Partenogênese:
É possível nascimento virgem em humanos?
Apesar
de uma 'Virgem Maria' não ter sido encontrada ainda entre os mamíferos,
diversas espécies no Reino Animal, incluindo pássaros e répteis, exibem uma
reprodução sem a participação do macho, seja de forma facultativa, obrigatória
ou acidental. Antes pensado ser apenas uma curiosidade rara entre os
vertebrados, nos últimos anos os cientistas vêm mostrando que essas 'mães
virgens' nos seres multicelulares mais complexos são muito frequentes mesmo no
meio selvagem, com o Dragão-de-Komodo e o Tubarão-Martelo sendo os casos hoje
conhecidos mais famosos. Mas será possível uma partenogênese entre humanos?
PARTENOGÊNESE
A partenogênese basicamente envolve
fêmeas que depositam ovos não fertilizados capazes de gerar indivíduos, ou
seja, a ocorrência de desenvolvimento embrionário sem a presença de um gameta
masculino. O processo evoluiu de forma independente e recorrente a partir do
sistema de reprodução sexual em vários organismos multicelulares, desde vermes
até répteis. No geral, é uma estratégia de reprodução comum entre vários
invertebrados.
Alguns autores definem a
partenogênese como a produção de um embrião de um gameta feminino sem qualquer
contribuição genética de um gameta masculino, e com ou sem o desenvolvimento de
um eventual adulto. Nesse sentido, qualquer grau de desenvolvimento em ovos não
fertilizados é considerado uma partenogênese. Além disso, é importante
distinguir esse processo reprodutivo de outras formas assexuadas de reprodução,
como a fissão e o brotamento, já que envolve os gametas femininos. A
partenogênese, aliás, é frequentemente caracterizada como uma forma incompleta
de reprodução sexuada.
A maioria das linhagens
partenogenéticas são facultativas - ou seja, indivíduos podem se reproduzir
tanto por partenogênese quanto por reprodução sexuada -, mas algumas poucas
linhagens - como os rotíferos bdeloídeos, animais microscópicos que habitam
ambientes de água doce - acabaram evoluindo uma partenogênese obrigatória. No
último caso, no entanto, mecanismos genéticos alternados foram necessários
surgir para compensar os danos no DNA se acumulando e persistindo com a menor
variabilidade genética resultante do processo partenogenético. Nos vertebrados,
a partenogênese ocorre naturalmente de forma facultativa e muitas vezes
acidental, com raríssimas exceções onde evoluiu como um meio reprodutivo
obrigatório (restrito a algumas espécies de répteis Escamados). Em geral, temos
como principais
-
Partenogênese obrigatória: Modo de reprodução rara e estimado de ocorrer em
apenas cerca de 100 vertebrados e 1000 espécies de vertebrados. Bons exemplos
são os citados rotíferos bdelóides, apelidados inicialmente de "escândalos
evolucionários" por terem conseguido persistir por milhões de anos mesmo
na ausência de recombinação genética. No entanto, foi eventualmente descoberto
que o processo de transferência horizontal de genes fornecia suficiente
diversificação genética nesses animais. Outros exemplos são encontrados em
cladoceranos, afídeos, carrapatos, insetos e répteis escamados.
-
Partenogênese espermatozoide-dependente: Aqui temos um tipo obrigatório de
partenogênese que ocorre quando a fêmea/hermafrodita ainda precisa do
espermatozoide do macho para iniciar o desenvolvimento embrionário. Exemplos
são encontrados em vermes nematoides, artrópodes, anfíbios e peixes
unissexuais.
-
Partenogênese facultativa: É o tipo mais comuns onde as fêmeas pode se
reproduzir partenogeneticamente e sexualmente. Evoluiu pelo menos 20 vezes de
forma independente e é estimada de ocorrer, no mínimo, em 20% de todas as
espécies de animais. Partenogênese cíclica, na qual várias gerações de filhotes
sexualmente gerados de óvulos fertilizados alternem com filhotes reproduzidos
via óvulos não-fertilizados, ocorre em mais de 15 mil espécies, como afídeos e
pulgas d'água, estes os quais se reproduzem normalmente via partenogênese em
condições favoráveis e alternam para a reprodução sexuada em condições
ambientais críticas.
