Enfim sós
Ela mora sozinha há muitos anos. Gosta, pois leva a vida do
jeito que quer, não há ninguém em volta fiscalizando as manias. Mas sente uma
ponta de inveja de lares ocupados por muita gente, famílias numerosas.
Preferiria ser mais requisitada, já que são longos os momentos sem companhia.
Já a ouvi reclamar de passar um dia inteiro sem escutar a própria voz. Até que
veio o coronavírus e obrigou o isolamento de todos. Deixou de ser uma escolha,
e sim um ato compulsório. E, para minha surpresa, ela não reclama mais, está
adorando os dias de leitura, introspecção e silêncio. Mas se a rotina já era
desse jeito, o que mudou?
É que agora não é só ela que está em casa, mas toda a
cidade. Ela já não é diferente da maioria dos amigos. A solidão deixou de ser
um problema apenas dela. É um assunto que sempre me atraiu. Acredito que ter
uma relação cordial com a solidão é a saída para evitar perturbações mentais.
Quem encara a solidão como uma terrível ameaça acaba comprometendo as
experiências afetivas. Os vínculos se tornam asfixiantes em vez de naturais. As
relações sociais tornam-se mais obrigatórias do que espontâneas. É difícil
aceitar que as pessoas chegam, ficam e um dia vão embora de nossas vidas. Essa
dinâmica inevitável nos obriga a passar por momentos de resguardo eventual ou
prolongado, o que conduz a um encontro profundo com a gente mesmo. Para alguns,
é assustador.
Não sou nenhuma ermitã e considero que ter amigos é sagrado.
Lamento pelos que se encarceram numa existência sem vínculos – essa, sim, uma
solidão corrosiva. Bem diferente de quem pode se dar ao luxo de passar
temporadas sem contato, pois sabe que não existe distância entre os que
preservam laços vitalícios. Muitas pessoas moram sós.
Quando a pandemia passar, voltarão a caminhar pelas ruas, ir
a bares, ao cinema, encontrarão pessoas e continuarão sós, e não há vergonha
nenhuma nisso. Sei que conviver é fundamental, um hábito que até ajuda a
imunizar: ficamos mais saudáveis ao sermos tocados, abraçados, beijados. Mas
não precisamos ter nossa vida testemunhada 24 horas por dia.
Sozinhos, agimos como anjos. Não mentimos, não julgamos os
outros, não agredimos ninguém. “Sozinha não há céu que me rejeite” – verso de
um poema que escrevi 25 anos atrás, quando me parecia interessante esse
benefício da solidão: a de impedir que fôssemos uns malas. Hoje se mente, se
julga e se agride pelo Twitter, pelo Facebook. Meu verso caducou. Então,
aproveitemos o cativeiro para valorizar as demais vantagens da solidão:
autoconhecimento, paz de espírito, concentração, relaxamento. E, se
conseguirmos ignorar o celular (como há 25 anos, quando ele não existia), a
vantagem sublime de não sermos atazanados e de não atazanar ninguém.
Martha Medeiros
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