3-A
LIÇÃO DOS TUPINAMBÁS A UM FRANCÊS DO SÉCULO XVI
Por
João Cardoso
“E de
fato nem bebem eles nessas fontes lodosas pestilenciais que nos corroem os
ossos, dessoram a medula, debilitam o corpo e consomem o espírito, essas fontes
em suma que, nas cidades, nos envenenam e matam e que são a desconfiança e a
avareza, os processos e intrigas, a inveja e a ambição. Nada disso tudo os
inquieta e menos ainda os apaixona e domina, como adiante mostrarei. E parece que
haurem todos eles na fonte da Juventude.“
O
francês Jean de Léry publicou em 1578 um dos mais interessantes relatos sobre o
Novo Mundo recém-conquistado pelos europeus: Histoire d’un voyage faict en la
terre du Brésil (História de uma viagem feita na terra do Brasil, ou
simplesmente Viagem à terra do Brasil). Em 1555, Nicolas de Villegagnon funda
uma colônia francesa na Baía de Guanabara chamada França Antártica. Para
garantir a posse do local, os franceses constroem um forte em uma das ilhas da
baía e fazem uma aliança com os tupinambás, que habitam a região. Cinco anos
depois, os portugueses destroem o forte e expulsam o franceses, que fogem para
o continente e resistem mais alguns anos antes de serem completamente
derrotados pelos portugueses. Léry esteve na França Antártica nesse período e
conviveu cerca de dez meses com os tupinambás. Seu relato é uma rica fonte de
informações sobre o modo de vida dos índios, que ele criticou mas que sobretudo
aprendeu a admirar.
A voz
crítica de um velho tupinambá
Numa
das mais célebres passagens de Viagem à terra do Brasil, Léry faz algo pouco
comum nos relatos de viajantes europeus sobre o novo mundo – ele dá voz a um
índio.
“Os
nossos tupinambás muito se admiram dos franceses e outros estrangeiros se darem
ao trabalho de ir buscar o seu arabutan [pau-brasil]. Uma vez um velho
perguntou-me: Por que vindes vós outros, maírs e perôs (franceses e
portugueses) buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em
vossa terra ? Respondi que tínhamos muita mas não daquela qualidade, e que não
a queimávamos, como ele o supunha, mas dela extraíamos tinta para tingir, tal
qual o faziam eles com os seus cordões de algodão e suas plumas.
Retrucou
o velho imediatamente: e porventura precisais de muito? Sim, respondi-lhe, pois
no nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras,
espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só deles compra todo
o pau-brasil com que muitos navios voltam carregados. — Ah! retrucou o
selvagem, tu me contas maravilhas, acrescentando depois de bem compreender o
que eu lhe dissera: mas esse homem tão rico de que me falas não morre? — Sim,
disse eu, morre como os outros. Mas os selvagens são grandes discursadores e
costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: e
quando morrem para quem fica o que deixam? — Para seus filhos se os têm,
respondi; na falta destes para os irmãos ou parentes mais próximos. — Na
verdade, continuou o velho, que, como vereis, não era nenhum tolo, agora vejo
que vós outros maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis
grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para
amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não
será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também ? Temos pais,
mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a
terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores
cuidados.
Este
discurso, aqui resumido, mostra como esses pobres selvagens americanos, que
reputamos bárbaros, desprezam àqueles que com perigo de vida atravessam os
mares em busca de pau-brasil e de riquezas. Por mais obtusos que sejam,
atribuem esses selvagens maior importância à natureza e à fertilidade da terra
do que nós ao poder e à providência divina; insurgem-se contra esses piratas
que se dizem cristãos e abundam na Europa tanto quanto escasseiam entre os
nativos. “Os tupinambás, como já disse, odeiam mortalmente os avarentos e
prouvera a Deus que estes fossem todos lançados entre os selvagens para serem
atormentados como por demônios, já que só cuidam de sugar o sangue e a
substância alheia.”
Na
memorável fala desse velho tupinambá, as posições habituais da conquista
colonial europeia se invertem. É o índio que vê o europeu como um outro
incompreensível, ou melhor, o velho índio busca inicialmente compreender as
motivações desses homens que atravessam o oceano em busca de madeira, ou, de
maneira mais abstrata, de lucro. Somente após compreendidos os propósitos dos
europeus, o índio os avalia e afirma os valores que julga mais adequados para
viver-se uma vida boa. Se nessa fala do tupinambá os valores do outro europeu
são rejeitados – assim como os europeus rejeitam os valores dos índios -, o processo
que leva à rejeição parece mais elaborado do lado indígena, que busca
compreender a prática do outro antes de julgá-la.