-
Partenogênese esporádica: É a rara ocorrência de partenogênese em uma espécie
cuja reprodução sexuada é bem estabelecida. Pode ocorrer ou não quando machos
estão escassos, ou via fatores ambientais não-esperados, e exemplos são
encontrados em um vasto espectro de animais.
MECANISMOS PARTENOGENÉTICOS
Existem dois tipos de divisões
celulares nos seres sexuados: mitose e meiose. Na mitose, após os cromossomos
se condensarem e se duplicarem, a célula se divide para gerar duas células
idênticas, possuindo cada uma o mesmo material genético e número de
cromossomos. Esse tipo de divisão é generalizado na natureza, fazendo parte do sistema de reprodução dos
seres procariontes e, nos multicelulares sexuados, é responsável pelo
crescimento e diferenciação de tecidos.
Já na meiose, uma célula original
diploide (duas cópias de cromossomo), por exemplo, dá origem a quatro células
haploides (uma cópia de cada cromossomo). Esse é o processo de formação de
gametas femininos e masculinos, os quais, quando se encontram, dão origem a uma
célula (zigoto) diploide novamente, com essa, por sua vez, passando por
sucessivas e contínuas mitoses para dar origem a um indivíduo (desenvolvimento
embrionário).
Para a ocorrência da partenogênese,
diversos mecanismos podem atuar no processo de formação de gametas. Em
invertebrados, é comum, por exemplo, que o oócito - célula germinativa diploide
sobre a qual a meiose age -, ao invés de passar pelo processo meiótico, passe a
atuar como um "zigoto" de forma direta, engatilhando a formação de um
embrião. Os pulgões (superfamília Aphidoidea), bichos-da-seda (ordem
Lepidoptera) e as pulgas-d´água (gênero Daphnia) ilustram bem esse processo.
No entanto, entre vertebrados e
invertebrados, a formação de um embrião sem a presença do gameta masculino
também ocorre via diploidização das células haploides ao longo do processo
meiótico. A diploidização geralmente ocorre através de três principais
mecanismos citológicos:
1.
Duplicação do gameta, no qual o número de cromossomos dobra após a meiose II;
2. A
fusão central de dois núcleos genéticos derivados de diferentes núcleos gerados
na meiose I;
3. A
fusão terminal de dois núcleos derivados do mesmo núcleo gerado durante a
meiose I.
Enquanto que no desenvolvimento
embrionário direto a partir do oócito são gerados clones fêmeas, reduzindo
drasticamente a variabilidade genética e capacidade de adaptação evolutiva ao
meio, as diploidizações que ocorrem no processo mitótico podem gerar
significativa variabilidade genética devido ao fenômeno de recombinação
genética.
É interessante perceber que nem
sempre o indivíduo gerado via partenogênese será fêmea quando o processo envolver
mecanismos atuantes ao longo da meiose. Aves e alguns répteis (como a
superfamília de cobras Colubroidea) possuem o sistema cromossômico sexual onde
a fêmea é heterozigótica (ZW) e o macho é monozigótico (ZZ). Nos humanos, as
fêmeas são monozigóticas (XX) e os machos heterozigotos (XY), por exemplo. Como
nesses animais a partenogênese ocorre a partir da duplicação do gameta haploide
derivado da célula diploide formada na meiose I (ou seja, contendo apenas
cromossomos idênticos), os indivíduos gerados ou serão ZZ ou WW. No caso dos
ZZ, estes vingarão; já a formação de um WW é letal. Em aves domésticas já ouve
casos reportados de triploidismo (ZZW) resultante da fertilização de um ovo que
entrou em processo partenogenético (ZZ) antes da chegada do gameta masculino (Z
ou W) - e fecundação subsequente a partir deste (Ref.8).
Apesar dos cientistas ainda não
entenderem muito bem todos os mecanismos e fatores que governam a ocorrência da
partenogênese no Reino Animal, a diversidade de processos citológicos
associados e ampla prevalência do fenômeno na natureza deixam claro que essa
estratégia reprodutiva evoluiu nos seres sexuados, não representando apenas um
'acidente comum'. Isso fica ainda mais claro nas espécies onde a partenogênese
é obrigatória, ou onde em um mesmo gênero ela aparece sob várias formas
(obrigatória, ausente e facultativa), como no caso das famosas moscas-da-fruta
(Drosophila) (Ref.9).
