Inteligência Artificial
Inteligência pode ter muitas definições. Aqui
usaremos um bem simples: é a capacidade de resolver problemas.
Diferentes inteligências foram desenvolvidas para
infinitas possibilidades de problemas. A existência da vida, sua preservação,
diversificação, reprodução e expansão são decorrentes de milhões de soluções
criadas por múltiplas inteligências. Há inteligências em plantas, em animais,
em microrganismos e, de maneira excepcional, em humanos. Vida e inteligência
são inseparáveis.
As inteligências seriam pouco efetivas se não
pudessem ser materializadas nem transmitidas. Um ninho, uma teia, uma colmeia,
uma capa de proteínas ou um xaxim são exemplos de inteligências materializadas.
Nossos antepassados, há 3 milhões de anos, já “empacotaram” inteligência, em
formato de ferramentas que possibilitam ir além, escalar capacidades.
Materializações humanas que geram capacidades sobre-humanas.
Nos animais, microrganismos e plantas, a
inteligência é repassada principalmente pela herança genética – método efetivo,
mas lento. O ser humano foi além. Além de resolver problemas e empacotar essas
soluções em ferramentas, transmitimos e registramos conhecimentos,
possibilitando às próximas gerações construir algo a partir do que já foi descoberto.
Desde as cavernas, criamos “embalagens” da capacidade de resolver problemas
(inteligência) em desenhos, cerâmicas, papiros, livros, quadros, esculturas.
Isso só foi possível por causa do desenvolvimento da linguagem (nosso primeiro
“protocolo IP”) e da fala (seu primeiro “wi-fi”).
No século 19, grande parte do trabalho
humano/animal foi transferida para as máquinas, mas elas ainda eram pacotes
estáticos de inteligência. Aí, gradativamente, desenvolvemos capacidade de
comunicação (Inteligência em parâmetros, cálculos, i.e., computação) com as
máquinas, e elas começaram a agir com autonomia, mesmo que parcial. Linguagem e
ferramentas estavam fundidas.
Inteligência e automação
Assim, se há 150 mil anos, o “salto” da linguagem
permitiu que a inteligência – desmaterializada – fosse transmitida entre seres
humanos, a invenção da “linguagem de máquina” torna possível automatizar
ferramentas. Esse caminho iniciado há séculos, chegou aos anos 1950, às
primeiras expressões (hoje, primitivas) de Inteligências Artificiais (IA’s) –
instruções codificadas que possibilitam captura de dados, análises e decisões,
que podem mover máquinas (semi ou completamente autônomas) e processos.
Com o desenvolvimento da microeletrônica, dos
processadores e da transmissão de dados, as IA"s expandiram sua presença
em todas as ferramentas, a controlar processos de coleta de informações e a
tomar decisões que afetam bilhões de pessoas todos os dias. Hoje, as IA’s movem
máquinas e gerenciam processos, predizem comportamentos econômicos e
climáticos, criam e traduzem conteúdos, controlam fluxos de comunicação;
“decidem” sobre empréstimos, programas sociais, tratamentos médicos; determinam
rotas logísticas, são pilotos (e copilotos) de meios de transporte, distribuem
energia e água, vigiam presídios, plantam, monitoram culturas e controlam
colheitas. A automação possibilitada pela IA já acabou com milhões de empregos
e carreiras, mas criou novas funções e relações de trabalho.
A última invenção humana?
Com o avanço dos computadores, a IA invadiu nossos
sonhos e pesadelos. Mais recentemente, a popularização de uma determinada IA
generativa (LLM, por trás de um chatbot) ampliou esse debate. Por todo o mundo
há reações, sejam eufóricas, sejam apavoradas. De um lado, a certeza do fim, o
apocalipse da SKYNET (“O Exterminador do Futuro”), uma atualização do mito do
“fantasma da máquina”, do Gólem, do Frankstein, o corpo sem espírito, da
criatura que busca a destruição de seu criador. Do outro, na sua versão
otimista, a esperança de que a Inteligência Artificial é o messias e nos
salvará resolvendo de maneira indolor e rápida, todas as crises geradas pela
nossa da “Estupidez Natural”. É a nossa bem-sucedida versão da Torre de Babel a
nos levar aos céus e nos tornar “deuses”.
Nesse debate, o foco (do medo e da esperança) é
menos o que já é e mais o que virá (ou viria), a chamada IA Geral, capaz de
analisar qualquer problema, aprender ilimitadamente e evoluir, mudar seus
parâmetros, independentemente. Mesmo sem saber quão perto estamos da IA Geral,
essa possibilidade (ou inevitabilidade) gera um enorme debate sobre o seu
eventual impacto. O professor israelense Yuval Harari diz que “a Inteligência
Artificial Geral será a última criação humana”, já que, então, só as máquinas
criarão. Harari e outros defendem moratórias tecnológicas, até que tenhamos
mecanismos de controle e segurança.
