Por que é preciso proibir que manipulem nosso cérebro antes que isso
seja possível
O cientista
Rafael Yuste, que comanda projeto de pesquisa do cérebro, pede que os governos
criem novas leis contra os riscos da neurotecnologia
“Temos uma
responsabilidade histórica. Estamos num momento em que podemos decidir que tipo
de humanidade queremos.” São palavras de peso, tanto quanto o desafio ao qual
se propõe Rafael Yuste. Esse neurocientista espanhol, catedrático da
Universidade Columbia (EUA), escuta sussurrarem em sua consciência os fantasmas
de outros grandes
cientistas da história que abriram a caixa de Pandora. Ele,
que impulsionou a iniciativa BRAIN, a maior aposta já feita na descoberta dos segredos
do cérebro, não foge à sua responsabilidade: “Carrego isso
como um dever”, afirma. Yuste sabe bem o que seu campo, a neurotecnologia, já é
capaz de ver
e fazer em nossas mentes. E teme que
isso escape de nossas mãos se não for regulado. Por isso reivindica aos
governos de todo o mundo que criem e protejam direitos inéditos: os neurodireitos. O Chile deverá ser o primeiro país a incluí-los em
sua Constituição, e já há
negociações para que esse espírito se reflita na estratégia do Governo espanhol
para a inteligência artificial.
- “O cérebro tem doenças que afetam a alma, te destroem como indivíduo”
- Cientistas criam “máquinas viventes” com células animais
- Viagem ao fundo de um cérebro que não dorme
No ano passado, Yuste conseguiu manipular
o comportamento de ratos. Fez isso
intervindo nos pequenos cérebros desses roedores, adestrados para sorver suco
quando viam listras verticais numa tela. Yuste e sua equipe haviam observado os
neurônios específicos que eram acionados nesse momento e os estimularam
diretamente quando não havia barras aparecendo na tela. Os ratos sorviam o suco
como se tivessem visto aquele gatilho. “Aqui em Columbia meu colega desenvolveu
uma prótese visual sem fio para cegos com um milhão de eletrodos, que permite
conectar uma pessoa à rede. Mas também se pode usar para criar soldados com
supercapacidades”, adverte Yuste. Esse aparelho, financiado pelo DARPA (a
agência de pesquisa científica do Exército
dos EUA), poderia estimular até 100.000 neurônios,
propiciando habilidades sobre-humanas.
Quando Yuste começou a trabalhar na iniciativa dos
neurodireitos, há dois anos, era quase uma colocação abstrata, de ficção
científica. “Mas a urgência da situação aumentou, há problemas bastante sérios
que estão vindo com tudo; as empresas tecnológicas estão se metendo nisto de
cabeça porque pensam, acertadamente, que o novo
iPhone vai ser uma interface
cérebro-computador não
invasiva”, diz Yuste. O homem que impulsionou um projeto de seis bilhões de
dólares nos EUA para investigar o cérebro enumera com preocupação os movimentos
dos últimos meses. O Facebook investiu um bilhão de dólares (4,36 bilhões de reais) em uma empresa
que trabalha na comunicação entre cérebros e computadores. E a Microsoft desembolsou outro bilhão na iniciativa de inteligência artificial de Elon
Musk, que investe 100 milhões na Neuralink, uma
companhia que implantará fios finíssimos no cérebro de seus usuários para
aumentar suas competências. E Yuste tem informações de que o Google está sigilosamente fazendo
esforços semelhantes. Chegou a era
do neurocapitalismo.
“A privacidade máxima de uma pessoa é o que ela pensa, mas agora já
começa a ser possível decifrar isso”, alerta Yuste
“Estas grandes empresas tecnológicas estão ficando
nervosas para não ficarem atrás com o novo iPhone cerebral. Para evitar abusos,
temos que recorrer diretamente à sociedade e a quem faz as leis”, afirma. A
tecnologia impulsionada por Musk pretende ajudar pacientes com paralisia ou extremidades
amputadas a controlarem sua expressão e movimentos e a verem
e ouvirem sozinhos, apenas com o cérebro. Mas não oculta que o objetivo
final é o de nos conectar diretamente com as máquinas para melhorarmos graças à
inteligência artificial. A iniciativa do Facebook é similar: uma empresa com um
histórico questionável de respeito à privacidade, como a de Zuckerberg,
acessando os pensamentos de seus usuários.