Para exemplificar, podemos considerar
as pulgas-d´água e os pulgões. Ambos são partenogênicos facultativos, sendo que
a ativação da reprodução sexuada ou assexuada depende das condições do meio. No
caso das pulgas d´água, esses animais aquáticos se reproduzem via partenogênese
quando as condições do meio são favoráveis, levando à geração de várias fêmeas
clones para promover uma rápida expansão populacional; quando as condições não
são favoráveis, com escassez de nutrientes, a reprodução passa a ser sexuada,
gerando machos e fêmeas com grande variabilidade genética (Ref.10). O
equilíbrio entre os dois processos reprodutivos promove um substancial aumento
populacional mas sem comprometer muito a capacidade de adaptação. Já os pulgões
evoluíram um sistema reprodutivo chamado de 'polifenismo', este o qual surgiu
há cerca de 200 milhões de anos e se manifesta em diversas espécies de insetos.
Nesse caso, o processo reprodutivo é bastante plástico, sendo que no verão as
fêmeas dão origem a filhotes fêmeas clones assexuadas e estas continuam com a
geração de clones; à medida que a luminosidade e a temperatura diminuem com a
chegada do outono, essas fêmeas clones - também via partenogênese - passam a
gerar filhotes machos e fêmeas sexuados, capazes de se acasalarem (Ref.11).
Entre os vertebrados capazes de se
reproduzirem via partenogênese, como o Dragão-de-Komodo, o principal fator que
ativa esse modo peculiar de reprodução é a falta de parceiros machos para o
acasalamento. Mas existem também casos curiosos onde mesmo quando temos a
presença de muitos machos e ambientes normais as fêmeas continuam produzindo
ovos com embriões partenogenéticos (!). Nesse último caso, é mais provável que
a partenogênese esteja ocorrendo de forma acidental ou induzida por fatores
externos. Um exemplo bem interessante fora dos vertebrados é o bicho-da-seda
domesticado (Bombyx mon), o qual pode manifestar a partenogênese via um variado
espectro de estímulos sobre ovos não-fertilizados, incluindo variação da
temperatura (resfriamento ou aquecimento), oxigenação, pulsos elétricos,
centrifugação, excitações mecânicas específicas, exposição à luz solar
(primeiro observado no ano de 1847) e tratamento com ácido sulfúrico (primeiro
observado em 1886) (Ref.12).
------------
(!)
Esse fenômeno foi recentemente observado em vertebrados: Partenogênese
observada em tubarões mesmo com a presença de machos saudáveis ao redor das
fêmeas
POR QUE A PARTENOGÊNESE FACULTATIVA NÃO É
MAIS DISSEMINADA?
Enquanto que a reprodução sexuada
possui vantagens bem estabelecidas, especialmente no que se refere à promoção
de uma maior diversidade genética, a partenogênese pode também possuir notáveis
vantagens seletivas, principalmente na escassez de parceiros sexuais em
cenários de drásticas reduções populacionais. Nesse sentido, partenogênese
facultativa deveria ser particularmente vantajosa, já que as fêmeas pode
produzir tanto sexualmente quanto assexualmente, aproveitando vantagens de
ambos os modos reprodutivos.
Porém, a partenogênese regular
facultativa é rara e completamente ausente nos vertebrados provavelmente por
causa dos centrossomos. Na maioria dos animais (Metazoa), o espermatozoide
contribui com o centríolo, o qual é necessário para a formação do centrossomo
no zigoto. O óvulo apenas fornece proteínas centrossômicas, enquanto que os
centríolos são degenerados antes das divisões meióticas. A ausência de um
centrossomo no oócito é pensada ser para evitar a problemática presença de dois
centrossomos no zigoto, um da mãe e o outro do pai. Existe uma forte limitação
contra a presença de mais de um centrossomo em uma célula animal. Células
recém-formadas no clado Metazoa tipicamente possuem apenas um centrossomo,
compostos de dois centríolos, cercado por material rico em proteínas. O
centrossomo é duplicado exatamente uma vez durante o ciclo celular, durante a
fase S, para que durante a mitose existam dois centrossomos que formem um de
dois polos de fibras que segregam os cromossomos, produzindo uma distribuição
igual de cromossomos entre as células-filhas. Centrossomos extras em uma célula
impõem graves riscos, já que podem levar à formação de múltiplos polos de
fibras mitóticas, aneuploidia, suspensão do ciclo celular, apoptose,
instabilidade genômica e possivelmente câncer. Ou seja, zigotos com dois
centrossomos são esperados de serem eliminados via seleção natural.
