quinta-feira, 20 de julho de 2023

OPINIÃO...

 

OPINIÃO

Influencers evangélicos, a politização da fé e a missão da Igreja.

 

Por Marcos Amado

 

I.       As antigas e as novas ...realidades.

 

Suponhamos que tivéssemos um helicóptero supermoderno e tecnológico e subíssemos a uma altura que nos permitisse ver, através de lentes cristãs, os diferentes desafios da América Latina. O que veríamos?

Povos ainda “não-alcançados” com o Evangelho

Milhões de crianças vivendo nas mais diversas situações de risco e vulnerabilidade (tráfico de crianças, escravidão sexual, fome, analfabetismo, etc.)

Aumento crescente do nominalismo entre os cristãos evangélicos

Urbanização desordenada e o sofrimento humano decorrente dessa urbanização (pobreza, crescimento no número de usuários de drogas, exploração do ser humano por meio de grupos criminosos etc.)

Milhões de pessoas em diferentes grupos sociais que ainda não escutaram o evangelho

Refugiados muçulmanos que precisaram abandonar os seus lares em razão de guerras, revoluções e perseguições e que, em seus países, teriam pouquíssimas chances de ouvir o evangelho. Ao buscarem uma nova vida no Brasil, Chile, México, Argentina, etc., muitas vezes se deparam com situações sub-humanas ou mesmo análogas à escravidão

Migração massiva de latino-americanos para os países do Norte –ou mesmo do Sul— buscando oportunidades para uma vida digna (causando, entre outros males, a ‘fuga de cérebros’)

Uma sociedade que está cada vez mais cética e materialista (impulsionada pelas ideias que emanam de um Ocidente secularizado e que chegam até nós pelas asas da globalização), e nos desafia a pensarmos em uma nova missiologia com formas mais adequadas e relevantes de apresentar o evangelho

Grupos étnicos para os quais a Bíblia ainda não foi traduzida para os seus Idiomas

Supostos cristãos e não-cristãos fazendo uso da corrupção para enriquecimento ilícito e, consequentemente, exacerbando o estado de pobreza e miséria de milhões de pessoas.

 

II.      O que Deus espera de nós?

 

Sem dúvida, um quadro bastante desafiante. Agora suponhamos que, no meio desta realidade,

Deus espera que reflitamos a sua imagem por onde passarmos,1  o que contribuiria para que pudéssemos

Promover os valores do Reino no contexto em que vivemos e atuamos,2 permitindo, dessa forma, com que

Participemos no projeto dele de, em Cristo, reconciliar o cosmos para consigo mesmo3 e

Proclamemos, até os confins da terra, que, na cruz, há perdão de pecados e restauração de todos os relacionamentos perfeitos que foram fragmentados no Éden.4

Se realmente for isso que Deus espera de nós é imprescindível que, no meio da desafiadora realidade em que vivemos no Brasil

Tenhamos uma igreja que seja espiritualmente forte, teologicamente saudável e demonstre unidade no meio da diversidade.

Mas a impressão que eu tenho tido à medida que tento acompanhar o desenvolvimento e envolvimento missionário da igreja evangélica, é que o que estamos vendo não é necessariamente uma igreja saudável, mas sim

O crescimento de um cristianismo muitas vezes individualista, descontextualizado, fragmentado e polarizado, que valoriza os eventos multitudinários, que cultua personalidades e influencers, que idolatra líderes políticos, aprecia a riqueza exacerbada e supervaloriza a estética e a ‘sentimentalização’ da fé.

Supondo que esta minha percepção (com honrosas exceções) seja certa, então minha tese é que

A igreja brasileira está em crise e é a principal nova realidade que precisa ser levada em consideração. Se não fizermos uma análise crítica sobre quão saudável ela está para ser um instrumento nas mãos de Deus e testemunhar sobre o Senhor Jesus em todas as esferas da sociedade, nosso esforço para discutir sobre os desafios e oportunidades que surgem a partir das novas realidades pode se tornar pouco frutífero.

 

III.     Mudanças de paradigmas

 

Por uma série de razões políticas, sociais e econômicas que começaram na Europa e Estados Unidos e acabaram influenciando o subcontinente latino-americano, nossa sociedade passou por uma forte mudança de paradigma nos últimos 50 anos.

