4-A
volta do manto tupinambá: como indígenas da Bahia retomaram peça sagrada que só
era vista na Europa
Manto
de penas vermelhas do século 17 exposto era um dos raros exemplares desse
objeto histórico e ritual tão importante para comunidades da costa brasileira,
todos conservados em museus da Europa.
Quando
viram pela primeira vez um manto tupinambá, por trás de uma vitrine da
exposição que comemorava os 500 anos do Brasil, Dona Nivalda e Seu Aloísio
choraram. “Toda história do nosso povo está aqui”, disse a líder indígena na
ocasião.
O manto
de penas vermelhas do século 17 exposto era um dos raros exemplares desse
objeto histórico e ritual tão importante para comunidades da costa brasileira,
todos conservados em museus da Europa.
Naquele
ano de 2000, os Tupinambás de Olivença, apesar de viverem no sul da Bahia desde
tempos imemoriais, não eram reconhecidos como indígenas pelo Estado brasileiro.
A comunidade, de cerca de 5 mil pessoas, só foi reconhecida oficialmente pela
Funai em 2001.
O episódio
da visita à peça marca a intensificação de um ciclo de luta pelo território e
de valorização da cultura tradicional, que culmina agora na confecção de um
manto de 1,2 metro e mais de 3 mil penas pela artista e liderança indígena
Glicéria Tupinambá.
Nivalda
e Aloísio já não estão nesta terra, mas o manto voltou para a aldeia da Serra
do Padeiro. O novo manto não tem o vermelho exuberante das penas de guará, ave
que não se encontra no território Tupinambá de Olivença.
Sua cor
predominante é o marrom, das plumas de aves da comunidade e da terra que
defendem – o grupo luta pela conclusão da demarcação de sua terra indígena,
alvo de ataques armados e invasões.
‘Tudo a
seu tempo’
Primeiro
manto confeccionado por Glicéria Tupinambá em 2006. Peça foi doada para o Museu
Nacional e se salvou do incêndio de 2018 — Foto: Museu Nacional/Divulgação
Primeiro
manto confeccionado por Glicéria Tupinambá em 2006. Peça foi doada para o Museu
Nacional e se salvou do incêndio de 2018 — Foto: Museu Nacional/Divulgação
O
percurso foi longo para reunir os saberes necessários para a confecção da peça
sem nunca ter visto um manto presencialmente, conta Glicéria. A primeira
tentativa de fazer um manto foi em 2006. A ideia era recriar a peça a partir de
uma foto para a principal festa da comunidade, comemorada em janeiro.
“Painho
[o pajé da comunidade] me explicou como era a paleta, como era o algodão, como
era isso e aquilo. Mas eu ainda não sabia quais eram as medidas, como era a
malha. Sabia que dava para fazer uma capa, com o ponto que tínhamos na aldeia”,
explica a artista.
A peça
realizada foi usada em rituais da comunidade. “Na festa, eu pedi para o
Encantado [entidade tupinambá] me guiar para conseguir resgatar cada vez mais a
nossa cultura, e ele me disse: ‘Calma, tudo a seu tempo’. Na hora eu não
entendi”, conta a líder indígena. “Agora eu sei que o manto não é só fazer o
manto, aplicar as penas, é fazer todo um percurso”, explica Glicéria.
Nessa
trajetória de 15 anos, o encontro da artista com um manto tupinambá do século
16 foi fundamental. Em 2018, Glicéria foi convidada para dar uma palestra em
Paris. Durante a viagem, ela pôde visitar um manto guardado a sete chaves na
reserva técnica do museu do Quai Branly.
“O
manto estava me esperando, e eu vou lá para ver as penas, fazer a análise da
malha, entender o manto. Vi as posições e o caimento das penas, o ponto da
malha, que era como o de jereré [instrumento de pesca tradicional] que fazemos
aqui. A gente ficou quase uma hora com o manto e eu tentei memorizar tudo o que
ele tinha ali”, relembra.
Joias
das coleções europeias
A
majestosa peça plumária é considerada uma joia nas coleções europeias
etnográficas. O objeto visto por Glicéria não está em exposição. A peça de
1555, a mais velha da coleção etnográfica do museu francês, é considerada
frágil demais.