Com ou sem IA Geral, crescem preocupações sobre o
fim permanente de empregos e o aumento assombroso do poder de IA’s e de
determinados setores e empresas que as produzem e controlam. Há demandas por
regulações éticas, transparência de algoritmos, sistemas de governança, entre
outras. Desafios enormes - transnacionais e imateriais - para os quais os
sistemas políticos, jurídicos e multilaterais existentes não estão preparados.
Mesmo os otimistas admitem que a evolução da IA vem junto com altos riscos.
IA já influencia expressões de fé
Não precisamos conjecturar para reconhecer que as
IA’s existentes já nos afetam profundamente – por sua capacidade de automação,
manejo de volumes de dados, predição e controle que não seriam possíveis para
nenhum sistema manual. A IA já influencia as expressões de fé, como cultos e
ensino. Através dos algoritmos “concierge”, usados por plataformas de redes
sociais para indicar e direcionar provedores de conteúdo (igrejas, líderes,
artistas), comportamentos, discursos e adesões já são formatados por IA’s. Elas
capturam crentes (ou consumidores de conteúdo) em “bolhas” de likes e hates
(quando não totalmente artificiais, produtos de ações híbridas) e assim
reorientam discursos, estéticas e engajamentos. IA’s já selecionam versões
(traduções) e formatam a forma de consulta de livros sagrados, privilegiando
determinados cortes e traduções de texto, segundo mecanismos preditivos, para
manter o leitor. A inteligência de máquina já orienta mensagens
“evangelísticas” e “apologéticas”, determina demográfico (público-alvo), prevê
e estimula contribuições, vincula temas a respostas emocionais e a
comportamentos financeiros, avalia líderes religiosos, monitora e combina
conteúdos consumidos (por exemplo, notícias e celebrações).
Como uma das genialidades do uso da IA é justamente
não parecer uma IA, tendemos a achar que os comportamentos e produtos
religiosos sejam formatados por pessoas, pregadores ou seus ouvintes, músicos
ou seus fãs, e que as plataformas são apenas “mídias”. Porém, na Economia
Digital, a plataforma é o conteúdo. O que chamávamos conteúdos (um sermão, uma
música, uma “leitura”) são fluxos de dados, agendados pelas IA’s nas plataformas,
de forma a maximizar engajamento e transações.
Efeito espelho e o rabo abanando o cão
Inteligências Artificiais não têm a capacidade
humana (que particularmente, creio ser “hereditária” de Deus) de criar a partir
do nada (ex nihilo). Assim, mesmo com sua aura futurista, IA’s precisam do
passado (análise de dados) para “predizer” comportamentos e respostas. Assim,
não há predição em si, mas aposta na repetição. Coletam-se dados porque nós nos
moveríamos e reagiríamos obedecendo a “padrões”. Ao “prever” um padrão
repetitivo, mesmo que complexo, as IA’s terminam por “educar” os usuários
humanos a se comportarem como o “previsto” e assim serem recompensados. Em um
efeito espelho, passamos a nos comportar previsivelmente porque a IA assim
espera.
Nessa dinâmica do rabo abanando o cão, a
“religiosidade IA” já demonstra menos criatividade – e até o risco, quando
tomado, é orientado também pela IA, a “lacração”, que aumenta cliques.
Provedores de conteúdo precisam seguir fórmulas que tentam agradar as IA’s,
repetir-se, ajustar-se a seus padrões preditivos e assim serem recompensadas
por aprovação, traduzidas em acessos, engajamentos e seus prêmios financeiros,
políticos e sociais. Assim, IA’s tendem a limitar as transformações, mesmo
quando estimulam as mudanças. Salomão, vendo a “Igreja orientada pela IA”,
repetiria:
“O que foi tornará a ser, o que foi feito se fará
novamente; não há nada novo debaixo do sol”.
Na escala automatizada exponencial, isso permite
inserir e retirar temas das pautas; vender ideias e estéticas casadas e
customizadas. E, em um futuro bem próximo, IA’s permitirão ir além dessa
aplicação “primária” de fórmulas de adesão. Será possível adaptar a audiências
distintas, de maneira autônoma, um mesmo sermão, uma mesma canção. IA’s
determinarão quão avivados, conservador ou progressista deve ser flexionado o
produto para gerar engajamento. E isso não será restrito aos conteúdos
transmitidos, ao “streaming religioso”. Será possível pré-ajustar conteúdos ao
tipo de grupo presente em um evento presencial. Antes de começar a tocar uma
música, poderá saber quantos na audiência já a conhecem e ou se gostam de outra
canção. Ao começar um sermão, um pastor saberá que versão da Bíblia,
ilustrações e piadas contar. Tudo para maximizar o engajamento dos presentes na
igreja. O “vento do Espírito” da IA sempre sopra-nos mesmos parâmetros. IA
“odeia” o que não é previsível.