 

Hans Kung afirma que ao longo dos séculos, os cristãos experimentaram várias mudanças de paradigmas.5  Nesse contexto, é possível que o maior desafio seja que enquanto não há um novo paradigma que se sobreponha ao anterior, a sensação é de caos, incertezas e inseguranças.

 

É minha convicção que, no que tange ao modelo de igreja e cristianismo vigentes no Brasil (e em diferentes partes do mundo), estamos vivendo no centro de uma dessas mudanças de paradigmas, com a consequente sensação de caos, incertezas, inseguranças e grandes disrupturas resultantes de uma sociedade que se sente à deriva.

 

Estas incertezas levaram os cristãos evangélicos a uma forte insegurança sobre quem eram e qual era o seu papel na sociedade. Com isso ativaram o botão do pânico e entraram no modo ‘precisamos nos defender da sociedade’.

 

E havia razões claras para que se sentissem assim e entendessem que precisavam defender valores considerados pétreos para muitos cristãos. A sensação (real ou não) era de que estavam sendo atacados por uma sociedade cada vez mais secularizada em questões tais como:

A Bíblia como revelação infalível e autoridade máxima para as questões de fé e vida diária

O conceito da família tradicional dentro dos laços do matrimônio.

A não aceitação e normalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a adoção de crianças por estes casais.

A moralidade sexual e a castidade antes do casamento

A não legalização do aborto, que contraria o conceito do direito à vida.

A luta contra o ateísmo, claramente defendido por pessoas de diferentes setores da sociedade e pelos movimentos comunistas que entre os anos 1960-1980 estavam muito ativos em diferentes partes da América Latina (e prometiam lutar contra a corrupção, a pobreza, desigualdades etc.).

Liberdade religiosa que permita que os cristãos não tenham que se submeter a leis que contrariam suas convicções.

Um sistema educacional que não imponha valores ou conceitos não-cristãos sobre crianças e jovens.

Masculinidade e feminilidade de acordo com o que boa parte da população evangélica entende como posicionamento bíblico sobre o papel do homem e da mulher.

Resistência às pautas identitárias e aos conceitos de ‘masculinidade tóxica’ e feminismo.

Creio que podemos adicionar outros dois fatores que contribuíram para o acirramento de posições: a reação ao surgimento da Teologia da Libertação, principalmente entre os católicos romanos, e o fortalecimento do conceito da missão integral entre um setor cada vez mais amplo dos evangélicos. Ambas as teologias (a partir de lentes hermenêuticas marcadamente diferentes, que não eram necessariamente percebidas pela maioria dos evangélicos) se preocupavam com o pobre, resistiam à injustiça, promoviam o envolvimento prático na sociedade, enfatizavam a necessidade de uma teologia contextualizada, denunciavam a opulência do rico e a desigualdade social etc.  Isso fez com que um grupo cada vez maior de evangélicos latino-americanos caminhasse na direção de um evangelho celestial, desencarnado, preocupado apenas com o além, e começasse a ver os adeptos destas duas teologias como sendo humanistas e comunistas (mesmo que desde o início do moderno movimento missionário protestante no século 19, o envolvimento social – como prover alimento aos famintos, promover a dignidade dos pobres e oprimidos, construir orfanatos, escolas, hospitais etc.— era parte essencial do que a igreja fazia em diferentes partes do mundo).

 

 

IV.     Um sopro de esperança: o movimento missionário transcultural

 

Durante as décadas de 1980 e 1990, Deus suscitou um forte movimento missionário em toda a América Latina. Impulsionado pelos incansáveis esforços do ministério do Navio Doulos (O.M.) e do COMIBAM, esse movimento promoveu a mobilização e a conscientização da visão missionária transcultural na crescente igreja latina. No Brasil, a criação e fortalecimento da AMTB (Associação de Missões Transculturais Brasileiras) foi (e continua sendo) de grande importância. Como consequência, surgiram centenas de centros de treinamento e agências enviadoras, resultando no envio de milhares de missionários de diferentes partes do Brasil e da América Latina para todos os continentes. Essa ação permitiu o estabelecimento de igrejas em contextos urbanos e nos locais mais remotos e inóspitos do planeta. Minha família e eu, como resultado desse movimento, fomos enviados para trabalhar entre os muçulmanos do Marrocos.

