indígena, coincide com a discussão filosófica
dos jesuítas que afirmavam que eles não deveriam ser escravizados. Mas o fato é
que os portugueses e espanhóis não conseguiram realizar seu projeto inicial que
era escravizar os índios. Se eles tivessem conseguido, talvez não tivéssemos a
escravidão africana, porque tínhamos 5 milhões de índios aqui, que foi o número
aproximado de africanos trazidos para o Brasil. Há também uma justificativa
bíblica para se voltar à África. No livro do Gênesis, Noé, após dilúvio, se
torna produtor de vinho. Em uma determinada ocasião, ele bebe demais, se
embriaga e dorme completamente nu dentro de casa. Os três filhos chegam e um
deles, ao ver o pai daquele jeito, ridiculariza-o. É o Cam. Ao acordar, Noé
teria lançado a "Maldição de Cam", dizendo que os descendentes dele
seriam escravos. Os padres jesuítas diziam que os descendentes de Cam seriam os
negros africanos e, portanto, candidatos naturais a escravidão. Isso era
repetido de forma exaustiva.
P.
Alguns pensadores do século XVIII e XIX, defensores da liberdade, eram a favor
da escravidão?
R. Sim,
David Hume [filósofo e escritor britânico] por exemplo. Ele era acionista de
uma companhia de tráfico de escravos. Thomas Jefferson, que escreveu a
declaração de independência dos EUA dizendo que todo ser humano nasce com
direitos iguais, era dono de um plantel enorme de escravos. Tiradentes, herói
da Inconfidência Mineira, era dono de meia dúzia de escravos no ano que foi
morto, no Rio de Janeiro.
P. Os
países precisam pedir perdão pela escravidão?
R.
Creio que sim. É uma questão de honestidade, algo simbólico, porque foi um
massacre, uma tragédia humanitária de grandes proporções. Agora, tenho dúvida
se seria possível pagar essa dívida. Hoje, na África, há uma elite que é
herdeira militar beneficiada pelo tráfico de escravos, aliado aos europeus. O
rei Ashanti, em Gana, era fornecedor de cativos para ingleses e holandeses.
Quem vai indenizar quem? É difícil. Acho que uma atitude política de pedir
perdão é importante. O Papa João Paulo II fez isso ao visitar a ilha de Goreia,
em Senegal. Não foi pela Igreja como um todo, mas pelos católicos que se
envolveram no tráfico de escravos. É algo importante para ir diminuindo essa
ferida. As cotas preferenciais para afrodescentes em escolas e postos da
administração pública. Mas o simbólico também ajuda. Há uma dívida histórica
que precisa ser enfrentada por palavras e gestos concretos.
P. O
livro diz que para cada 100 habitantes do Brasil durante a escravidão, 86 eram
escravos e 14 colonos brancos. Por que não houve uma rebelião, por exemplo? O
que sustentava essa sociedade?
R.
Havia manuais que aconselhavam fazendeiros a não manter plantéis de mesma
origem, cultura, língua ou região geográfica. Isso impedia que eles se
rebelassem. Existia, também, um sistema de premiação e punição. Se o
escravizado fosse rebelde, era chicoteado. Se fosse cooperativo, ganhava folga
semanal, o direito de cultivar uma horta, de ir à missa e de ganhar sua própria
alforria. O Brasil teve um altíssimo número de alforrias. Um historiador
norte-americano, Donald Ramos, afirma que a alforria foi um dos sistemas de
controle mais eficientes do sistema escravista, porque ele oferecia ao cativo
uma oportunidade de conquistar a liberdade e de escapar da escravidão. Há um
estudo do historiador Manolo Florentino que diz que apenas 5% dos escravos
brasileiros se rebelaram, fugiram e formaram quilombos. A principal forma de
resistência era tentar ocupar os espaços que a sociedade escravista dava para o
escravo se aproximar do universo dos brancos. Participar das irmandades
religiosas, como a Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Ifigênia, dava
um "status social" para o escravo, com um papel simbólico. Existia um
branqueamento cultural: quanto mais rápido ele se distanciasse da cultura
africana, mais "vantajoso" seria.
P. Você
escreve que existia uma briga entre negros nascidos no Brasil e os crioulos.
Como era isso?