Além disso, para o sucesso da
restauração da ploidia a partir das células reprodutivas haploides na ausência
de cromossomos paternos, mudanças substanciais na meiose são necessárias - um
processo já altamente conservado em termos evolutivos por envolver uma complexa
orquestra de processos celulares. Nesse sentido, conservação em todos os
animais de mecanismos moleculares específicos que agem em escalas
macro-evolucionárias parecem ser causados por uma consistente e forte seleção
contra mudanças mutacionais graças aos seus efeitos pleiotrópicos associados -
em outras palavras, mesmo pequenas mutações favorecendo partenogênese em
organismos sexuados podem deflagrar um caos nos processos de divisão celular
(Ref.16).
MAS E OS MAMÍFEROS?
Como já apontado, a partenogênese é
muito comum entre ordens de animais relativamente menos complexos,
especialmente invertebrados. Antes de 2012, entre os vertebrados, somente
exemplos de répteis Escamados em cativeiro e aves domésticas - principalmente
perus e galinhas - eram conhecidos de gerarem descendentes saudáveis via
partenogênese. Então, em um estudo publicado na Biology Letters, em 2012
(Ref.13), pesquisadores descreveram os primeiros casos até então conhecidos de
partenogênese em meio selvagem envolvendo cobras das espécies
mocassim-cabeça-de-cobre (Agkistrodon contortrix) e mocassim-d´água
(Agkistrodon piscivorus) a partir de análise genética de fêmeas grávidas e dos
seus filhotes. A partir daí, várias outras espécies de répteis, peixes e
anfíbios foram encontrados se reproduzindo em habitat natural via
partenogênese, como os Dragões-de-Komodo (!), tubarões-martelo, a
jiboia-constritora e as cobras píton.
(!) Leitura recomendada: Afinal, os
Dragões-de-Komodo são peçonhentos ou não?
Entre exemplos mais recentes reportados e descritos na literatura
acadêmica, podemos citar:
- Em
2016, no periódico Journal of Fish Biology (Ref.19), foi reportado evento de
partenogênese em um tubarão fêmea da espécie Cephaloscyllium ventriosum -
mantida isolada em cativeiro por 3 anos -, resultando no nascimento de 5
filhotes.
- Em
2017, no periódico PLOS ONE (Ref.20), foi reportado um evento de partenogênese
em uma fêmea de anaconda-verde (Eunectes murinus), resultando em dois filhotes
fêmeas totalmente desenvolvidos e 17 ovos no oviduto subdesenvolvidos. A cobra
havia sido mantida isolada por oito anos e dois meses no Zoológico de Ueno,
Japão.
- Em
2019, no periódico PLOS ONE (Ref.21), foi reportado evento de partenogênese
(pelo menos 9 filhotes) em uma fêmea do lagarto Physignathus cocincinus -
popularmente conhecido como Dragão-d'água-chinês.
- Em
2020, no periódico Molecular Ecology (Ref.22), foi reportado evento de
partenogênese na fêmea de um lagarto Lepidophyma smithii, gerando filhotes
tanto do sexo masculino quanto do sexo feminino, e, portanto, sugerindo um
sistema heterogamético de determinação do sexo feminino nessa espécie (ZZ/ZW),
pouca diferenciação entre os cromossomos sexuais (suportado por análise
genética) e, considerando esse último ponto, indivíduos WW viáveis.
- Em
2020, no periódico Russian Journal of Herpetology (Ref.23), foi reportado um
evento de partenogênese em uma cobra fêmea da espécie Nerodia rhombifer.
- Em
2020 foi reportado dois eventos registrados de partenogênese em uma Boa-Cubana
(cobra da espécie Chilabothrus angulifer) isolada por 11 anos no Zoológico da
Maia, Portugal (Ref.24). Cada evento gerou um único filhote junto com vários
ovos sem desenvolvimento, mas ambos nasceram mortos.
- Em
2020, no periódico Zoological Science (Ref.25), foi reportado eventos de
partenogênese em três espécies de cobras do gênero Bothrops (B. atrox, B.
moojeni e B. leucurus) mantidas isoladas em cativeiro por 7-9 anos.