 

Recordo-me claramente de como nosso movimento missionário foi fortemente influenciado pela missiologia norte-americana, principalmente a proveniente do U.S. Center for World Missions e do Fuller Theological Seminary. Rapidamente, o movimento transcultural adotou características semelhantes às do movimento missionário estadunidense do século XX: pragmático, gerencial e com grande ênfase no cumprimento de metas e na necessidade de alcançar milhares de etnias espalhadas pelo mundo, que passaram a ser chamadas de "grupos não-alcançados".

 

Não há dúvidas de que tal abordagem foi útil para comunicar a extensão do desafio evangelístico ao redor do mundo. No entanto, apesar dos inegáveis resultados positivos no que diz respeito à conversão, discipulado e formação de igrejas, nosso movimento transcultural negligenciou quase que completamente a necessidade de uma visão holística, que apresentasse uma Teologia do Reino. Nossa ênfase evangelística e discipuladora se concentrava quase que exclusivamente em um único aspecto da missão: a eternidade.

 

Gradualmente, na América Latina, foi se reforçando o conceito de que qualquer elemento acrescentado à definição de missões além do evangelismo, discipulado e plantação de igrejas não poderia ser considerado missões. Os aspectos relacionados às questões éticas e sociais, ou a "sermos testemunhas do Senhor Jesus e de todo o seu ensinamento em todas as esferas da sociedade",6 eram (ou são) vistos com suspeita, como se estivéssemos cedendo ao temido "evangelho social" com suas influências liberais e marxistas.

 

Essa maneira de compreender a missão, acredito, contribuiu significativamente para que milhões de evangélicos da América Latina pensassem que o que Deus espera de nós não inclui também deixar marcas dos valores do Reino por onde passarmos. E isso (entre outras razões) pode ter contribuído para que mais de 100 milhões de evangélicos na América Latina não consigam afetar de maneira contundente a fibra ética e moral de nossas nações.

 

 

V.      Defendendo os valores evangélicos: alianças políticas e o uso da internet

 

Para defender os valores ‘pétreos´mencionados anteriormente, a partir de um determinado momento da história recente, os evangélicos passaram a ter alguns posicionamentos que, de acordo com Tim Keller, podem ser resumidos nos seguintes pontos:7

O moralismo separatista e sectarista

Individualismo, que promove a crença de que somos o resultado das nossas escolhas pessoais, ignorando a ação das forças malignas institucionais ou sistêmicas.

Antiintelectualismo – Rejeição ou aversão à erudição, causando descrença em relação à quase tudo que resulte de pesquisa científica.

Antiinstitucionalismo – Ojeriza à ideia de prestação de contas (accountability).  Falta de confiança nas instituições tradicionais; valorização do envolvimento de celebridades e das plataformas on-line. Tendência ao autoritarismo.

Enculturação – No lugar de uma avaliação honesta sobre os aspectos positivos e negativos da cultura, há um casamento entre o cristianismo “popular” e a cultura.

Tendência legalista de estereotipar grupos minoritários, falta de sensibilidade sobre as questões raciais, nacionalismo exacerbado que produz o temor de um futuro multiétnico.

Além disso, quando sentiram que havia ameaças a seus interesses e cosmovisão, os evangélicos “se lançaram na esfera eleitoral”,8  fazendo alianças com grupos e líderes políticos que prometiam defender seus valores.

 

Também passaram a fazer um intenso uso da internet para que (a) pudessem unir os que pensavam da mesma forma e (b) pudessem posicionar-se contra os que pensavam de forma diferente.

 

 

VI.     Tribos eclesiásticas globais, teorias da conspiração e teologia questionável

 

Isso levou à formação do que eu estou chamando de ‘Tribos Eclesiásticas Globais’.

São grupos que surgem e sobrevivem principalmente através da Internet que podem ser chamados de tribos porque são herméticas, e que compartilham as mesmas crenças e pontos de vista sobre o que significa ser cristão

São eclesiásticas porque em muitos sentidos estão tomando o lugar da igreja, e a identidade cristã dos membros de uma mesma tribo já não está relacionada ao posicionamento teológico da sua denominação ou igreja local, mas sim aos grupos digitais aos quais estão associados.

O que o pastor prega no domingo tem cada vez menos importância, já que a mente do cristão está sendo impregnada pelo que é alardeado 24 horas por dia, sete dias por semana, pelos youtubers evangélicos.

