quinta-feira, 26 de outubro de 2023

REFLEXÃO 03

 

Social, filantrópico e missionai: conheça o futuro do empreendedorismo no Brasil – parte 1

 

Por Paulo Humaitá

 

Nas últimas décadas, o empreendedorismo passou a ser mais encorajado em muitos países ao redor do mundo, principalmente como estratégia de impacto social e missões. Este artigo, às vezes realista, por outras vezes futurista, tem como objetivo entregar uma reflexão do porquê, gradualmente, o mundo está percebendo que o empreendedorismo e a inovação trabalham em conjunto para minimizar a pobreza através do emprego (jobs), mas também para acelerar a Grande Comissão (Jesus).

 

Para nós, cristãos, isso passa por um resgate da compreensão bíblica de que todos os seguidores de Jesus estão em missão e de que, doar para missões, é muito longe de ser a única forma com que a esmagadora maioria dos membros de uma igreja local participa desse movimento. Doar é o mínimo que podemos fazer, além de ser uma obrigação bíblica que podemos realizar com muita disposição e alegria. Entretanto, quantas pessoas têm tentado terceirizar o seu papel na missão de Deus ao doar financeiramente mas não investindo a própria vida no Reino? Se realmente nos importamos com missões, é muito importante que comecemos a aprofundar e analisar criticamente o impacto de como fazemos a missão acontecer ao redor do mundo. 

 

O futuro do impacto social é o empreendedorismo

Empreender com boa intenção não é suficiente para gerar um impacto positivo. É preciso ter uma tese clara e um modelo sustentável de negócio, o que não aconteceu com a Toms Shoes, um exemplo negativo de empreendedorismo de impacto.

 

Ao doar um par de calçados por cada um que era vendido a um país pobre, a empresa gerou impactos negativos irreparáveis ao influenciar um comportamento de dependência nas comunidades que apoiava. Isto é, a imagem que ficou é a de que ninguém precisava se esforçar, estudar e trabalhar, pois ganhavam o que precisavam: o calçado, o alimento, etc. Além disso, o projeto acabou levando os negócios locais de calçados à falência, gerando mais desemprego e mais pobreza a essas localidades. A boa intenção gerou mais desgraça para aquelas comunidades e a Toms Shoes, depois de anos de reflexão, abandonou este modelo.

 

Esse ponto também é destacado pela economista internacional, Dambisa Moyo, em seu livro Dead Aid, que avalia a ajuda filantrópica como um alívio temporário de problemas. Mas que a única força capaz de criar 1,8 bilhão de novos empregos e combater a pobreza da África é o empreendedorismo. No livro From Aid to Trade, o empreendedor haitiano Daniel Jean-Louis e a empreendedora norte-americana Jacqueline Klamer estudaram o impacto negativo no Haiti. Como resposta ao terremoto devastador de 2010, muitas ONGs correram para o país para aliviar a fome. Mas quando a crise imediata cessou, elas falharam em fazer a transição da ajuda humanitária para empreendedorismo e negócios. Como resultado, eles não só deixaram muitas crianças dependentes da filantropia para sobreviver, como também os pais das crianças que perderam seus empregos. Uma das organizações foi a FMSC (Feed My Starving Children) que foi fundada em 1987 com a missão de “alimentar os pequeninos de Deus que tem muita fome física e espiritual”. Porém, o arroz dado pela FMSC era comprado nos EUA e enviado até o Haiti, mesmo que muitos empreendedores haitianos produziam arroz em suas plantações. O estudo constatou que: “no curto prazo, o programa ajuda muitas crianças haitianas a sobreviver, mas prejudica os seus futuros ao colocar uma pressão mercadológica desnecessária nos fazendeiros haitianos, ao invés de fomentar a economia local”. O resultado da boa intenção no Haiti foi desastroso, gerando ainda mais pobreza para o país. Este é o impacto que queremos das nossas organizações cristãs?

 

Certa vez, estava em um almoço privado com um filantropo francês que gerenciava um fundo de alguns bilhões de euros. Quando perguntado sobre a sua tese de impacto, ele disse: “só fazemos doações para o norte da África e Europa central”. Ao ser questionado sobre a motivação da sua tese regional, ele respondeu: “no fundo, fazemos isso para deixar essas pessoas dependentes, dessa forma elas não criam negócios que possam competir com os negócios europeus”.

 

Empreender é também expressar de forma evidente o caráter criativo de Deus. Ao estabelecer políticas ou práticas como essas mencionadas acima, resultando em pessoas dependentes e acomodadas, cometemos um crime contra a humanidade. A ausência dessa liberdade econômica rouba das pessoas e famílias a autonomia que poderiam ter empreendendo ou se beneficiando da atividade empreendedora através de um bom emprego. Afinal, Deus nos chamou para sermos trabalhadores.

