Lebensborn: as vítimas
pouco conhecidas da loucura nazista
Nos anos
em que Hitler dominou países como Noruega e Polônia, o Projeto Lebensborn de
"pureza racial" foi levado a cabo em seus territórios
Batizado
de criança nascida dentro do Projeto Lebensborn: rejeição posterior. Crédito:
German Federal Archives/Wikimedia
A
exposição “Mãe Alemã: Você Está Pronta?”, organizada há mais de uma década na
cidade de Delmenhorst, trata da vida cotidiana nas unidades da Lebensborn
durante o período nazista. Ao lado da figura de uma mãe que amamenta o filho,
havia uma frase de Hitler: “Cada criança que uma mãe traz ao mundo significa
uma batalha vencida para a continuidade do seu povo.”
Na
Alemanha nazista, o Projeto Lebensborn foi um dos diversos programas lançados
por Heinrich Himmler, braço direito de Hitler e arquiteto do Holocausto,
destinados a provar e consolidar a teoria nazista da “raça pura” – a raça
ariana. Quando acabou a Segunda Guerra Mundial, soube-se que tal programa
consistia na criação de residências secretas para que homens e mulheres
“racialmente puros” copulassem. As crianças nascidas no âmbito do programa
seriam criadas e educadas pelo Estado alemão, e destinadas a formar o núcleo de
uma “raça forte”, puramente ariana. Administrada pela SS, a política do
Lebensborn foi imposta também a outros países europeus, entre os quais a
Noruega e a Polônia.
Encerrada
há mais de 60 anos, a Segunda Grande Guerra é, para os mais novos, apenas um
episódio longínquo da história mundial. No entanto, o confronto que mobilizou
todo o planeta ainda deixa diversos vestígios, alguns dos quais, ocultos por
décadas nos países envolvidos, vêm à tona aos poucos. Uma dessas histórias é a
das crianças Lebensborn (fonte da vida, em alemão) na Noruega, os filhos de
militares nazistas com norueguesas concebidos durante o domínio do Terceiro
Reich sobre o país escandinavo.
German
Violetta Wallenborn guardava uma foto de si mesma, quando menina, nos braços de
seu pai, durante uma visita a uma das casas da Lebensborn, na Alemanha. Ela
nasceu numa casa da organização, na Noruega. Paul Hansen, 66 anos, era a
criança Lebensborn nº 1.077, na Noruega. Fazia parte do projeto nazista para a
criação de uma raça superior. Paul cresceu num asilo para pessoas com problemas
mentais, embora fosse uma criança absolutamente normal. Seu pai era piloto da
Luftwaffe e sua mãe era uma jovem norueguesa.
História soterrada
Entre
1940 e 1945, o governo norueguês exilou-se na Grã-Bretanha e uma administração
títere de Berlim tomou seu lugar. Oficialmente, os invasores despertaram
ojeriza na população e muitos noruegueses participaram da resistência contra
eles. A história dos Lebensborn noruegueses, porém, ficou soterrada por
décadas, e só emergiu graças à coragem de alguns deles, que ousaram desafiar a
postura oficial de ignorá-los.
Também
conhecidos na Noruega como krigens bam, os Lebensborn foram uma
consequência até certo ponto natural da chegada de cerca de 500 mil nazistas a
um país cuja população, em 2007, rondava os 4,6 milhões de habitantes. Mas sua
origem vem de dezembro de 1935, quando a Sociedade Lebensborn foi fundada na
Alemanha por Heinrich Himmler, comandante da SS, a tropa de elite do regime
nazista.
A
Sociedade integrava o projeto de Himmler de criar um “futuro ariano” para o
Terceiro Reich, ao mesmo tempo que contornava um declínio da taxa de natalidade
na Alemanha.
Os militares
recebiam incentivos para ter mais filhos tanto na pátria quanto nos países
ocupados, principalmente na Escandinávia, cujas características genéticas
(louros de olhos azuis) eram vistas como arianas clássicas.
Maternidade Lebensborn. Crédito: German Federal
Archives/Wikimedia
Elite racial
O governo
de Berlim lhes assegurava que cuidaria da criança caso o pai não quisesse casar
com a mãe ou já tivesse esposa na Alemanha. A Sociedade Lebensborn não só
pagava os custos do parto como fornecia ajuda em dinheiro e objetos como
carrinhos e camas de bebê. Os frutos dessas relações – mais de oito mil pessoas
conhecidas – seriam, portanto, uma elite racial.