São globais porque, em uma mesma tribo, há o engajamento de pessoas de todo o mundo, pertencentes a diversos grupos étnicos, que falam diferentes idiomas, apresentam variados níveis socioeducacionais, mas compartilham as mesmas crenças e interesses.

Com isso:

Impulsionados pelos misteriosos algoritmos criados pelas empresas tecnológicas que controlam as mídias sociais, houve, ao mesmo tempo, uma exacerbação das semelhanças por um lado e, por outro, a intensificação das discrepâncias, promovendo o confronto entre as diferentes compreensões teológicas e eclesiásticas.

 

Tal situação promoveu teorias da conspiração que há muito tempo estavam enterradas e que passaram a ser disseminadas por evangélicos:

 

a.      Teorias da conspiração abraçadas por uma parte dos evangélicos

Há um movimento mundial orquestrado pelos Illuminati para controlar o mundo. Parte deste plano tem a ver com eliminar os valores cristãos da sociedade.

Os comunistas têm um plano para controlar o mundo e são a fonte de todo o mal que estamos enfrentando.

Promover a causa LGBT faz parte dos planos dos Illuminati e dos comunistas. Além de ser uma forma de se opor aos valores cristãos, promove o controle da natalidade e evita a explosão demográfica.

A terra é plana.

O homem nunca foi à lua.

O ataque às Torres Gêmeas de Nova York foi orquestrado (ou no mínimo permitido) pelo governo dos Estados Unidos, como parte de um plano maior para controlar o Oriente Médio.

O vírus Sars-CoV-2, causador da Covid-19, foi criado em um laboratório chinês e disseminado propositalmente entre os humanos como parte de um plano do governo chinês para controlar o mundo.

O uso de máscaras como parte das medidas preventivas para evitar a proliferação do vírus causador da Covid na verdade causa o efeito contrário e promove a disseminação do vírus. O não-uso da máscara é uma forma de resistência aos movimentos anticristãos que querem se aproveitar da pandemia para alcançar seus objetivos.

O uso de remédios não comprovados para lutar contra a Covid-19 (inclusive vermífugos e remédios contra a malária) é desestimulado pelos governos como parte de uma grande conspiração da indústria farmacêutica para obter lucros ainda mais exorbitantes.

A vacina contra a covid-19 é extremamente perigosa para a saúde e faz parte de um movimento mundial liderado por Bill Gates para inserir um microchip que controlará o indivíduo.

O grande culpado pelos grandes problemas educacionais enfrentados pela sociedade brasileira é o educador comunista Paulo Freire.

Determinados canais de televisão (que, apesar das teorias conspiracionistas, continuam sendo assistidos diariamente por milhões de evangélicos) estão há décadas orquestrando um grande plano maléfico, e parte da responsabilidade pelos males sociais e morais da nossa sociedade é desses canais. Enfraquecê-los deve ser um dos objetivos de um cristão verdadeiramente comprometido.

A suposta crise do aquecimento global e suas consequências é uma mentira orquestrada pela esquerda mundial.

 

Passaram, também, a disseminar conceitos bíblicos e teológicos que levantaram muitos questionamentos. Alguns exemplos:

 

a.      Alguns posicionamentos bíblico-teológicos defendidos por parte dos evangélicos

A MISSÃO

‘Fazer missão’ significa evangelizar, discipular e plantar igrejas onde o evangelho ainda não foi anunciado. Qualquer coisa que for adicionada a esta definição está errada.

A Teologia da Missão Integral não é teologia, mas sim uma ideologia de esquerda. Seus teólogos são influenciados pela Teologia da Libertação. É a Bíblia interpretada erroneamente através de lentes hermenêuticas marxistas.9

A VERDADEIRA ORTODOXIA CRISTÃ

A única teologia que reflete a verdadeira ortodoxia evangélica é a teologia reformada (organizações cristãs norte-americanas inundam o mercado evangélico latino-americano com livros cujas temáticas reforçam a ideia de que há uma única teologia que reflete fidedignamente os ensinamentos bíblicos).

CIÊNCIAS

O uso de máscaras e o cancelamento dos cultos presenciais como forma preventiva de evitar a proliferação do vírus da Covid-19 foi uma clara demonstração da falta de fé que corrói o cristianismo.