- No
periódico Scientific Reports (Ref.26), foi reportado (2021) um evento de
partenogênese em uma cobra-rei (Ophiophagus hannah) fêmea. O espécime havia
sido originalmente importado para a Alemanha da Sumatra, em setembro de 2012,
com 70 cm de comprimento; mantida isolada, em 3 de agosto, com 2 metros de comprimento,
depositou 24 ovos, dois deles viáveis. Foram gerados dois filhote machos com
significativa diversidade genética após incubação artificial, os quais acabaram
morrendo alguns dias depois. O estudo trouxe nova evidência rejeitando
duplicação gamética e suportando fusão terminal como o mecanismo permitindo
reprodução partenogenética (partenogênese facultativa) em cobras.
- No
periódico Scientific Reports (Ref.27), foi reportado (2021), após procedimento
de inseminação artificial (n = 19), uma mistura de eventos partenogenéticos e
de reprodução sexuada em duas fêmeas de tubarão da espécie Chiloscyllium
plagiosum, sugerindo uma alta prevalência de partenogênese nessa espécie.
- Em
2021, no periódico Journal of Heredity (Ref.31), cientistas do Zoológico San
Diego reportaram que dois filhotes de Condor-Americano (Gymnogyps
californianus) nasceram em 2001 e em 2009 sem a contribuição genética de
machos, algo antes nunca registrado para essa espécie (um abutre do Novo Mundo,
pertencente à ordem Cathartiformes). Os dois indivíduos foram produzidos por
duas diferentes fêmeas e o mais surpreendente: eram mantidas em cativeiro em
contato direto com machos férteis, como parte de um programa de recuperação da
espécie, a qual está em crítico estado de conservação (restam cerca de 500
indivíduos no sudoeste dos EUA e no México; na década de 1980, antes dos
esforços de conservação, pouco mais de 20 existiam no meio selvagem).
Investigação genômica (em microssatélites do DNA) dos dois filhotes mostrou que
todos os loci (locais genômicos) analisados eram homozigotos; ambos os filhotes
eram do sexo masculino, como esperado de uma partenogênese facultativa, já que,
nas aves, a fêmea é heterozigótica (ZW) e o macho é monozigótico (ZZ). Infelizmente,
ambos os filhotes morreram, um com 2 anos de idade e o outro com 7 anos.
-----------
>
ATUALIZAÇÃO:
Cientistas
confirmam partenogênese em crocodilianos: "A vida sempre encontra um
meio"
------------
Esses reportes cada vez mais frequentes
de partenogênese facultativa em diferentes clados de vertebrados -
especialmente entre peixes e répteis - reforçam a ideia que a partenogênese é
muito mais comum nesse grupo de animais do que antes pensado, e pode ter um
significativo papel na evolução dos vertebrados.
Porém, quando vamos para ordens
relativamente mais complexas a situação se complica, tornando-se praticamente
impossível nos mamíferos a ocorrência de efetiva partenogênese de forma
natural. Nas aves, as taxas de abortos gerados nesse processo reprodutivo são
muito altas e acredita-se que os espécimes gerados dessa maneira possuem uma
capacidade reprodutiva prejudicada e anormalidades anatômicas e fisiológicas,
com exceções notáveis entre os perus (Meleagris) e galinhas (Gallus gallus
domesticus).
Nos mamíferos, incluindo os humanos,
existe uma barreira, a princípio, impossível de ser quebrada naturalmente: a
especialização funcional assimétrica nos genomas maternos e paternos, gerando
marcadores genômicos específicos em cada tipo de gameta sexual (masculino e
feminino). Nesse sentido, a ausência do genoma paterno leva a uma regulação
anormal de diferenciação e proliferação principalmente em linhagens
extra-embriônicas, resultando em um fraco suporte para o desenvolvimento
embriônico. A contribuição separada dos alelos de alguns genes adquiridos do
material genético feminino e do masculino agem via mecanismos epigenéticos (1)
que seletivamente silenciam ou promovem a expressão genética, precisando ambos
estarem atuando juntos para a normalidade regulatória. Essa característica é
chamada de 'genetic imprinting'.
(2)
Para mais informações sobre mecanismos epigenéticos (responsáveis por ligar ou
desligar genes), acesse: Epigenética, Plasticidade Fenotípica e Evolução Biológica
Várias regiões metiladas (radical
metila como marcador epigenético) do controle de imprinting já foram
identificadas no DNA materno e paterno de mamíferos, particularmente os genes
H19, Gtl2, Igf2r, Snrpn, Kcnq1ot1, Nespas e Peg10, essenciais na regulação do
crescimento e desenvolvimento embriônico, fetal e pós-natal.
