quinta-feira, 30 de julho de 2020

RACISMO

* Por Lea Ferreira

O racismo voltou a ser pauta desde que um homem negro foi morto por um policial branco alguns dias atrás, numa cidade dos Estados Unidos. A bandeira é novamente levantada, protestos são organizados e ressurgem discussões sobre ter sido ou não um ato racista. Outros casos apareceram na mídia e em questões de segundos estamos novamente envoltos nesse tema.

O assunto incomoda, provoca, assusta e nos faz refletir sobre o lado em que estamos: contra, a favor ou neutros. Quando o racismo entra em pauta, a pergunta paira diante de nós e muitos não sabem como responder. Caímos no conforto das nossas consciências quando pensamos que não somos racistas porque temos amigos negros ou casamentos inter-raciais na minha família. Ou que vivemos num país multirracial e aqui os negros não sofrem tanta discriminação assim.

Dizemos ainda que os negros na verdade são os mais racistas ou que já existia escravidão na África antes da chegada dos europeus. Alguns não sabem responder porque o assunto não é abordado ou quando é, é tratado como “mimimi”. São muitas justificativas que damos como resposta. Tenho aprendido que toda história tem três lados: o de quem conta, o de quem ouve e o lado da própria história. Quero contar o meu lado na história como negra, cristã e missionária.

Crescendo como uma mulher negra

Quando uma criança negra começa a perceber que seu tom de pele é diferente das que estão ao redor, ela fica tentando imaginar como isso foi acontecer. Alguns pais não sabem explicar muito bem como seus ancestrais vieram parar no Brasil e falam pouco sobre a escravidão. E o que aprendemos na escola também não ajuda muito.

As perguntas vão ficando sem respostas e vai surgindo uma inquietação, um vácuo. Ao sermos confrontados com os primeiros adjetivos pejorativos, tais como neguinha, cabelo duro ou bombril, não sabemos como responder. Duas coisas podem acontecer: ou você ataca para se defender, com palavras também pejorativas, ou você cria uma “casca” que também serve para se defender. E é por aí que realmente começa a caminhada do preto no chão da vida.

Começamos a criar defesas para continuar vivendo e sobrevivendo neste mundo caído, onde só teremos a redenção total e completa quando Cristo voltar. E então já não haverá mais dor nem pranto (Ap 21.4). Até lá, entretanto, os negros, e outros que sofrem qualquer tipo de preconceito, continuarão lutando.

O escancarar das diferenças

A adolescência é uma das fases mais difíceis da vida, porque você está tentando se encaixar numa sociedade em que o belo tem um estereótipo e começa a perceber que mesmo vivendo num país que se diz cristão e multirracial, o racismo ainda impera e não é velado, como muitos costumam dizer. Pode ser velado para aqueles que não o sofrem, mas ele está lá. Vivo, sentido, pungente.

Ainda na adolescência, você começa a perceber que, ao entrar numa loja, o segurança (mesmo que seja negro como você), começa a te seguir. Ou a vendedora não presta muita atenção em você. Nessa fase os meninos aprendem que sair de casa sem documentos pode ser um risco. No seu círculo de amigos, você é uma das poucas negras. No máximo três; o restante tem outros tons de pele. Nem é preciso mencionar o período da faculdade, pois as estatísticas falam por si mesmas, mesmo diante das políticas de reparação.

Você começa a contar quantos iguais a você existem nos lugares que vai. Começa a olhar para os lados para ver se há alguém ao menos com tons de pele próximos. Seus amigos te chamam de neguinha ou na hora de tirar uma foto dizem: “perto de você vou ficar mais claro ainda!”. O racismo existe realmente no Brasil? Pergunte aos pretos e as pretas que o vivenciam no dia-a-dia.

A raça influencia a vivência missionária

Como missionária, nas turmas de seminários por onde passei havia poucos pretos se comparado ao número de brancos. Nas viagens nacionais e internacionais que fiz a minoria é negra. Já fui barrada na imigração de um aeroporto no sudeste asiático por conta do meu tom de pele; já procurei por produtos nessa mesma região e não encontrei muita coisa além de produtos para “lightning” (uma combinação química para clarear a pele). Ao entrar em um ônibus e sentar ao lado de uma moça asiática, ela imediatamente se levantou e ficou em pé, olhando fixamente para frente, já que não havia mais lugares vagos. Não preciso falar do número de táxis que recusaram a corrida. Talvez você se pergunte: “Mas todos esses atos são mesmo racistas? Você não está sendo exagerada?”. Sigamos com a minha história…

Insatisfeita com as perguntas não respondidas na infância e adolescência, fui tentar entender a razão do tom de pele incomodar alguns. Comecei a buscar livros que falam sobre o assunto, tentando compreender porque dizemos que cremos em um Deus que “não faz acepção de pessoas” (At 10.34), mas na vida prática, fazemos. Onde está a discrepância?