CULTURA POPULAR

O filme “Top Gun: Maverick” é visto como portador de valores bíblicos que deveriam estar profundamente arraigados nas nossas mentes e corações.10

ESCATOLOGIA

Por conta de uma determinada visão escatológica, o apoio incondicional ao moderno Estado de Israel é visto como condição sine qua non para qualquer um que se considera um cristão verdadeiramente bíblico.

IDENTIDADE CULTURAL E RELIGIOSA

Somos nações cristãs, formadas sobre fundamentos cristãos, e com valores cristãos profundamente arraigados na sociedade. Tais valores precisam ser defendidos.

MILITARISMO

É preciso promover de forma contundente o nacionalismo cristão (“Bendita é a nação cujo Deus é o Senhor”). Os líderes evangélicos devem usar passagens bíblicas para defender essas ideias e incentivar que os militares tomem o poder, mesmo que isso leve à violência e à agitação social.

PATRIOTISMO E NACIONALISMO

Deus, pátria, família e propriedade é um quadrinômio que tem base bíblica e deve ser defendido pelos cristãos. Se necessário for, o cristão deve usar armas para defender estes quatro valores pétreos.

Precisamos incentivar a formação e o fortalecimento de um ‘governo cristão’ para que este governo, sob a influência da igreja evangélica, imponha valores supostamente cristãos sobre a sociedade.

Deus pode escolher líderes ‘salvadores da pátria’ que não sejam cristãos nem atuem de acordo com os valores éticos e morais cristãos para que o Senhor seja o Deus da nossa nação. Esses líderes messiânicos prepararão o caminho para que toda a nação conheça a verdade que nos libertará. Por terem sido escolhidos por Deus, não podemos nos opor ao governo.

QUESTÕES AMBIENTAIS

O mundo vai terminar em chamas. Portanto, não há razão para se preocupar com o cuidado da natureza.

TEORIAS ECONÔMICAS

O capitalismo liberal é uma teoria econômica que emana de princípios bíblicos. As grandes e bilionárias corporações são tão benéficas para a sociedade que quase poderiam ser comparadas a ONGs cristãs.

Biblicamente falando não há nada de errado com o fato de 10% da população mundial deter mais de 70% da riqueza do mundo em que vivemos. Devemos deixar que ‘a mão invisível do mercado’ regule essas relações econômicas e sociais, regulando a distribuição de bens e capitais produzidos.

 

 

VII.    Os ‘influencers’ evangélicos digitais

 

Este cenário se torna ainda mais complexo quando levamos em conta que todas estas teorias e pontos supostamente bíblico-teológicos são insuflados pelos influencers evangélicos digitais.

 

Segundo informações recentes difundidas pelos meios de comunicação e baseadas em estudos feitos por conhecidos institutos de pesquisa, os números são surpreendentes. Um artigo publicado em janeiro de 2022, informa que “nas 4 plataformas, os 30 maiores influenciadores evangélicos têm 140 milhões de seguidores”.11 Ou seja, os 30 líderes evangélicos brasileiros com maior presença na internet são seguidos por cerca de 60% da população brasileira!

Na edição 2804 da Revista Veja de agosto de 2022, em uma matéria intitulada “Fé, clique e votos” vemos uma pesquisa que se concentrou nos dez maiores influencers evangélicos brasileiros. Ela nos mostra que um só ‘influencer’ evangélico é seguido por 20 milhões de pessoas, provocando mais de 56 milhões de interações no intervalo de oito meses.

 

E uma boa parte destes influencers subscrevem e promovem as teorias da conspiração e pontos bíblico-teológicos mencionados anteriormente e também contribuíram para um recrudescimento do:

 

1. Posicionamento evangélico em relação aos seguidores de outras religiões e representantes de grupos minoritários

 

Há cerca de dez anos, quando eu publiquei nas redes sociais uma série de vídeos explicativos sobre o islã e seus seguidores, eu pude sentir na própria pele o que significa a hostilidade de uma parcela significativa dos evangélicos brasileiros em relação a outras religiões e seus adeptos. Como eu decidi que os vídeos não teriam um tom agressivo, dentre centenas de comentários negativos vindos de evangélicos professos, uma internauta comentou que “não tem nada de bom que vem do islã... São maus intolerantes, radicais, a mulher não vale nada, e se for contra o tal Maomé você morre... Decapitado, explodido, queimado vivo, apedrejado, chicoteado etc.” Outra sugeriu que o Estado de Israel deveria seguir o exemplo encontrado em Josué 6:21 e atacar os árabes palestinos, levando os israelitas a destruí-los "totalmente a fio de espada, tanto homens como mulheres, tanto meninos como velhos, também bois, ovelhas e jumentos" (Josué 6:21). O ódio destilado pelos evangélicos foi tão intenso que levou uma muçulmana a comentar, com muita indignação: “Meu Deus, nunca vi tanto ódio e difamação saindo do coração de cristãos como estou lendo neste post.”