Desde a década de 1990 (Ref.14), os
pesquisadores vêm tentando induzir artificialmente uma partenogênese em
mamíferos, a partir da manipulação genética e epigenética de óvulos e
espermatozoides, e vários métodos têm sido propostos e testados (Ref.18). Até
pouco tempo atrás, os únicos avanços tinham sido uma variedade de embriões
partenogenéticos implantados no útero de ratos, ovelhas, vacas, porcos, coelhos
e primatas que não conseguiam prosseguir mais do que alguns dias de
desenvolvimento, na maioria dos casos não ultrapassando a fase de implantação.
Em 2018, cientistas Chineses conseguiram gerar ratos fêmeas saudáveis a partir
da fusão de dois óvulos (2). E, mais recentemente, através de manipulação
epigenética, pesquisadores finalmente conseguiram induzir artificialmente
efetiva partenogênese em ratos.
(2)
Esse avanço pode, futuramente, possibilitar a geração de um filho a partir de
um casal humano homossexual, por exemplo.
Para mais informações, acesse: Cientistas conseguem gerar ratos
saudáveis a partir de pais do mesmo sexo
No caso, em um estudo publicado no
periódico PNAS (Ref.32), cientistas Chineses conseguiram obter filhotes de
ratos gerados por partenogênese após editar marcadores de metilação em sete
regiões genômicas associadas ao controle de imprinting em oócitos
não-fertilizados. Essa edição foi possível através da co-injeção de enzima
cataliticamente inativa Cas9 (dCas9)-Dnmt3a ou RNA mensageiro (mRNA) dCpf1-Tet1
com RNAs de orientação única (sgRNAs) visando regiões e alelos específicos para
metilação de novo (introdução de metila) ou desmetilação (remoção de metila),
respectivamente. Essas modificações epigenéticas permaneceram após a ativação
partenogênica durante o desenvolvimento (multiplicação celular)
pré-implantação, resultando em embriões viáveis que, após a implantação, foram
capazes de produzir fetos viáveis, e um que persistiu até a fase adulta.
Entre centenas de embriões gerados in
vitro a partir de oócitos epigeneticamente modificados, 192 que chegaram no
estágio de blastócito foram transferidos para 14 ratos fêmeas. Um total de 3
filhotes foram recuperados vivos: 2 morreram dentro de 24 horas (e com baixo peso
no nascimento) e 1 conseguiu sobreviver até a fase adulta, saudável desde o
nascimento e fértil (foto acima). Investigação das células coletadas da cauda
desse rato partenogênico mostraram que todas as modificações epigenéticas
persistiram no genoma adulto, enquanto nos dois que morreram pelo menos uma das
regiões modificadas exibiram perda de metilação. Isso confirmou que todas as
sete regiões alvos precisam estar corretamente metiladas para o desenvolvimento
saudável do feto e sobrevivência após o parto. O avanço abre muitas
oportunidades para novos avanços na agricultura, na medicina e na biologia.
De qualquer forma, respondendo à
pergunta implícita no primeiro parágrafo deste artigo, a possibilidade
científica de uma Virgem Maria Mãe de Jesus é mais do que remota, tanto devido
à barreira natural imposta pelo genetic imprinting quanto pela impossibilidade
de uma fêmea humana gerar um descendente do sexo masculino via partenogênese,
já que o material genético da mulher não carrega o cromossomo sexual Y. Nesse
sentido, mesmo se fosse possível algum tipo de mecanismo partenogenético - via
duplicação ou fusão entre óvulos - dentro do sistema reprodutivo de uma humana
[!], a única possibilidade final é o XX (aqui estamos falando de sexo biológico
normal, não gênero).