Como
este, há cerca de uma dezena de mantos tupinambás dos séculos 16 e 17
conservados em museus na Europa – na Bélgica, Itália, Suíça e Dinamarca. São
remanescentes de uma intensa interação cultural e comercial entre europeus e
indígenas durante o período da colonização, explica a pesquisadora de
antropologia histórica Mariana Françozo, professora da Universidade de Leiden,
na Holanda.
“Já a
partir do século 16, a gente vê nas fontes escritas, mas também nas pinturas
feitas por europeus, um interesse muito grande em tudo aquilo que as Américas
tinham e os europeus não conheciam. Essa curiosidade vem obviamente ligada a
interesses comerciais e com base em uma relação não igualitária”, sublinha.
Françozo
estudou a coleção formada por Maurício de Nassau, que governou a colônia
holandesa em Pernambuco, e diz que os mantos eram muito valorizados como
símbolos do Novo Mundo e entraram em uso na Europa.
“No
caso da Holanda, temos registros de pelo menos duas vezes em que mantos de
penas vindos do Brasil – se eram tupinambás, não sabemos –, que foram usados em
festas da nobreza”, detalha a antropóloga.
Assim
como os mantos, há milhares de artefatos indígenas brasileiros dentro dos
acervos de museus pelo mundo, especialmente na Europa, sem que haja uma
catalogação devida. Muitas dessas peças são artefatos únicos, que mesmo as
comunidades que as produziram não têm mais.
“Temos
atualmente uma aliança entre povos indígenas e pesquisadores para tentar
descobrir quantos são, o que é que está e onde está. E, a grande questão, é o
que fazer com essas peças, a quem elas pertencem”, assinala Françozo.
O
resgate deste conhecimento sobre essas peças tem sido objeto de estudos
recentes, mas ainda há muito o que fazer na área.
A
antropóloga Nathalie Le Boulet Pavelic, que pesquisa os Tupinambás de Olivença,
destaca que nos museus esses artefatos muitas vezes ainda são vistos como
vestígios do passado, sem relação com um povo que ainda existe.
“Não é
porque é um artefato nos museus que não é uma peça do cotidiano dos povos e que
tenha uma importância muito grande para eles em alguma área, ou religiosa ou do
dia a dia. Daí a importância dos museus de trabalharem junto com os povos
indígenas e saber como é que aquilo vive atualmente dentro das aldeias”,
defende.
A
retomada da tecnologia
Cacique
Babau vestido com manto tupinambá na aldeia da Serra do Padeiro, no sul da
Bahia — Foto: Glicéria Tupinambá/Cortesia
Cacique
Babau vestido com manto tupinambá na aldeia da Serra do Padeiro, no sul da
Bahia — Foto: Glicéria Tupinambá/Cortesia
A
visita ao manto do século 16 serviu de base para que Glicéria confeccionasse
uma nova peça. Um manto vivo, nas palavras da líder indígena, tecido com
algodão encerado pela cera das abelhas tiúba e penas de aves da comunidade,
entre elas o gavião, o canário-da-mata e o tururim.
“A
gente lutou pela revitalização do meio ambiente, da mata, pela volta dos
animais. A gente tem uma recuperação muito forte do nosso território. E o manto
só passa a existir porque existe um equilíbrio na natureza do território da
Serra do Padeiro”, afirma.
“Faltava
o manto, e ele chega neste momento, quando o Brasil está em uma crise daquelas
terríveis, onde tudo é contra os povos indígenas, tudo é contra a demarcação
das terras indígenas. Ele vem quando é preciso ele existir.”
O manto
ritual está na aldeia e foi vestido pelo cacique Babau durante a cerimônia em
que recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade do Estado da Bahia
em junho deste ano.
Pergunto
à líder indígena se ela gostaria de reaver as peças que estão nos museus
europeus. Ela rejeita a proposta e diz que receber o manto de volta seria
perdoar os crimes cometidos contra seu povo.
“Para
nós de Serra do Padeiro, o manto lá é como uma condenação para os europeus, a
pena deles é cuidar dos vestígios do povo tupinambá. Mas queremos que eles
abram espaço para receber os povos indígenas, para que possamos também ter
contato com as pegadas do nosso povo”, conclui.
Com a
retomada da técnica de produção, Glicéria teceu um segundo manto, atualmente em
exposição. O manto ritual pode ser visitado na Funarte Brasília, na mostra
“Essa é a grande volta do manto tupinambá”, ao lado de obras de Edimilson de
Almeida Pereira, Fernanda Liberti e Gustavo Caboco.
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