O
surgimento de um novo ser
Publicado
no Mídia Sem Máscara no início deste século
Com a
aproximação da votação da Lei que pretende legalizar o assassinato de fetos,
julguei oportuno republicar, com atualizações, este artigo anterior.
Tentando
desfazer alguns mitos
Desde o
início um dever se impõe, já que estaremos falando de algo que se situa na
muitas vezes tênue fronteira entre ciência e religião, que freqüentemente
divergem, outras vezes convergem. O autor tem o dever, pois, de explicitar de
qual ponto de vista está falando.
É muito
fácil cair na armadilha de dizer que “falo em nome da ciência” ou das “mais
recentes descobertas científicas” como se a ciência existisse num vácuo, não
fosse, e aqui difere da religião, produto dos mesmos seres humanos que pretende
estudar ou a Natureza que os circunda. É muito comum as pessoas pensarem na
ciência como um conhecimento apartado do mundo dos seres humanos, algo assim
como um árbitro definitivo a respeito da realidade. Nada mais falso, a ciência
é produto da mente humana ao observar o mundo e, portanto, é influenciada pela
imaginação, fantasias e desejos dos pesquisadores. Há uma diferença sim, mas é
outra: uma hipótese científica pode e espera-se que seja testada
independentemente por outros cientistas. Não é, ou não deveria ser, dogmática.
Será sempre refutável e assim deve ser. Só se firmará se resistir às
refutações, mesmo assim só o tempo dirá se não serão refutadas no futuro.
Há
evidentemente entre a explicação científica e a religiosa uma tensão natural e
que jamais será resolvida, nem sendo desejável que desaparecesse, se isto fosse
possível. A tentativa mais séria e danosa de negar esta tensão foi erigir uma
“religião científica” como no positivismo e no marxismo. Neste último
atingiu-se as raias do absurdo: tudo se fez para que a natureza coubesse nas
explicações do “materialismo dialético”, até as mais estapafúrdias teorias de
Engels expostas em seu “Dialética da Natureza”, que os marxistas gostariam de
esquecer pois até eles se sentem envergonhados de tantas bobagens de um dos
membros de sua “santíssima trindade”. Da mesma forma, a história, o simples
relato de fatos, foi distorcida para se enquadrar no “materialismo histórico”.
Apesar de alegarem que seu socialismo era “científico” tudo o que conseguiram
foi fundar uma nova religião a qual, resiste menos do que as outras a uma
atmosfera de liberdade, só se mantém sob o jugo do totalitarismo.
Portanto,
não tenho uma posição materialista porque os fenômenos humanos, mormente os
mentais, transcendem meras operações materiais das ondas elétricas cerebrais,
embora as “neurociências” – a mais moderna versão materialista sobre a mente –
venham tentando esta redução a todo custo.
Se é
verdade que as religiões foram arrogantes em dar explicações antes da
observação, a ciência não o tem sido menos, por acreditar que se pode saber
tudo através da observação e dedução.
Este é outro mito a respeito da ciência, de que as teorias são “produtos
da observação”. A ciência depende de alguns indivíduos excepcionais, que
podemos chamar gênios, que intuem algo de forma direta e inexplicável e daí
partem para tentar provar o que perceberam. O exemplo claro é o de Einstein:
ele não baseou sua teoria na observação do desvio da luz pela atração
gravitacional; ele intuiu a característica corpuscular da luz sem nenhuma
observação, e disse que, se ele estivesse certo, a luz seria desviada. Somente
anos depois se deram as condições favoráveis para esta observação, durante um
eclipse solar, e não deu outra, a luz desviou conforme Einstein predissera.
No
assunto que vou tratar a seguir teremos uma explicação de como surge um novo
ser, mas não pretende ser uma resposta para as perguntas “o que é a vida, por
que morremos?” Estes limites da ciência fazem com que alguns cientistas se
satisfaçam com a explicação de que é apenas uma cadeia de aminoácidos
organizados de maneira específica que um dia fenece.
Um
ponto que tende a aproximar as teorias científicas das religiosas é que, hoje,
não se considera que o processo vital sofra descontinuidade, isto é, que a vida
recomece a cada novo ser. Acredita-se que a vida teve um impulso inicial –
sopro vital, divino – e passou a fluir constantemente de uns seres para outros.
Pode-se dizer que a vida, após o impulso inicial continua fluindo porque os
genes se recusam a morrer e se perpetuam neste fluir. As células que conduzem
os genes, o espermatozóide e o óvulo, são obviamente células vivas e, portanto,
a vida se continua desde o momento da fecundação.
Depois
de séculos com as religiões perseguindo as ciências não deixa de ser curioso,
até mesmo irônico, que haja uma reação tão violenta nos EUA cada vez que um
Governo Republicano sugere que a explicação bíblica da Criação volte a ser
ensinada junto com a darwinista. Medo de
quê? Não deveria ser próprio dos cientistas este medo pois a verdade pré-existe
a alguém que a descubra e a pense; a grande contribuição do ser humano é a
mentira, esta sim não existe sem um pensador.