Essas pretensões parecem de ficção científica, mas
uma simples olhada em alguns feitos
da neurociência nos últimos
tempos revela que elas estão ao alcance da mão. Em 2014, cientistas espanhóis
conseguiram transmitir “oi” diretamente do cérebro de um indivíduo ao de outro,
situado a 7.700 quilômetros de distância, por meio de impulsos elétricos. Em
vários laboratórios foi possível recriar uma imagem mais ou menos nítida do que
uma pessoa está vendo apenas analisando as ondas cerebrais que ela produz. Graças
à eletroencefalografia, cientistas puderam ler
diretamente do cérebro palavras
como “colher” e “telefone” quando alguém pensava nelas. Também serviu para
identificar estados de ânimo. Na Universidade de Berkeley, foram capazes de
identificar a cena que os voluntários estavam vendo graças à nuvem de palavras
que seu cérebro gerava ao vê-las: cachorro, céu, mulher, falar... Uma
tecnologia que poderia servir para descobrir sentimentos, dependendo das
palavras que surjam ao ver uma imagem: por exemplo, seria possível ler “ódio”
ao ver a imagem de um ditador.
Alguns desses marcos já completaram uma década, e
desde então bilhões de dólares foram investidos em monumentais projetos
privados e governamentais, do Facebook à DARPA, passando pela Academia de
Ciências da China. “Pense que o projeto chinês é três vezes maior que o
norte-americano, e vai diretamente ao assunto, ao fundir as duas vertentes:
inteligência artificial e neurotecnologia”, adverte Yuste, que se diz otimista
quanto aos benefícios da neurotecnologia, daí seu desejo de regulá-la.
O neurocientista espanhol Rafael Yuste.
“Em curto prazo, o perigo mais iminente é a perda
de privacidade mental”, adverte Yuste, que lançou sua iniciativa pelos
neurodireitos após debater o assunto em Columbia com uma equipe de 25
especialistas em neurociência, direito e ética, denominado Grupo Morningside. Várias empresas já desenvolveram
aparelhos, geralmente em forma de tiara, para registrar a atividade cerebral de
usuários que queiram controlar mentalmente drones e carros, ou medir o nível de
concentração e estresse
dos trabalhadores, como
acontece com motoristas de ônibus na China. Lá também existem aplicações nas escolas:
a tiara lê as ondas cerebrais dos alunos e uma luzinha mostra ao professor seu nível
de concentração. O problema
é que a companhia que os vende, a BrainCo, pretende conseguir assim a maior
base de dados desse tipo de atividade cerebral. Quanto mais dados ela tiver,
melhores e mais valiosas serão suas leituras, claro. Como a indústria
tecnológica está há uma década extraindo
todos os dados que possam obter do uso de aplicações e
dispositivos, a possibilidade de espremer cada neurônio é um filão
irresistível.
Potencial de
desastre
A regulação proposta pelo grupo de Yuste tem dois
enfoques. Um de autorregulação, com um juramento tecnocrático que submeta
deontologicamente engenheiros, programadores e outros especialistas dedicados à
neurotecnologia. Neste sentido, há uma negociação com as autoridades espanholas
para levar o espírito desse juramento à Estratégia Nacional de Inteligência
Artificial, atualmente em preparação pelo Governo. Por outro lado, Yuste aspira
a que os neurodireitos sejam incorporados à Declaração
de Direitos Humanos, e que os
governos estabeleçam um marco jurídico que evite os abusos. O pioneiro será o
Chile, com cujo Governo o grupo tem quase fechada uma legislação específica e
sua inclusão
na nova Constituição.
“O que me preocupa com mais urgência é a
decodificação dos dados neurológicos: a privacidade máxima de uma pessoa é o
que ela pensa, mas agora já começa a ser possível decifrar isso”, avisa Yuste.
