O discurso divino e a voz da igreja
Por Nicholas Wolterstorff
Existe um aspecto surpreendente do modo como a
Bíblia é usada na comunidade cristã: a Bíblia não foi arquivada e guardada. Os
cristãos a continuam lendo, e fazendo outras coisas com ela. Não apenas os
noviços em cada geração, mas aqueles que a vão lendo desde a infância e por
diante. O mesmo ocorre com a Bíblia Hebraica no judaísmo e com o Corão no Islã.
Por que isso acontece? Se se trata de um
instrumento do discurso divino, ou, alternativamente, de um meio da revelação
divina, por que aqueles que já descobriram o que é dito ou revelado por esse
intermédio não se dão por satisfeitos e se concentram em outras coisas? Não
falo sobre concentrar-se em coisas além do conteúdo do discurso ou da
revelação; é extremamente importante mantermos isso em mente. Mas sobre concentrar-se
em coisas além desse meio de revelação. Normalmente, quando algo importante nos
é dito ou revelado, não ficamos voltando para o instrumento do discurso ou para
o meio da revelação; o instrumento ou meio cumpriu seu papel, e seguimos em
diante. Por que esse retorno incessante à Bíblia?
Se não se enxerga nenhuma maneira de
aperfeiçoamento nesse modo de dizer o que Deus disse ou nesse modo de comunicar
o que Deus revelou, então é claro que é importante continuar apresentando a
Bíblia a novos membros da comunidade. Mas por que os membros antigos continuam
voltando a ela? E, quanto à impossibilidade de aperfeiçoamento: os nossos
pastores, intérpretes da Bíblia e teólogos não estão, na verdade, tacitamente
assumindo que esse meio pode ser aperfeiçoado? Eles não estão assumindo que, em
geral, a maneira como a Bíblia realiza o discurso ou comunica a revelação é um
tanto quanto difícil e obscura, e que, ainda assim, se nos debruçarmos sobre
ela poderemos ver o que é dito e poderemos colocar isso de maneira mais clara,
e que eles mesmos fazem isso? Mas, se esse é o caso, por que não ficar apenas
com os esclarecimentos retirados do texto? Por que ficar retornando
incessantemente ao texto do qual os esclarecimentos foram retirados?
O que me parece ser a resposta correta para essa
questão tem duas partes. A primeira parte é que a comunidade assume, por sua
prática, que, não importa quão bem-sucedidas sejam interpretações prévias,
algum esclarecimento adicional sempre é possível; a atividade de discernir o
discurso divino está sempre incompleta. E está incompleta de duas
maneiras. Em primeiro lugar, não posso,
em geral, simplesmente assumir que o que Deus disse a mim na minha situação ou
a meu grupo na nossa situação por meio desse texto é exatamente o que Deus disse
a outros leitores e intérpretes anteriores em suas respectivas situações. Mas,
se existe de fato uma rica diversidade na particularidade do que Deus disse a
pessoas diferentes por meio da Sua autoria de tal texto, então essas pessoas
diferentes devem tentar discernir tal pluralidade. Em segundo lugar, o fato de
que a interpretação está sempre incompleta se baseia na sutileza do texto tanto
quanto na diversidade do que foi dito a quem. Às vezes somos obstruídos em
nossas tentativas de interpretação; frequentemente nossas interpretações se
equivocam. A Bíblia é uma carta rica, e repleta de sutilezas, de um amigo nosso
dirigida a nosso grupo. Repetidamente, quando voltamos a ela, seja como
indivíduos ou como um grupo, perguntando-nos o que esse amigo estava dizendo,
somos recompensados com novas percepções. Em parte, isso ocorre porque cada um
de nós em determinado estágio de nossas vidas é cognitivamente privilegiado em
relação a certas facetas da realidade e cognitivamente desprivilegiado em
relação a outras. Se uma pessoa desfrutou de riqueza durante toda a sua vida,
certos aspectos do texto bíblico quase certamente passarão despercebidos; se
uma pessoa viveu sob opressão, certos aspectos saltarão aos olhos.
A outra parte da resposta é que a comunidade assume,
por sua prática, que a importância da Bíblia vai além do fato de ser um
instrumento do discurso divino. A comunidade assume uma importância a mais para
a Bíblia. Em primeiro lugar, as palavras e os mundos projetados pelas
Escrituras se mostram dignos de serem contemplados por si sós; há uma arte da
narrativa bíblica, uma arte da poética bíblica, e ressonâncias fascinantes
entre as partes do texto e os mundos. Além disso, a Igreja ao longo das eras se
viu atraída pelo uso das palavras da Escritura para seu próprio discurso: ela
dá voz a seu próprio louvor e lamento por meio das palavras dos Salmos, ela dá
voz às suas próprias bênçãos por meio das palavras de Paulo, ela dá voz às suas
próprias esperanças por meio das palavras do Apocalipse. Mas, em terceiro
lugar, e talvez de maneira mais importante, a Igreja desejou ser a tal ponto
moldada pelas próprias frases e imagens da Escritura, pelas narrativas e pelos
cânticos, pelas exortações e pelas visões, que ela enxerga a realidade e
imagina possibilidades através dessas frases e imagens, através dessas
narrativas e desses cânticos, através dessas exortações e visões. Um poema é
uma peça de discurso; e um bom poema é rico e sutil no discurso do qual ele é o
instrumento. Mas um bom poema é mais do que isso, muito mais do que isso, mais
do que o instrumento sutil de um discurso rico; ele é um discurso saturado de
significado. Ele proporciona material para a nossa meditação, oferece palavras
para a nossa voz, dá forma à nossa consciência, molda a nossa interpretação da
vida e da realidade. Depois de Shakespeare, muitos são aqueles para quem o
mundo é um palco e todos os homens e mulheres não são mais do que atores.
Trecho do livro Discurso Divino – Reflexões
filosóficas sobre a tese de que Deus fala.
Nicholas Wolterstorff é professor emérito de
teologia filosófica na Universidade de Yale, Estados Unidos. Antes, foi
professor de filosofia no Calvin College, em Grand Rapids, Michigan, e
professor visitante em diversas universidades, como Universidade Notre Dame, Universidade
de Oxford e Universidade Livre de Amsterdã. É autor de, entre outros, Lamento —
A fé em meio ao sofrimento e à morte e Discurso Divino – Reflexões filosóficas
sobre a tese de que Deus fala.
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