Embriologia
Todos
os seres vivos possuem duas molas propulsoras: a defesa da própria vida e a
tendência à preservação da sua espécie. Não parece haver nada anterior a isto,
simplesmente é assim. Ao mesmo tempo, o
único destino previsível de um ser vivo é a morte, o que faz supor que exista
além do impulso vital, um outro impulso que pode genericamente ser chamado de
“tendência de retorno ao inorgânico”, como sugere a expressão latina revertere
ad locum tuum. Trataremos aqui de como esta coisa começa.
Fecundação:
penetração do espermatozóide no óvulo resultando no ovo que precisa de uma
série de circunstâncias favoráveis para se dividir e crescer, entre elas a
situação físico-química presente dentro da cavidade uterina, sendo a principal
a condição do endométrio (parede interna do útero) para permitir a formação do
“ninho”.
Nidação:
no período fértil da mulher todo o aparelho genital sofre uma série de
modificações no endométrio. Estas são resultado das alterações hormonais que
preparam a mulher para a gravidez. A principal é o aumento dos progestágenos e
a diminuição relativa dos estrogênios. Como o próprio nome o diz, pró–gestar,
quer dizer “a favor da gestação”. Há um aumento da vascularização do endométrio
deixando o terreno preparado para a imediata fixação de um óvulo eventualmente
fecundado. Caso isto não ocorra voltam a se inverter as quantidades hormonais
relativas, o endométrio descama e “solta-se” junto com o óvulo não fecundado no
fluxo menstrual.
Caso o
óvulo tenha sido fecundado ele tende a nidar, fazer seu ninho, a predominância
de progesterona aumenta e a partir daí começa a se dividir e iniciar a fase
embrionária. Note-se desde aqui algo que, ao menos do meu ponto de vista, já é
uma primeira ação do novo ser, pois são as informações recebidas pelo aparelho
glandular da mãe por parte deste óvulo fecundado que impedem a reversão
hormonal que levaria inevitavelmente à expulsão menstrual, isto é, o novo ser
já luta pela sua vida e pela preservação da espécie.
O
primeiro “lago” placentário: no local onde ocorreu a nidação começa a se
reproduzir o ovo se iniciam mudanças histológicas e anatômicas importantes. Vai
se formando um novo tecido e um novo órgão que não é nem embrião nem mãe, mas a
interface entre ambos, a placenta. Sabiamente a natureza fez com que esta não
seja parte da mãe, mas possa, no momento adequado, permanecer ligando a mãe com
o feto que poderá então permanecer usando ainda o sangue proveniente da mãe e
que lhe dá tempo de passar pelo canal do parto e sobreviver, até que possa
respirar por si mesmo e adquirir o oxigênio vital através dos pulmões e não mais
via glóbulos vermelhos maternos. Se a placenta pudesse “se soltar” antes de
cortado o cordão umbilical, o feto morreria imediatamente após o “desgarre” do
endométrio, por falta deste combustível vital.
O
segundo “lago” placentário: acreditava-se que o aumento do aporte sanguíneo à
placenta com a constante criação de novos vasos que possam suprir a demanda
cada vez maior do embrião em crescimento, fosse um processo contínuo. Mas a
patologia (estudo das doenças), como em outras vezes, veio em socorro da fisiologia
(estudo do funcionamento normal) e percebeu-se que não era bem assim. O que vai
a seguir é fundamental para minha tese, por isto peço paciência com alguns
termos talvez não familiares mas que tentarei colocar nas palavras mais simples
possíveis.
Há uma
doença conhecida desde a Antigüidade que acomete mulheres grávidas e
freqüentemente leva à morte. Ela se caracteriza por três sinais principais (em
propedêutica chama-se sintoma o que o paciente relata espontaneamente e sinal
aquilo que é encontrado pelo exame médico): aumento contínuo da pressão
arterial podendo atingir níveis mortais, edema (inchaços) e presença de
proteínas na urina. Por esta última razão as comadres diziam “fulana, coitada,
morreu de albumina”, porque esta é uma das séries de proteínas que aparecem na
urina nesta doença. O nome médico era eclampsia ou toxemia gravídica. Usualmente as proteínas não saem pela urina,
não são excretadas, pois são os principais compostos químicos do organismo. Exatamente por isto a principal demanda do
embrião é exatamente protéica e, mais uma vez, a troca de mensagens feto-mãe
faz com a última “fabrique” mais proteínas, usando às vezes as suas próprias se
o suprimento não estiver satisfatório. Na gravidez há, portanto, um aumento das
proteínas circulantes que devem chegar ao feto e não ao rim. Se isto ocorre, há
algo errado.
Com o
refinamento dos métodos de investigação chegou-se às seguintes conclusões: 1- o
aumento do “lago” placentário não é de crescimento contínuo e linear; 2- em
algum momento, o embrião, que já produz alguns hormônios, deve “enviar” alguns
deles para o organismo da mãe para ajudar na ampliação do “lago”, formando um
verdadeiro segundo lago que permita o aumento de suprimento protéico e de
oxigênio. É assim como se numa lagoa o aumento do número de peixes forçasse o
aumento da extensão para não morrerem de inanição.