As
norueguesas que se envolveram amorosamente com os nazistas não eram bem vistas
pelo resto da população. O governo do país no exílio tampouco ignorou o tema,
alertando via transmissões de rádio que “as coisas ficariam cada vez mais
desagradáveis para elas depois que os alemães deixassem a Noruega”. Foi o que
aconteceu. Após o fim do conflito, milhares dessas mulheres tiveram seu cabelo
cortado e foram obrigadas a desfilar pelas ruas sob os gritos de “prostitutas
alemãs”. Muitas perderam o emprego e foram presas ou confinadas, ficando
traumatizadas pelo resto da vida.
Logo
depois da guerra, o governo norueguês tentou deportar os Lebensborn para a
Alemanha, mas a miséria imperante no país levou os aliados a vetar a proposta.
Como a ideia seguinte – enviá-los para a Austrália – também não deu certo, o
destino encontrado foram instituições para crianças abandonadas, orfanatos ou,
pior ainda, hospitais para doentes mentais.
Segundo
as autoridades da época, as mulheres que haviam tido relações com os soldados
nazistas deviam ser retardadas mentais, deficiência que também afetaria seus
filhos. Nas descrições de vida dessas pessoas – hoje na casa dos 60 anos -,
maus-tratos, abusos físicos e mentais foram rotina.
Cumplicidade
Somente
na primeira década do século 21 um grupo de Lebensborn decidiu procurar a
Justiça norueguesa para lutar contra o que considerava a cumplicidade do
governo do país na sua tragédia. Foi a partir daí que se passou a conhecer a
trajetória desses párias em sua própria terra.
Gerd
Fleischer exemplificava bem esse drama. Como a mãe descendia de lapões (o povo
de origem tártara que habita o norte da Escandinávia), a SS não havia permitido
que ela fosse enviada à Alemanha para adoção.
Seus
primeiros anos de infância, com a mãe na vila natal, foram tranquilos, mas a
sua situação mudou muito com a derrota nazista. Quando a sua mãe se casou com
um ex-combatente da resistência local, as surras e maus-tratos que já sofria na
escola passaram a fazer parte também do cotidiano doméstico.
Gerd
fugiu de casa aos 13 anos e viveu um bom tempo como sem-teto. Com 18 anos, saiu
do país e apenas voltou 18 anos depois. Durante esse período, reconstruiu a
vida e localizou seu pai alemão – que negou conhecê-la ou à sua mãe. Gerd
levou-o aos tribunais, e só assim ele assumiu a paternidade.
Quando
voltou para a Noruega, Gerd levava – além de dois meninos de rua que adotara no
México – a firme resolução de levar à Justiça casos como o seu. Ela criou uma
organização, Seif (abreviatura em inglês de “Auto-Ajuda para Imigrantes e
Refugiados”) para, em suas palavras, “lutar por justiça para todos”.
Perda de oportunidades
Paul Hansen
viveu outra faceta dessa tragédia. Ele foi internado em um hospital para
doentes mentais e, quando saiu de lá, 20 anos depois, já havia perdido todas as
oportunidades de educação normais a uma pessoa de sua idade. Na época da
exposição em Delmenhorst, Hansen trabalhava como zelador em uma universidade.
Ele integrou o primeiro grupo de Lebensborn a levar o governo norueguês aos
tribunais, no início deste século.
Werner
Thiermann nasceu em 1941, da relação de um sargento nazista com uma funcionária
norueguesa da base alemã em Lillehammer. Ele nunca conheceu o pai, transferido
para a frente russa logo após a mãe ficar grávida. Quando a guerra acabou, sua
mãe foi confinada e o garoto passou sua infância entre orfanatos e instituições
para crianças abandonadas, sofrendo todo tipo de abuso.
O máximo
que as ações dos Lebensborn conseguiram foi a oferta, para alguns deles, de uma
pequena quantia de dinheiro a título de compensação. A alegação oficial –
aceita inclusive na Corte Europeia de Direitos Humanos – é que esses incidentes
ocorreram muito tempo atrás.
A
advogada das “crianças da guerra”, Randi Spydevold, não se conformava com isso:
“Há uma hipocrisia no coração da Noruega, lar do Prêmio Nobel da Paz, um país
que se orgulha de resolver conflitos ao redor do mundo, mas se recusa a
reconhecer as suas próprias vítimas da guerra”.
Os
testemunhos dos Lebensborn mostram que as marcas de crimes como esses nunca
prescrevem numa vida.
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