Mulheres
escravas usavam estratégias para conseguir comprar a alforria e trabalhar como
libertas
Christina
Queiroz
Quituteiras
no Rio de Janeiro, em 1875: mulheres tinham mais opções de trabalho do que os
homen Quituteiras no Rio de Janeiro, em 1875: mulheres tinham mais opções de
trabalho do que os homens
Negar-se
a trabalhar, responder para seus senhores e provocar pequenos prejuízos
tornaram-se estratagemas de mulheres negras escravizadas para desvalorizar o próprio
preço. Valia até pedir proteção a famílias inimigas dos senhores a quem serviam
para conseguir a alforria. A Abolição só ocorreu em 1888, mas, após o
estabelecimento da Lei do Ventre Livre, em 1871, escravos passaram a ter o
direito de comprar a liberdade. Juntar dinheiro para esse fim exigia
sacrifícios além da escravidão, como trabalhar durante as raras folgas, além de
negociar a parte da remuneração que seria destinada aos seus proprietários. Ao
usar essa estratégia, as mulheres eram mais bem-sucedidas do que os homens,
principalmente por causa da demanda por serviços domésticos. Uma vez livres,
tinham de vencer outros obstáculos tão difíceis quanto os anteriores: arrumar
trabalho para conseguir sobreviver, cuidar sozinhas dos filhos e se inserir na
sociedade local.
Em
estudos que tiveram início no mestrado e prosseguiram durante um pós-doutorado
na Universidade de Nova York, Estados Unidos, a historiadora Lúcia Helena
Oliveira Silva, professora da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade
Estadual Paulista (FCL-Unesp), campus de Assis, analisou como as escravas
africanas e afro-brasileiras buscavam a liberdade mediante o uso de meios
jurídicos. “A partir de um estudo que abrangeu 157 ações que tramitaram no
fórum de Campinas, identifiquei que mais da metade dos processos para compra de
alforria envolvia mulheres”, diz a pesquisadora, que é vice-coordenadora do
Núcleo Negro de Pesquisa e Extensão (Nupe-Unesp).
Os
escravos que desejassem comprar sua liberdade solicitavam uma audiência com o
juiz local para que se estabelecesse o valor a ser pago. Tinham de ser
representados por um homem livre porque, perante a lei, não eram considerados
pessoas, mas propriedade alheia. Segundo Lúcia Helena, para conseguir o
dinheiro determinado à alforria, as escravas trabalhavam lavando roupa e como
babá, ama de leite, bordadeira e engomadeira, além de vender alimentos na rua
que elas mesmas faziam ou cultivavam em pequenas hortas. O mercado doméstico
oferecia mais oportunidades às cativas do que aos escravos.
Para
conseguir a liberdade mais rapidamente, elas adotavam atitudes para baixar o
próprio preço, como empreender fugas constantes, relata a pesquisadora. Foi o
caso, por exemplo, da escrava Cristina. Levada a contragosto do Rio de Janeiro
para Campinas, negava-se a permanecer na cidade. Mesmo sendo frequentemente
espancada, ela não se submetia às ordens do senhor. Este concluiu que fez um
mau negócio e se desfez dela, enviando-a de volta ao Rio. “Cristina esteve à
beira da morte, mas, no fim, alcançou o que queria”, conta.
Mãe e
filho em Salvador, em foto de 1884Mãe e filho em Salvador, em foto de 1884
Outro
ardil era se valer das inimizades entre os senhores. Lúcia Helena relata a
história de uma cativa no interior de São Paulo que, espancada, fugiu para a casa
de uma família inimiga. A família que a acolheu tinha como patriarca um juiz e,
mais tarde, ela conseguiu a alforria com a sua ajuda. “Histórias como essas
permitem romper com estereótipos da escrava comportada, que ganhava a carta de
alforria do patrão como recompensa”, defende a historiadora. “Ou mesmo com a
imagem da revoltada que fugia constantemente e, portanto, estava condenada a
ser eternamente escrava.”
Uma vez
alcançada, a alforria estava longe de resolver os problemas. Ao necessitar da
mediação de terceiros para viabilizar a aquisição da liberdade, criavam-se
frequentemente relações de dependência, que podiam envolver a prestação de
serviços, vínculos sexuais ou pagamentos em dinheiro.
No
período que vai de 1888 até 1926, uma estratégia de sobrevivência dos libertos
de São Paulo era migrar para o Rio. A partir das análises do censo disponível
nas atas da Assembleia Legislativa paulista, Lúcia Helena observou que, de 1888
a 1890, o estado de São Paulo tinha o terceiro maior contingente de escravos do
Brasil. Porém, em 1892, a população negra tornou-se escassa na região. “As
experiências dos libertos e afrodescendentes em São Paulo eram permeadas por
expectativas de inserção social e tentativas senhoriais de manutenção da
situação sociorracial anterior à Abolição”, afirma. Com a vinda dos imigrantes
europeus, o mercado de trabalho se tornou ainda mais difícil porque os
empregadores preferiam contratar a população branca.