 

 

 

Essa é apenas uma das muitas situações em que evangélicos usam a violência (verbal ou física) contra pessoas e lugares de culto de outras religiões, e que ocorrem com cada vez mais frequência. Em 12 de outubro de 1995 boa parte da população brasileira ficou estarrecida ao ver imagens televisivas mostrando um líder evangélico chutando a imagem de Nossa Senhora da Aparecida, um dos principais símbolos reverenciados pela igreja católica brasileira.12 Em 1999, um jornal de uma igreja evangélica, com uma tiragem de um milhão de exemplares, publicou uma notícia com teor negativo sobre uma líder de um culto afro-brasileiro, o que foi o estopim para que evangélicos cometessem uma série de atos violentos culminando com sua morte no ano seguinte.13 Em 2019 a agência de notícias alemã DW publicou uma reportagem discorrendo sobre os constantes ataques dos evangélicos contra seguidores de religiões afro-brasileiras.14

 

Com certeza nos está faltando o equilíbrio sugerido por Michael Goheen, que nos adverte:

 

O modo como se formula a teologia das religiões moldará... a abordagem missionária. Se Deus está se revelando a todas as pessoas, os anseios e desejos do coração precisam ser ouvidos; se a revelação de Deus é reprimida e substituída pela idolatria, a expressão desses anseios precisa ser criticada. Assim, a abordagem missionária envolverá tanto uma abordagem interna e compreensiva das religiões quanto uma abordagem externa e crítica.15

 

Ao mesmo tempo, sentindo-se acuados, e incitados por lideranças evangélicas que (usando passagens do Antigo e do Novo Testamento), apregoavam aos quatro ventos que estávamos numa guerra sem fronteiras pela alma da nossa nação e pela defesa dos valores cristãos, alguns evangélicos passaram a tomar a iniciativa de atacar verbalmente (ou até mesmo fisicamente), pessoas de grupos minoritários.16 Quando tais ações eram perpetradas por não-cristãos, havia um silêncio tácito, ou mesmo o apoio explícito, de um número significativo de evangélicos ou de políticos apoiados por evangélicos.

 

 

VIII.     Tentando encontrar um caminho

 

Dentro desta realidade (e mesmo antes do advento da internet), vimos o surgimento de vários movimentos que tentaram (com maior ou menor êxito) propor um caminho no meio do caos e das incertezas. Mencionarei dois deles.

 

1. O evangelho do bem-estar

 

As igrejas que subscreveram àquilo que estou chamando de ‘evangelho do bem-estar’ perceberam que, para atrair multidões, deveriam suavizar os aspectos do cristianismo considerados estranhos pela sociedade (incluindo não desafiar o materialismo). Não é que pregavam um cristianismo sem a cruz, mas a cruz era um meio para que seus desejos fossem cumpridos e suas necessidades satisfeitas. Não era um evangelho da prosperidade, mas um evangelho do ‘sentir-se bem consigo mesmo’. Assim, os cultos e programas dessas igrejas se tornaram cada vez mais pragmáticos e voltados para o entretenimento, oferecendo aos fiéis uma variedade de serviços que, às vezes, incluía até um Starbucks bem ao lado da entrada principal! Quem não ia querer algo assim?17

 

2. O evangelho da prosperidade

 

É uma teologia que também prometia um Deus que existia para satisfazer nossas necessidades, mas para isso seria necessário cumprir alguns rituais pré-estabelecidos pela liderança (principalmente os dízimos e ofertas), o que faria com que Deus passasse a ter a obrigação de suprir nossas pendências financeiras, melhorar nosso nível de vida, nos dar um melhor emprego, um carro zero e curar nossas enfermidades.