Mais importante do que esses usos “circenses”, como
as IA’s são nutridas e se nutrem do reforço das “bolhas” (grupos com
pensamentos/opções próximas), essas dinâmicas levarão ao aprofundamento de
expressões religiosas artificialmente uniformes, adaptativas e controladas, o
que possibilita ainda mais a manipulação da audiência. Além disso, IA’s
aumentarão ainda mais a influência de poder econômico (IA’s não nascem em
árvores, são construídas com base em enormes investimentos) nas expressões
religiosas. Será um aprofundamento da expansão do “negócio” religioso massivo
que tira espaço de manifestações coletivas, comunitárias e orgânicas.
Assim, as IA’s aumentam enormemente o potencial de
maximização da integração dos “produtos” religiosos a outros produtos de
consumo, inserindo ainda mais os conteúdos religiosos como potenciais de venda
de serviços, produtos e ideias (políticas, inclusive). Isso leva a um espaço
religioso cada vez mais facilmente capturado por lógicas estranhas à fé, e uma
fé cada vez menos influente, menos contra cultural.
Futuro inevitável?
Em resumo, as Inteligências Artificiais (IA’s) irão
impactar crescentemente as igrejas pela alavancagem da predição, pela automação
da customização, pela geração de conteúdo, pela integração mercadológica.
Antes que nos joguemos pela primeira janela de zoom
que aparecer, é bom lembrar: todo processo de transformação gera
instabilidades, volatilidades e, com elas, possibilidades de mudanças, de
entradas de novos atores, de transformações não previstas. As IA’s e seus
maquinários expõem grupos religiosos consolidados, hoje poderosos, ao risco de
rapidamente se desestruturarem e serem substituídos. Infraestruturas religiosas
montadas por décadas podem ser substituídas rapidamente por uma crescente
competição. As bolhas atuais, exploradas em demasia, podem perder vigor pela
própria autofagia. As IA’s ainda podem ajudar novos grupos religiosos a dar
abrigo ao crescente e vertiginoso contingente de religiosidades não-afiliadas e
fluidas, pouco capturadas nas atuais “bolhas” de consumo.
Messiânicos e apocalípticos compartilham um erro,
uma falácia: o determinismo. O jogo está aberto. IA’s não serão o que tiverem
que ser, será o que se fizerem delas (pelo menos até uma IA Geral). A ideologia
dominante da Era Digital é que você pode escolher entre 5 mil tons de fundo de
tela, mas que não tem poder nenhum sobre o futuro, de que não há mais nada a se
fazer, exceto tirar proveito ou lamentar. Mas a História, em seu feio e em seu
belo, segue sendo produto do que fazemos. E para os que creem, um produto do
que fazemos com o que Deus nos dá. Assim como as IA’s não são produzidas e
aplicadas sem interesses, elas não nos eximem de assumir e demandar
responsabilidades.
Um mundo religioso cada vez mais automatizado e
fragmentado, baseado no consumo de conteúdos mais do que nas interações, traz
desafios, gera novas perguntas e outras reflexões teológicas. A automação clama
pela busca de novas maneiras de interações, orgânicas, singulares e autênticas:
a inclusão não pela uniformidade, mas pelo imperativo de amor; a interação não
pela concordância, mas pela ideia de diversidade.
A IA traz desafios concretos para o mundo, com
temas como futuro do emprego e da democracia. Para as comunidades de fé, é
essencial lembrar-se de nossas singularidades, nossas atipicidades, aquilo que
não cabe no padrão. A fé é ruptura de lógicas, reinvenção de vínculos,
imaginação profética. A IA e sua recombinação do já inventado não dará conta da
irrepetível e singular busca de significado. Nenhum ChatGPT terá uma resposta
definitiva e adequada para as perguntas essenciais da humanidade: De onde
viemos? Para onde vamos? Por que estamos aqui? Quem é meu próximo?
Assim, se “campo missionário” e a “arena política”
serão algorítmicos, as demandas transcendentes seguirão tão humanas quanto
quando nossos antepassados cunharam as primeiras setas e registraram os resultados
de sua caça turbinada nas paredes de cavernas. Afinal, sonhar e amar - os dois
ingredientes básicos da fé - seguirão ímpares e fora do alcance de qualquer
Inteligência Artificial.
“Eis que
faço novas todas as coisas”. (Ap 21.5)
Eduardo Nunes é economista, cientista social e
teólogo. Trabalhou por 20 anos na Visão Mundial Brasil, de supervisor de
projetos a diretor nacional. Há 12 anos exerce na World Vision International o
cargo de Diretor Regional de Impacto para América Latina e Caribe.
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