R. O
crioulo era o escravo de primeira geração nascido no Brasil. O negro boçal era
o recém-chegado, também chamado de "preto novo". O sujeito nascido no
Brasil se julgava superior, porque ele havia migrado para o universo dos
brancos. Ele já tinha constituído família, falava a língua portuguesa,
participava das irmandades religiosas e possuía o código da sociedade colonial
portuguesa. O escravo chegado da África, não. As rebeliões aconteceram
justamente nesse universos dos escravos recém-chegados. Palmares, por exemplo,
era formado por negros Jagas de Angola, que se rebelaram no final do século 16,
e fugiram para a Serra da Barriga, em Alagoas. A Revolta do Malês, de 1835, foi
feita por negros muçulmanos, na Bahia, oriundos da Nigéria. As revoltas, fugas
e quilombos ocorreram quase sempre por duas razões principais: crise na
sociedade branca, como no caso de Palmares, ocorrida durante guerra contra os
holandeses, ou em decorrência da homogeneidade étnica e a concentração de
africanos que falavam a mesma língua e possuíam afinidade cultural.
P. Você
consultou fontes de testemunhos de escravos para fazer o livro?
"Existia
um branqueamento cultural: quanto mais rápido ele se distanciasse da cultura
africana, mais 'vantajoso' seria"
R.
Pouco. Infelizmente, a história da escravidão é contada por pessoas brancas.
Capitães de navios negreiros, viajantes europeus que visitaram o Brasil ou a
África no período. Existem alguns depoimentos e biografias relativamente raras.
Outra fonte preciosa para ouvir os escravos são inquéritos policiais quando
eles eram acusados de crimes. Tem inquéritos da Inquisição Católica que relatam
escravos presos e levados para Portugal acusadas de feitiçaria e de contrariar
a doutrina da Igreja. O principal quilombo do Brasil, Palmares, não tem nenhuma
fonte a partir dos quilombolas. Tudo que se sabe de Palmares são de relatórios
e de expedições militares enviadas ao local.
P.
Sobre esse tema, você questiona a figura de Zumbi e sua luta contra a
escravidão. Não é uma contradição refutar a história do principal líder negro
usando relatórios utilizados pelo Exército, que era majoritariamente branco?
R. De
certa forma, sim. A história da escravidão é um assunto sensível, porque há uma
guerra de narrativas. E não é por acaso que abro este capítulo falando do
calendário cívico brasileiro, com o 13 de maio e a Lei Áurea, e o 20 de
novembro, da Consciência Negra, com a morte de Zumbi. É uma guerra em andamento
pela memória da escravidão. Não tomo partido se o Zumbi era abolicionista ou um
grande general comparado a Napoleão Bonaparte ou Alexandre o Grande, como
alguns historiadores negros tentaram fazer. O que eu mostro é a construção do
Zumbi como herói nacional. Chego a conclusão que o verdadeiro Zumbi não está
nos documentos e que há pouquíssima coisa. O que se sabe é a partir da história
branca. O verdade Zumbi está na cabeça das pessoas, é um herói mítico. Agora,
sem dúvida, se trata de um herói negro brasileiro, que se contrapõe à Princesa
Isabel. Coloco no livro coisas curiosas que dificultam a construção desse
herói, como a história do Luiz Mott [antropólogo], que levantou a hipótese de
que Zumbi fosse gay. Ninguém incorporou esse herói gay, porque vivemos em um
país homofóbico, misógino. Claro que tive muito cuidado para construir esse
capítulo, porque ele mexe com um personagem muito importante para a identidade
negra, mas eu não poderia fugir da raia e comprar uma história que não existe
nos documentos. Quis mostrar diferentes narrativas e versões para que o leitor
entenda que a história não se faz apenas de personagens reais e concretos, mas
também de projeção mitológica.
P.
Quando você terminou o livro, alguém negro leu?
R. Não.
Passei para dois africanistas: o embaixador Alberto da Costa Silva e Irene Vida
Gala. Eles me deram contribuições muito importantes. A Irene me chamou a
atenção para algo que tento deixar evidente: os diferentes olhares sobre a
escravidão. Existe o olhar negro, o olhar branco e olhar atento, que é onde me
enquadro. Mas não tentei preencher cotas. Seria hipocrisia da minha parte tomar
esse tipo de atitude, porque não fiz isso nos meus outros livros. Seria apenas
relações públicas. Ao falar da proclamação da República, não chamei um
republicanista e um monarquista para dar diferentes opiniões.
P. O
que poderia ser uma segunda abolição no Brasil?
R. Acho
que é o nosso principal desafio no século XXI. Se você imaginar que a riqueza
das nações não está mais nos recursos naturais, mas no capital humano, o Brasil
nunca será um país decente, digno dos nossos sonhos, enquanto a imensa maioria
da população não tiver educação, saúde e empregos decentes. Enfrentar a
desigualdade social no Brasil é sinônimo de uma segunda abolição, porque a
maioria dos pobres é negra. Por isso digo que não é só uma reparação histórica,
mas um investimento no futuro. Essa é a principal agenda política daqui para
frente, ainda que tenhamos um governo hostil. Isso é um tema represado do
século XIX. Qualquer governo, partido político ou campanha eleitoral vai se
defrontar com esse legado.
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