O preconceito por trás do “abuso de poder religioso”
“Não há afirmação mais política do que dizer que política e religião não se misturam” – Desmond Tutu
* Este artigo foi escrito em coautoria com Valmir Nascimento Milomem Santos, professor e conselheiro do IBDR.
A discussão recorrente nas últimas eleições, em torno do denominado “abuso do poder religioso”, voltou à cena após voto do Min. Edson Fachin no TSE, no qual propôs, para o pleito de 2020, o reconhecimento de um tal “ilícito” como “abuso de autoridade”. O “culpado” seria punido até com a cassação do mandato.
O ministro tem vasto conhecimento jurídico e brilhante carreira acadêmica, mas até os mais eruditos se equivocam. Somos forçados a divergir, vez que a tese do “abuso de autoridade religiosa” não tem absolutamente nenhum respaldo na legislação. Simples assim.
O crime de “abuso de poder religioso” afronta a Constituição, que tem como um de seus fundamentos, no art. 1º, o pluralismo político e inclui entre os direitos e garantias individuais, no art. 5º, que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”. A Carta também adota o modelo da colaboração ao vedar que o Poder Público crie “distinções entre brasileiros ou preferências entre si”, no inciso terceiro do art. 19.
A tese está amparada em uma visão equivocada, que tenta excluir as pessoas de fé do debate público. O Estado é laico, não laicista. Logo, não se pode querer colocar quem tem fé e a assume para fora da arena pública.
Em 2017, vale lembrar, o próprio TSE (RO nº 265.308 – RO) decidiu que nem a Constituição e nem a legislação eleitoral contemplam a figura do “abuso do poder religioso”, porque, afinal, o Congresso Nacional jamais criou essa figura específica. Se o Judiciário criasse esse crime eleitoral, haveria um ativismo inaceitável, com mais uma invasão das competências do Legislativo – além do desrespeito ao texto constitucional.
Além disso, a tipificação do ilícito eleitoral em face somente dos religiosos tornaria flagrante uma discriminação negativa, que podemos chamar, neste caso, de perseguição religiosa. Não há debates dessa natureza aplicada sobre outros setores da sociedade. Ainda que possa haver excesso e até mesmo coação psicológica para direcionar os votos dos eleitores de outros grupos, dificilmente será levantada hipótese de “abuso de poder ambientalista”, “ruralista” ou “sindicalista”. Nessas situações, a influência é considerada legítima, como o simples exercício da liberdade de pensamento e convicção filosófica.
Se os religiosos fossem proibidos de falar sobre votar em quem compartilha seus valores, o TSE teria que vetar manifestações de artistas, jornalistas, jogadores de futebol, intelectuais, professores e tantos outros grupos. Ou seriam os religiosos uma categoria inferior de cidadãos? Por que só alguns têm que ficar amordaçados?
Todos podem falar sobre política, menos os religiosos? Isso ocorre porque são imaturos, são a escória, são incapazes de abordar temas complexos e fundamentais para o país? Isso chega a soar ofensivo. Quem quiser criar uma igreja é livre para tanto. Mas, no Brasil, inexiste previsão para alguém querer controlar ou censurar as igrejas alheias. A quem interessa calar quem tem fé? Quem quer disputar votos sem debate? Ou será que, na falta de credibilidade e argumentos para obter os votos de pessoas religiosas, alguns preferem “resolver o problema” impedindo a voz de quem pensa diferente?
Aliás, essa tal “coação moral de natureza eleitoreira” é muito mais frequente em universidades e shows multitudinários do que nas igrejas. O Estado Democrático de Direito não admite tratamento diferente para liberais e conservadores, sindicatos e igrejas, artistas e ministros religiosos.
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