[!] HIPÓTESE DO HOMÚNCULO
Apesar de existir o genetic
imprinting, notavelmente não é rara uma ativação partenogenética espontânea de
oócitos humanos - e de outros mamíferos -, porém acaba eventualmente resultando
em teratoma ovariano (!), um tumor quase sempre benigno reportado desde pelo
menos o século XIX. Esses eventos partenogenéticos - envolvendo proliferação de
células-tronco germinativas - geralmente resultam em estruturas anatomicamente
desorganizadas com tecido adiposo, cabelo e dente. Porém, alguns teratomas
podem alcançar alta ordem de organização, incluindo a presença de um plano
corporal (não-funcional), com uma cabeça imperfeita, membros com pés e dedos,
cerebelo, e outras estruturas. Essas estruturas altamente organizadas e
diferenciadas são chamadas de teratoma fetiforme, ou homúnculo (homunculus, Latim para "pequeno
homem").
(!)
Leitura recomendada: O que é um teratoma cístico no ovário?
Em 1995, pesquisadores reportaram um
extraordinário caso de evento partenogenético quimérico em uma mulher grávida
resultando em um indivíduo do sexo masculino viável. No caso, o bebê resultante
tinha duas linhagens celulares no seu corpo. A primeira foi derivada de uma
fertilização normal (espermatozoide haploide e oócito haploide) e a segunda
derivada de um processo partenogenético: ativação espontânea de um oócito, o
qual duplicou seu material genético. A célula partenogenética se fundiu ao embrião
normal (resultando na quimera, composta de células derivadas de diferentes
embriões) e usou esse último como uma "escada biológica saudável" (ou
hospedeiro) para se proliferar e se estabelecer. A linhagem celular
partenogenética ocupou pelo menos um nicho biológico do feto hospedeiro: o
tecido sanguíneo.
Considerando esse último caso e
dezenas de outros casos já descritos na literatura acadêmica de teratomas
ovarianos, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) propuseram em um
estudo publicado em 2017 no periódico Medical Hyphothesis (Ref.28) que os
homúnculos seriam exemplos de 'formas de vida partenogenéticas lutando para se
desenvolveram em corpos completos funcionais', e que certas mutações genéticas
podem talvez possibilitar ou já terem possibilitado esse cenário em humanos e
outros mamíferos.
Manipulação genética e epigenética em
ratos e outros mamíferos - incluindo deleção (13 kb) no gene associado ao
genetic imprinting (H19) - já demonstrou a possibilidade de indução artificial
de partenogênese, incluindo o desenvolvimento de ratos saudáveis e férteis em
experimentos mais recentes.
Seguindo esse caminho, os
pesquisadores da USP sugeriram que raros casos naturais de partenogênese humana
resultando em indivíduos viáveis e clinicamente normais ocorrem e passam
despercebidos devido à ausência de qualquer anormalidade. Esses indivíduos
seriam gerados como resultado de três eventos sequenciais: (i) ultrapassagem da
barreira de imprinting, (ii) manutenção de genoma diploide e heterozigótico, e
(iii) progressão mitótica do oócito diploide ("zigoto"), via ativação
partenogenética. Vários mecanismos naturais poderiam promover os três eventos:
- Em
(i), mutações de deleção nos genes ligados ao processo de genetic imprinting,
como a unidade de transcrição H19 e a região diferencialmente metilada (DMR).
- Em
(ii), uma mutação no gene humano funcionalmente análogo ao gene DYAD nas
plantas, um regulador da organização meiótica do cromossomo. Pode também
ocorrer uma interferência causada por um endossimbionte intracelular, com
bactérias do gênero Wolbachia, cujas atividades resultam em fêmeas diploides
totalmente heterozigóticas em cupins e infecções partenogênicas em outros
invertebrados. Recentemente, em dois arquipélagos na África (Açores e
Mascarena), pesquisadores encontraram que as populações de joaninhas da espécie
Nephus voeltzkowi eram constituídas apenas de indivíduos fêmeas, todos gerados
por partenogênese. E o mais interessante: todos os indivíduos gerados por partenogênese
estavam infectados pela Wolbachia, enquanto indivíduos gerados por reprodução
sexuada em outras regiões não mostraram estar infectados por essa bactéria
(Ref.29). Cientistas inclusive sugerem um possível evento evolutivo de
emergência de reprodução assexuada ocorrendo nessa espécie.
- Em
(iii), a ativação partenogenética já é extensivamente observada em humanos, a
partir de células germinativas primordiais. Mutações em genes proto-oncogênicos
podem disparar o mesmo processo em oócitos diploides e heterozigotos.