Alguns livros começaram a me responder. A começar pela Bíblia, percebi que a escravidão sempre existiu e foi um ato permitido pelo próprio Deus. Seria um motivo para começarmos a duvidar de sua bondade? Não. Deus sempre foi e sempre será bom. Faz parte da sua natureza. E como explicar por que Deus permitiu a escravidão? A resposta está na maneira como Deus instituiu que os servos deveriam ser tratados com justiça! Ao ler passagens bíblicas que tratam sobre o tema aprendemos muito mais do caráter de Deus. E ao ler livros sobre a escravidão percebemos o quanto o homem está distanciado dele (Cf Dt 15.12-18; Cl 4.1).

Consultando a História

Descobri em outros livros que o continente africano, de onde vêm os negros brasileiros, estava envolvido com o comércio de escravos muito antes da chegada dos europeus. Pelos navios portugueses, que trouxeram os africanos para o Brasil, passaram mais de 4 milhões de negros. O que fez os africanos escravizarem seus iguais antes da chegada dos europeus? A resposta que faz mais sentido é: poder! O poder de subjugar o outro, de ter o controle, os fez pensar que podiam controlar, machucar e vender a quem julgavam inferiores. Um pensamento provocado pela mente caída. Um pensamento diferente daquele que tem verdadeiramente o controle de todas as coisas e que age com justiça.

Ironicamente, o Brasil dos colonizadores europeus foi construído por negros, mas sempre teve como sonho ser um país branco, segundo o escritor Laurentino Gomes. Citando o historiador Eric Williams, ele diz que “a escravidão não nasceu do racismo; mas o racismo foi consequência da escravidão”, a partir do momento em que começaram a ver os negros como uma raça inferior. Pelo fato de os portugueses serem de origem “cristã”, essa visão errônea e discrepante penetrou-se na sociedade civil e religiosa brasileira estruturando-se nas profundezas do pensamento e das ações. Até o próprio negro se confunde e tem lutado para desmitificar essa ideologia.

Em busca de respostas

O que é preciso então para encontrar respostas para perguntas inquietantes? Sabemos que, para algumas perguntas, não teremos respostas. Contudo, falar sobre o assunto, ainda que seja tenso e doloroso, ou mesmo que provoque reações desconfortáveis para ambos os lados, é necessário especialmente neste tempo em que estamos vivendo. Essa temática precisa entrar em pauta nas famílias, nos seminários e nas igrejas. É preciso ler sobre o assunto, estudá-lo e encará-lo de frente, sabendo que “se em algum aspecto vocês pensam de modo diferente, isso também Deus lhes esclarecerá. Tão-somente vivamos de acordo com o que já alcançamos” (Fp 3.15-16, NVI).

Talvez, a partir da morte trágica do norte-americano, seja o momento das vozes dos que sofrem qualquer tipo de preconceito serem ouvidas e quem sabe, de algumas perguntas serem respondidas. Finalizo com uma frase de Martin Luther King, que em um dos seus discursos mencionou um dos hinos antigos de sua geração, expressando o desejo ardente de ser “livre finalmente, livre finalmente, obrigado Deus Onipotente, eu estou livre finalmente”.

 

* Lea Ferreira é ligada à AMIDE (Associação Missionária para Difusão do Evangelho). Já serviu como secretária na base da organização, em Brasília, e em um projeto na Ásia. Atualmente, é secretária do CIM – AMTB (Departamento de Cuidado Integral do Missionário da Associação de Missões Transculturais Brasileiras) e uma das líderes do grupo Irmãs Amigas, que organiza retiros para missionárias.

Sem comentários:

Enviar um comentário

CONHECIMENTO...01

  Como escreve zero em algarismos romanos? Descubra a resposta O zero é considerado um dos números mais importantes da matemática, mas pou...