Por
outro lado, o Rio funcionava como um espaço de confraternização de escravos e
libertos provenientes de todo o Brasil. “O cais do porto e a existência de
pequenos trabalhos urbanos feitos pela comunidade negra facilitavam a inserção
na sociedade local”, diz. Uma hipótese de Lúcia Helena para esse movimento
migratório é que os libertos queriam fugir do estigma da escravidão, marca que
costumava ser mais aparente no contexto de municípios menores – São Paulo, em
1900, era uma cidade com cerca de 240 mil habitantes, enquanto a população do
Rio tinha 811 mil moradores.
A
historiadora Isabel Cristina Ferreira dos Reis, professora do Centro de Artes,
Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB),
conta que, ao contrário dos ex-escravizados de São Paulo, os dos engenhos do
Recôncavo Baiano, localidade com a maior concentração de trabalho escravo na
região, permaneceram próximos aos lugares onde viviam. A razão era o desejo de
preservar laços familiares e comunitários.
Trabalhadoras
com os filhos e demais lavradores partem para a colheita de café no sul do estado
do Rio, em 1885: maternidade vivenciada de forma dramáticaTrabalhadoras com os
filhos e demais lavradores partem para a colheita de café no sul do estado do
Rio, em 1885: maternidade vivenciada de forma dramática
LAGO,
Pedro Correa do. Coleção Princesa Isabel: Fotografia do século XIX. Capivara,
2008
Também
no Recife muitas libertas optaram por permanecer na região para não ter sua
condição questionada, já que nem todas as cartas de alforria tinham valor
oficial e essas mulheres podiam ser perseguidas pela polícia, que as confundiam
com escravas fugitivas. “As mulheres se livravam dos estigmas do cativeiro
criando estratégias para a garantia de espaços sociais por meio do trabalho,
das redes de compadrio ou filiando-se às irmandades católicas”, conta a
historiadora Valéria Costa, docente do Instituto Federal do Sertão
Pernambucano. Ela relata que havia uma circulação intensa de mulheres nas ruas,
sobretudo em razão do comércio. Como parte de uma política pública higienista,
que via a população negra como potencial causadora de distúrbios, patrulhas
municipais proibiam a circulação de escravos e libertos depois das 20 horas no
centro do Recife, em especial pelo bairro de Santo Antônio, de grande movimento
comercial.
No Rio,
as libertas vindas de São Paulo mantinham o mesmo ofício de antes de se
emancipar. “As quituteiras, por exemplo, tinham grande mobilidade no espaço
urbano e preservavam a tradição de preparar comidas populares, como angu,
espécie de polenta com pedaços de carne, como no tempo em que eram escravas”,
explica Lúcia Helena. A pesquisadora constatou esse processo de migração a
partir da análise de cerca de 300 exemplares de sete periódicos paulistas lidos
pela comunidade negra, abrangendo o período que vai de 1886 a 1926. Esses
jornais evidenciavam a frustração dos escravos e libertos com a busca de
emprego e o reconhecimento como cidadãos.
Ela
também consultou processos criminais e cíveis do Arquivo Nacional, bem como 310
fichas da Casa de Detenção do Rio, datados de 1888 a 1920. Do total de
processos estudados, a pesquisadora observou que 275 envolviam problemas de
embriaguez e desordem, sendo que as mulheres negras permaneciam mais tempo
encarceradas quando eram presas à noite, em um horário considerado imoral para
mulheres.
A
condição feminina ajudava as alforriadas a conseguir emprego, mas também as
expunha à violência. Diferentemente do que ocorria com a maioria das mulheres
brancas, as negras – fossem escravas, nascidas livres ou libertas – tinham de
enfrentar as ruas, trabalhando para os seus senhores ou pela própria
subsistência. “Na Bahia, como no Rio, elas estiveram expostas a todo tipo de
assédio e agressões e se defendiam como podiam: gritavam e brigavam e acabavam
ganhando má fama”, relata Isabel, da UFRB.
Maternidade
Embora
as pesquisas mostrem as escravas como mulheres muito menos passivas do que se
pensava, Maria Helena Pereira Toledo Machado, professora titular do
Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo (USP), reafirma a precariedade do processo de
emancipação baseado no trabalho doméstico. Os patrões exerciam controle sobre a
autonomia das libertas, que eram separadas das suas famílias e tinham
pouquíssimos dias para descansar.
A
historiadora mostra que essas mulheres vivenciaram a maternidade de modo
dramático, seja como escravas em busca de pecúlio, antes de 1888, ou na
condição de libertas. Em suas pesquisas, ela constatou como a guarda dos filhos
frequentemente era retirada das libertas, com a justificativa de que elas não
tinham um comportamento moral adequado. Por causa desse tipo de situação, Maria
Helena defende que a Abolição deve ser pensada como um processo marcado pelo
gênero. “Esse sofrimento, no entanto, não anula a luta dessas mulheres por reinventar
suas vidas e mostra como essa luta foi árdua”, conclui.
Sem comentários:
Enviar um comentário