Apesar dos cenários acima descritos
poderem resultar em outros obstáculos, potencialmente demandando mutações
adicionais para driblá-los, processos multi-mutacionais são realísticos, como
exemplificado pelo câncer, o qual é resultado de um grande conjunto de
mutações, passa por processos evolutivos intra-indivíduo e é frequente na
espécie humana.
A Hipótese do Homúnculo pode ser
testada com a avaliação genética de toda gravidez reportada ter ocorrido sem
relação sexual prévia - algo que pode ser muito limitante - ou futuramente,
quando o sequenciamento genômico inteiro se tornar uma realidade como prática
rotineira em todos os recém-nascidos (>130 milhões/ano hoje).
REFERÊNCIAS
CIENTÍFICAS
http://www.ansci.wisc.edu/jjp1/ansci_repro/misc/project_websites_08/tues/Komodo%20Dragons/what.htm
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1204568/
http://jmg.bmj.com/content/15/3/165.full.pdf
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4081286/
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK482462/
https://ghr.nlm.nih.gov/primer/howgeneswork/cellsdivide
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK26840/
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5238396/
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4240631/
https://www.nature.com/articles/srep34241
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4264872/
https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0135215
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3497136/
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/18778853
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5238396/
https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/ede.12324
https://www.annualreviews.org/doi/abs/10.1146/annurev-ecolsys-011720-114900
Pennarossa G, Gandolfi F and Brevini TAL (2021)
“Biomechanical Signaling in Oocytes and Parthenogenetic Cells”. Front. Cell
Dev. Biol. 9:646945. doi: 10.3389/fcell.2021.646945
Feldheim et al. (2016). Multiple births by a captive
swellshark Cephaloscyllium ventriosum via facultative parthenogenesis. Volume90
(2017), Issue3, Pages 1047-1053. https://doi.org/10.1111/jfb.13202
Shibata et al. (2017). Facultative parthenogenesis
validated by DNA analyses in the green anaconda (Eunectes murinus). PLoS ONE
12(12): e0189654. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0189654
Miller et al. (2019). Parthenogenesis in a captive
Asian water dragon (Physignathus cocincinus) identified with novel
microsatellites. PLoS ONE 14(6): e0217489.
https://doi.org/10.1371/journal.pone.0217489
Kratochvíl L, Vukić J, Červenka J, et al. Mixed-sex
offspring produced via cryptic parthenogenesis in a lizard. Mol Ecol. 2020;29:4118–4127.
https://doi.org/10.1111/mec.15617
Gasanov
& Katz et al. (2020). Facultative parthenogenesis in a diamondback
water snake. Vol. 27 Issue 6, p341-347. 7p
https://digital.csic.es/handle/10261/237229
Cubides-Cubillos et al. (2020). Evidence of
facultative parthenogenesis in three Neotropical pitviper species of the
Bothrops atrox group. PeerJ 8:e10097 https://doi.org/10.7717/peerj.10097
Card et al. (2021). Genome-wide data implicate
terminal fusion automixis in king cobra facultative parthenogenesis. Sci Rep
11, 7271. https://doi.org/10.1038/s41598-021-86373-1
Wyffels et al. (2021) Artificial insemination and
parthenogenesis in the whitespotted bamboo shark Chiloscyllium plagiosum. Sci
Rep 11, 9966. https://doi.org/10.1038/s41598-021-88568-y
Gabriel Jose de Carli, Tiago Campos Pereira, On human
parthenogenesis, Medical Hypotheses, Volume 106, 2017, Pages 57-60, ISSN
0306-9877. https://doi.org/10.1016/j.mehy.2017.07.008
Magro et al. (2019). First case of parthenogenesis in
ladybirds (Coleoptera: Coccinellidae) suggests new mechanisms for the evolution
of asexual reproduction. Volume 58 (2020), Issue 1, Pages 194-208.
https://doi.org/10.1111/jzs.12339
Ye et al., (2019). Genetic analysis of embryo in a
human case of spontaneous oocyte
activation: a case report. Gynecological
Endocrinology. https://doi.org/10.1080/09513590.2019.1687671
Ryde et al. (2021). Facultative Parthenogenesis in
California Condors. Journal of Heredity, esab052.
https://doi.org/10.1093/jhered/esab052
Wei et al. (2022). Viable offspring derived from
single unfertilized mammalian oocytes. PNAS,
119 (12) e2115248119. https://doi.org/10.1073/pnas.2115248119
Sem comentários:
Enviar um comentário