 

Hoje no Brasil existe um crescente movimento de empreendedorismo de impacto formado por alguns milhares de novos negócios que surgiram na última década. Para estes empreendedores e investidores, o retorno em impacto importa tanto, ou até mais, do que o retorno em dinheiro. Quem é reconhecido como o principal precursor deste movimento no mundo? O economista muçulmano Muhammad Yunus, criador do conceito de microcrédito e que através de um banco social impactou a vida de milhões de pessoas em Bangladesh e, com isso, foi ganhador do Nobel da Paz em 2006. O empreendedorismo é uma ferramenta poderosa para enfrentar os grandes desafios do mundo contemporâneo.

 

O futuro da filantropia é o empreendedorismo

A evolução da filantropia tem apresentado mudanças significativas ao longo do tempo, e sua relação com o empreendedorismo tem se tornado cada vez mais próxima. Agora, a filantropia não se limita apenas a doações, mas também em abordagens empreendedoras que visam maximizar o impacto social. A filantropia empreendedora reconhece que é necessário não apenas tratar os sintomas, mas também curar as raízes dos problemas sociais.

 

A verdade é que o empreendedor, embora possa causar muito impacto na sociedade, está sozinho na jornada, principalmente no início. Ao contrário de outros países, um típico empreendedor brasileiro não possui capital próprio e não consegue contar com ajuda de capital inicial de FFFs (Family, Friends and Folks ou Familiares, Amigos e Parceiros). Ao mesmo tempo, o crescente número de investidores-anjo no Brasil é formado por investidores mais conservadores, que aplicam o capital somente após a validação do negócio em demonstrar uma solução que funciona e vendas a clientes, o que é diferente da lógica de investimento-anjo em países mais desenvolvidos. E para o empreendedor chegar até lá? Quantos milhões de brasileiros são excluídos do ecossistema empreendedor devido a este cenário?

 

Este é um dos motivos porque há um crescente movimento de fundos filantrópicos e fundações norte-americanas que, ao apoiarem modelos puramente assistencialistas durante décadas, compreenderam que tais modelos transformam comunidades de uma forma muito limitada. As fundações, geralmente conectadas a empresas familiares que repassam a elas uma parte do lucro, têm se tornado mantenedoras de incubadoras e aceleradoras de negócios quando observam que o que traz impacto positivo para as comunidades é o impulsionamento do empreendedorismo local. 

 

É neste cenário que surge o Blended Finance, um modelo que investe recursos de diferentes fontes, que podem ser privadas, públicas ou filantrópicas. Agora, pare e responda: é um nobre destino usar filantropia para geração de emprego e renda? Com um bom emprego e uma renda melhor, as famílias podem investir mais em qualidade de vida, educação, saúde e até as suas igrejas são melhores assistidas.

 

Existem diversos cases conhecidos de filantropia empreendedora, sendo um ótimo exemplo a Fortlev, uma empresa brasileira que se especializa em soluções para armazenamento de água. Eles são líderes no Brasil no setor de caixas de água, fornecem produtos de alta qualidade e realizam programas de inclusão, ajudando comunidades carentes no sertão brasileiro a terem acesso a água potável e criando oportunidades de emprego local. Com o projeto Água Viva, levam água para o sertão brasileiro através do empreendedorismo, tais como ações de plantações via hidroponia, entre outras, onde famílias bem pobres do sertão, que antes nem acesso à água tinham, agora lideram seus negócios, gerando renda, melhor qualidade de vida, educação para as próximas gerações, e ainda tem acesso a água limpa.

 

A mudança de paradigma não está acontecendo somente do ponto de partida do setor empresarial, mas emerge também de dentro do terceiro setor. Um exemplo disso é a organização Water4, uma associação sem fins lucrativos com operações na África. Nos últimos anos, eles pararam de enxergar o africano como alguém que só precisa receber água e começaram a enxergar pessoas como seres econômicos, descobrindo que um alto percentual delas poderia pagar pela água consumida. Um exemplo disso foi o que aconteceu com Augustina, dona de um salão de beleza na comunidade rural Wassa em Uganda. Antes, ela levava 3 a 4 horas por dia carregando água de longe para lavar o cabelo de seus clientes, mas agora ela paga pela conveniência da água que chega ao seu salão, ganhando tempo para atender mais clientes, o que gerou quatro novos empregos na sua comunidade e conseguiu colocar seus filhos na escola. O primeiro poço furado pela Water4 há mais de uma década continua ativo somente devido aos negócios locais que foram surgindo dessa forma e, atualmente, eles se tornaram a maior organização provedora de água em todo o continente africano. É uma organização sem fins lucrativos que gera impacto incubando e acelerando negócios.

 

É importante ressaltar que não se trata de uma competição entre abordagens filantrópicas, mas sim de união para aumentar o impacto global. A filantropia empreendedora chega para ajudar a construir uma visão de futuro onde a solidariedade se alia à inovação. É uma abordagem que está moldando o amanhã da filantropia, oferecendo esperança e soluções duradouras para os desafios que enfrentamos.

 

Por Paulo Humaitá, CEO e founder da Bluefields Aceleradora @bleufields_aceleradora.

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