 

Fatos expostos pela mídia a respeito de “escândalos de abuso e corrupção de líderes” deste movimento, mostram que eles praticam o abuso de poder (incluindo poder espiritual), espírito de ‘direito à riqueza’, que leva à promoção de “campanhas não éticas para levantar fundos”, além de levarem à cabo “práticas que exploram e oprimem os mais vulneráveis.”18

 

 

IX.     Precisamos fazer (e responder) algumas perguntas:

 

Já não faz sentido, diante do quadro exposto e das novas realidades da igreja latino-americana, continuar discutindo se somos calvinistas ou arminianos; se a TULIPA19 reflete de forma fidedigna os principais pontos da doutrina protestante; se somos pré, pós, ou amilenistas, ou ainda pré, mid ou pós-tribulacionistas. Pode até ser que teólogos ou líderes denominacionais estejam preocupados com questões assim, mas polarizações estão ocorrendo por questões muito diferentes.

 

Se vamos fazer frente às novas realidades, assim como aos desafios e oportunidades que delas emanam, precisamos levar em conta vários aspectos importantes:

 

1. Relação entre fé e política

A questão da colaboração entre o Estado e a Igreja. Isso ocorre com cada vez mais frequência, mesmo que de maneira não-formal. 

As alianças mais que reprováveis que líderes evangélicos fazem com líderes políticos, por acharem que o cristianismo e seus valores devem ser impostos sobre a sociedade com o apoio do poder estatal. Segundo a percepção destes setores do evangelicalismo latino-americano, o objetivo é transformar nossos países em nações cujo Deus é o Senhor, mesmo se, para isso, for necessário usar governos e governantes que fazem com que a justiça seja posta de lado, o direito seja afastado, a verdade tropece no tribunal, a honestidade e a verdade desapareçam e os que procuram ser honestos sejam perseguidos (Isaías 59.14-15).

Ter bem presente que a missão foi dada à igreja, e não a nenhum governo temporal.20 Parece que em algum momento não muito bem definido dos últimos anos decidimos, como num inconsciente coletivo, que somos, como evangélicos, incapazes de fazer aquilo que o Senhor espera da sua Igreja e achamos que é possível delegar a um governo (seja ele qual for) a missão de impor um modelo moral.

Estamos maravilhados com os ‘imperadores’ de nossa época e com a adulação dos políticos ao povo evangélico. Estamos nos comportando como quando o Imperador Constantino, interrompendo três séculos de perseguição, convocou os bispos para o Concílio de Nicéa e “alguns dos bispos que compareceram não conseguiram conter a admiração diante daquela nova realidade, a ponto de afirmarem que o imperador presidiu como ‘um mensageiro celestial de Deus’”.21

2. Valores bíblicos e responsabilidade social

Se vamos levar em conta o ensino bíblico de amar o próximo como a nós mesmos, temos que encarar o fato de que uma parte considerável dos que se declaram evangélicos na América Latina (ou pelo menos no Brasil), acreditam (apoiadas por líderes evangélicos), que devemos ignorar a ciência, e promover ações que podem gerar doenças e morte para si mesmos e para o próximo.22

Como vamos cumprir a missão na sua integralidade sem levar em conta seriamente as implicações de passagens como Gênesis 1:2823 e Romanos 8:19-2224 em relação ao cuidado da natureza?

É possível contribuir para a diminuição da pobreza e a erradicação da fome se cremos na capacidade da “mão invisível do mercado” para solucionar tais problemas, fazendo de conta que Isaías 58:6-725 não é para nós, cristãos do século 21?

Muitos evangélicos passaram a incluir na sua lista de ‘valores pétreos’ o incentivo ao uso de armas. Mas, em uma região com as condições sociais que temos, como vamos contribuir para a diminuição da violência se desprezamos o ensino de Mateus 5:9: "Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus"?

3. Postura e unidade da igreja

É necessário lidar com o orgulho denominacional. Será que em algum momento vamos entender que, apesar de existirem diferentes tradições e interpretações teológicas, podemos ser mutuamente edificados, tendo em vista o testemunho cristão, sem que um se sinta superior ao outro.26

A discórdia entre a integralidade da missão27 e a proclamação entre os povos não alcançados com o evangelho28 continua sendo real em muitos círculos evangélicos. Parece ser que ainda não nos convencemos de que a Missio Dei, na qual somos convidados a ser partícipes, abrange ambos os aspectos.