Se esta
contribuição fetal não ocorre, o organismo da mãe, seguindo as leis da
natureza, tenta de algum modo compensar, mandando mais sangue. Só que este, por
falta de vasos mais calibrosos, fica “represado” (como se os afluentes da
hipotética lagoa encontrassem resistência), o bombeamento cardíaco materno
aumenta, aumentando continuamente a pressão arterial e da mesma forma que
ocorreria com os afluentes, estes transbordam para os tecidos (edema), e
pressionam sua saída pelos rins. E aí está a explicação da eclampsia, que hoje
tem outro nome, Doença Hipertensiva Específica da Gravidez por causa exatamente
da participação fetal que não ocorre em nenhuma outra circunstância.
Mesmo
que alguns possam achar que estou sendo demasiado poético ou idealista, estas
contribuições do embrião e mais tarde do feto – e muitas outras mais – já são
expressão de impulsos básicos, herdados, uma espécie de “conhecimento a priori”
ou pré concepções, que já o identificam como pessoa.
Considerações
finais
Embora
seja polêmico, considera-se que tal herança, transmitida pelos genótipos
(contribuição genética, em oposição aos fenótipos, do ambiente) não se limita a
características físicas mas inclui também uma espécie de “lembrança da história
da evolução da espécie”, um registro de toda a filogênese que já deixa o novo
ser apto a enfrentar o ambiente, primeiramente intra-uterino, posteriormente o
externo. E é óbvio também que, sendo milhões de espermatozóides e só um penetra
no óvulo, cada um carrega consigo uma carga genética com um certo grau de
individualidade. O ovo, portanto, não é apenas mais um novo ser, mas um novo
ser específico, individualizado desde o início.
Alessandra
Piontelli, pediatra e psicanalista infantil italiana, tem trabalhos pioneiros
na área de observação pré, peri e pós-natal imediata com o uso de Ultra-som,
Raios X e, posteriormente, da observação direta do bebê com a mãe. Publicou uma
vastíssima obra na qual fica comprovado que a vida do feto não se limita a
executar atos puramente reflexos, mas desenvolve até atividades tão complexas
como chupar o dedo, reagir a estímulos químicos – como a modificação da dieta
materna – ou mecânicos – como sons, batidas na barriga, etc. Mostraram-se
reações emocionais intensas, como expressões de dor ou prazer. A continuidade
da observação durante o parto e nos primeiros meses de vida, comprovaram que o
feto já tem, potencialmente, uma “personalidade” própria e intransferível que
vai desabrochando aos poucos no contato com o ambiente. Este, para ajudar, tem
que ser um “ambiente de expectativas médias” (average expectable environment),
que permitam aflorar as características físicas e mentais que o novo ser já
traz dentro de si. Não atrapalhar é o melhor que os pais podem fazer.
Como
disse Graça Salgueiro quando leu o texto original: o feto é um “hóspede” que
acabado o período de “aluguel”, parte, livre e relativamente independente do
“hospedeiro”. Relativamente porque ainda dependerá em muito do ambiente que o
circunda, mas não mais daquele hospedeiro específico. Embora seja melhor que a
relação com a própria mãe seja mantida, o bebê já não morre mais se esta
morrer, pois poderá ser socorrido por qualquer outra pessoa que o ame. O amor é
uma expressão específica do ser humano, mas acredita-se que tenha por base o
impulso instintivo de vida e preservação da espécie, embora o transcenda.
* * *
Termina
aqui minha exposição, que teve a intenção somente de apontar razões científicas
para a identificação do feto como um ser humano em formação, com
características próprias, que não permitem conceitua-lo como “parte do corpo da
mãe”, mas que apenas partilha com ela a interface placentária, enquanto isto
for uma necessidade. Deste ponto de vista, portanto, é inevitável concluir que
o aborto é uma espécie de homicídio, ou filicídio, de um ser já com
individualidade que tem, in potentia, todas as condições de se desenvolver
plenamente. Qualquer decisão, seja pessoal, seja jurídica, não deve evitar este
conhecimento.
Será
necessário, mesmo assim, abortar fetos que ameacem a vida da mãe gestante? Ou
de fetos com reconhecidas anomalias físicas ou psíquicas que, se deixados
nascer, tornarão suas vidas e a de seus pais um verdadeiro inferno? Não cabe ao cientista dar estas repostas, que
pertencem ao campo da ética, da moral, da ciência jurídica e das convicções
religiosas de cada um. Filósofos e cientistas não têm vocação administrativa,
como pode ser deduzido da fracassada tentativa de Platão de levar à prática
política sua idéia dos Reis Filósofos.
Mas
seria desejável que toda a decisão fosse tomada com base na verdade, e não em
invenções falaciosas com a finalidade de eliminar os sentimentos de culpa de
todos os envolvidos. Não dá certo, e disto tenho uma longa prática de
atendimento psicológico: a culpa está sempre presente, por mais eficiente que
seja a racionalização consciente do ato.
Heitor
De Paola
Heitor
De Paola é escritor e comentarista político, membro da International
Psychoanalytical Association e Clinical Consultant, Boyer House Foundation,
Berkeley, Califórnia, e Membro do Board of Directors da Drug Watch
International (AP).
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