“Estamos fazendo isso diariamente nos laboratórios com ratos, e quando as
empresas privadas tivessem acesso a esta informação você vai rir dos problemas
de privacidade que tivemos com celulares até agora. Por isso precisamos de neurodireitos, porque é um problema
de direitos humanos”, resume. O neurocientista quer alertar à população que
“não há nada de regulação, e isso afeta os direitos humanos básicos”.
“Existe um potencial para o desastre se deixarmos que continue escapando
das nossas mãos, porque há uma total falta de regulação”, avisa Martínez-Conde
A neurobióloga Mara Dierssen, que não está
envolvida na iniciativa de Yuste, destaca os problemas bioéticos decorrentes
das possibilidades de melhora do ser humano pela neurotecnologia. Embora afirme
haver muito sensacionalismo e arrogância em torno de empresas como a de Musk,
Dierssen ressalta que “em longo prazo se pretende que os implantes possam
entrar no campo da cirurgia eletiva para quem quiser ‘potencializar seu cérebro
com o poder de um computador’”. “Que consequências pode ter a neuromelhoria em um
mundo globalizado,
biotecnificado e socioeconomicamente desigual? Inevitavelmente surge a grande pergunta de em que medida essas
técnicas seriam acessíveis a todos”, questiona Dierssen, pesquisadora do Centro
de Regulação Genômica e ex-presidenta da Sociedade Espanhola de Neurociência.
Para a neurocientista Susana Martínez-Conde,
trata-se de uma iniciativa “não só positiva como também necessária”. “Estamos
dando conta como sociedade de que os avanços tecnológicos vão muito além do que
estamos preparados filosófica e legalmente. Enfrentamos situações sem experiência
prévia na história”, afirma
Martínez-Conde, diretora do laboratório de Neurociência Integrada da
Universidade do Estado de Nova York. “É necessário que prestemos atenção,
porque a neurotecnologia tem repercussões diretas sobre o que significa ser
humano. Existe um potencial para o desastre se deixarmos que continue escapando
das nossas mãos, porque há uma total falta de regulação. É hora de agir antes
de um desastre em escala global”, avisa.
Este desastre tem ressonâncias históricas. Enquanto
conversa de seu escritório de Columbia, Yuste observa o edifício onde foi
lançado o projeto Manhattan, que desembocou no lançamento das bombas
atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. “Esses
mesmos cientistas foram depois os primeiros na linha de batalha para que se
regulasse a energia nuclear. A mesma gente que fez a bomba atômica. Nós estamos
ao lado, impulsionando uma revolução neurocientífica, mas também somos os
primeiros que temos que alertar a sociedade.”
Os novos
neurodireitos
O grupo impulsionado por Rafael Yuste desenvolve
suas preocupações em torno de cinco neurodireitos:
1 - Direito à identidade pessoal. Esses especialistas temem que ao conectar os cérebros aos computadores a
identidade das pessoas se dilua. Quando os algoritmos ajudarem a tomar
decisões, o eu dos indivíduos pode se esfumar.
2 - Direito ao livre-arbítrio. Este neurodireito está muito ligado ao da identidade pessoal. Quando
contarmos com ferramentas externas que interfiram em nossas decisões, a
capacidade humana de decidir seu futuro poderá ser posta em xeque.
3 - Direito à privacidade mental. As ferramentas de neurotecnologia que interagem com os cérebros terão
capacidade para reunir todo tipo de informação sobre os indivíduos no âmbito
mais privado que possamos imaginar: seus pensamentos. Os especialistas
consideram essencial preservar a inviolabilidade dos neurodados gerados
pelos cérebros humanos.
4 - Direito ao acesso equitativo às tecnologias de
ampliação. Yuste acredita que as neurotecnologias trarão
inumeráveis benefícios para os humanos, mas teme que se multipliquem as
desigualdades e privilégios de alguns poucos que terão acesso a estas novas
capacidades humanas.
5 - Direito à proteção contra vieses e
discriminação. Nos últimos anos, vieram à tona vários casos em que
os programas e algoritmos multiplicam os preconceitos e vieses. Este direito
pretende que essas falhas sejam buscadas antes de sua implantação.
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DIONÊ LEONY MACHADO
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