Precisamos entender que, seja qual for a nossa escatologia, não podemos coadunar com a violência, opressão e injustiça, sejam elas perpetradas pelo moderno Estado de Israel ou pelos árabes palestinos.29 O Compromisso da Cidade do Cabo, do Movimento de Lausanne, nos exorta a nos arrependermos por, muitas vezes, termos sido cúmplices da violência étnica, da injustiça e da opressão “através do silêncio, da apatia ou de presumida neutralidade ou ainda oferecendo falsa justificativa teológica para tais atos.”30

A prepotência religiosa nos tem transformado em pessoas hostis em relação aos seguidores de outras religiões31 e àqueles que são membros dos grupos minoritários. Parece que isso está levando-nos à crença de que nossa religião ou igreja salva. Mas nós bem sabemos que em nenhum lugar da Bíblia somos convocados a defender e proclamar uma religião, mas sim a anunciarmos uma pessoa, Jesus Cristo, o único Senhor e Salvador.

4. Posicionamento profético

Ao temermos ser identificados com determinadas ideologias, acabamos deixando de defender importantes valores bíblicos. É possível ser verdadeiramente partícipes da Missio Dei tendo esta postura?

A igreja precisa recuperar sua voz profética e afirmar com veemência que Deus não coaduna com a tortura, não aceita a escravização, se opõe àqueles que, ao negociar, exigem suborno, aumentam o preço, usam balança enganosa e vendem ‘gato por lebre’.32

Ainda como parte da voz proféticas, vamos declarar que Deus se posiciona contra a deportação injusta, contra aqueles que odeiam os que defendem a justiça no tribunal, contra os que vendem o justo por prata, contra os que pisam na cabeça do necessitado, contra os ricos que roubam e saqueiam os pobres, contra os que impedem que se faça justiça aos pobres nos tribunais?33

5. Nacionalismo e patriotismo

Aparentemente há, no nosso meio, uma forte tendência à ‘idolatria de estado’, que leva a um patriotismo exacerbado e a um nacionalismo perigoso. Corremos o risco de nos esquecermos de que nossa cidadania é celestial e transcende fronteiras terrenais?34

6. Humanidade e tecnologia

Aprenderemos a lidar, de forma propositiva, com a desumanização trazida pela avassaladora rapidez no desenvolvimento de novas ferramentas tecnológicas e pelo uso massivo e impróprio das mídias sociais? Isso traz um grande desafio tendo em mente que somos portadores da imago dei.

As novas realidades latino-americanas (assim como as antigas) são muitas. A dimensão dos desafios e oportunidades trazidos por elas, no que se refere à nossa participação na Missio Dei, é enorme. Quando penso em todos estes aspectos diferentes, muito tem me preocupado a nossa aparente incapacidade de discernirmos os tempos e abrirmos os olhos para os sinais e evidências (tanto os claramente perceptíveis como os quase imperceptíveis) que estão diante de nós. Com isso, às vezes contribuímos para que a mentira e o engano prevaleçam, trazendo, entre outras coisas, a tão temida escuridão que nos cega e nos leva a aceitarmos situações, afirmações, ações e posicionamentos que, até pouco tempo atrás, eram inadmissíveis para um cristão evangélico, fosse ele de direita ou esquerda, conservador ou fundamentalista.

 

Mas, como povo de Deus impregnados pelo Espírito e com uma presença numérica tão marcante, estamos em uma situação privilegiada para deixarmos as marcas do Evangelho do Reino por onde passarmos. Contudo, antes de enfrentarmos os desafios externos, é imprescindível voltarmos nosso olhar para nosso interior e responder a algumas questões complexas, demonstrando humildade ao reconhecer nossas falhas, arrepender-nos e retornar ao primeiro amor. Apenas dessa forma seremos capazes de, com convicção, afirmar: "Eis-me aqui, Senhor. Envia-me!"

 

Marcos Amado é diretor do Centro de Reflexão Missiológica Martureo, é graduado em Teologia pelo All Nations Cristian College (Reino Unido) e Mestre em Missiologia com Especialização em Estudos Islâmicos pela mesma instituição. Em Beirute, no Líbano, cursou Estudos Avançados em Religiões e Culturas do Oriente Médio no Institute of Middle East Studies. É casado com Rosângela e acumula mais de 25 anos de experiência transcultural.


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