É
impossível saber em que medida Léry apresenta um relato fidedigno do discurso
do velho índio. Não deixa de ser notável, contudo, o fato de ele ter projetado
a voz crítica do índio em seu relato. Em alguma medida, Léry adere à crítica do
índio aos europeus e, em sentido inverso, ao descrever os hábitos dos
tupinambás ao longo do livro, muitas vezes não esconde sua admiração pelo modo
de vida “selvagem”. Essa relativa abertura de Léry ao outro talvez encontre
explicação em seu percurso de vida.
Léry e
a condição de perseguido
Jean de
Léry (1536 – 1613), teve uma vida atribulada, em grande medida em razão de sua
conversão ao protestantismo em um momento de sangrentos conflitos entre
católicos e protestantes na Europa. Sapateiro de ofício, Léry viaja, em 1552,
de La Margelle, sua cidade natal, até Genebra para encontrar o teólogo francês
João Calvino, um dos protagonistas da Reforma Protestante. Villegagnon, o
fundador da França Antártica, tem interesse nas ideias reformistas de Calvino e
escreve a ele pedindo que envie pastores calvinistas à colônia. Seu desejo é
que no Brasil os protestantes franceses, perseguidos em seu país, pudessem
encontrar abrigo. João Calvino atende ao pedido e em 1557 partem para o Brasil
14 pastores calvinistas. Entre eles está Jean de Léry. Bem recebidos a
princípio na colônia, onde chegam em março de 1557, o grupo de protestantes em
pouco tempo ganha a inimizade de Villegagnon, que sofre pressão dos lados
católico e protestante. Em outubro de 1557, a mesma pessoa que tinha estimulado
os calvinistas a atravessar o oceano para encontrar lugar seguro os expulsa do
forte onde a colônia está estabelecida. O grupo busca então refúgio no
continente, onde convivem com os tupinambás até janeiro do ano seguinte, quando
parte do grupo embarca de volta para a França. A viagem de Léry de volta à
França quase tem fim trágico. Tormentas, incêndio, fissuras no casco do navio e
fome extrema foram alguns dos infortúnios por que passaram os viajantes, muitos
dos quais sucumbiram no percurso.
De
volta ao país natal, Léry não se livrou da perseguição por conta de sua
religião. O acontecimento mais emblemático ocorreu entre 1572 e 1573: foi o
cerco, feito pelos católicos durante 5 meses, à cidade francesa de Sancerre,
onde os protestantes buscavam refúgio. Léry esteve entre os prisioneiros do
cerco, sofreu novamente a fome extrema, mas novamente sobreviveu e deixou um relato
sobre o episódio: Histoire mémorable du siège de Sancerre (História memorável do cerco de Sancerre).
No meio
de uma aldeia tupinambá
Como
protestante, Léry teve a experiência de ser um outro entre a maioria de seus
compatriotas, que professavam a fé católica e perseguiam os seguidores das
novas religiões que surgiam na Europa nesse tempo. Essa condição talvez tenha
permitido que Léry visse os índios com quem conviveu com um olhar diferente do
de outros viajantes, pois sua experiência na Baía de Guanabara não foi apenas a
do conquistador que chega em terra estranha para impor outra forma de vida; foi
sobretudo a de alguém que, como os índios com quem conviveu, teve de enfrentar
o violento esforço de dominação de um modo de pensar e fazer hegemônico.
Viagem
à terra do Brasil oscila entre a condenação dirigida aos índios e a admiração
que eles inspiraram em Léry. Hábil escritor, Léry é capaz de conquistar seu
leitor criando um efeito de proximidade que transmite a ilusão de que
penetramos nas aldeias tupinambás e descobrimos como os índios se relacionam
entre si, como caçam, pescam, plantam, como produzem seus objetos, sua comida,
sua bebida, como se enfeitam, como lutam contra seus inimigos, como enterram
seus mortos. Ao longo desse percurso de descoberta, é difícil não ser
conquistado pelo sentimento de admiração pelos tupinambás. Se Léry quis tanto
criticar quanto louvar seu modo de vida, há pouca dúvida de que foi mais
competente em exaltar do que em rebaixar os índios.
Referência
Léry,
Jean de. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2007.
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