MÚSICA 22a. Parte
Por: Raul Ruffo
15/06/2023
O costume criminoso presente nas músicas de festa
junina.
Um hábito que era obrigatório em toda festa junina,
hoje é crime. Ainda podemos curtir as músicas com esses relatos sem culpa?
Ao longo da história da humanidade, a arte – além
de aliviar o espírito, relatou costumes, hábitos, criticou e traduziu a alma da
sociedade da época em que ela foi feita.
Em 1932, um sambista cantava:
“Mas que mulher indigesta”
“Merece um tijolo na testa”
Uma frase como essa dentro do contexto
contemporâneo, levaria o artista ao cancelamento absoluto. Noel Rosa não
existiria. Mas ele cantou isso no século XX não no século XXI e é considerado
um dos maiores artistas da história do Brasil.
Noel Rosa
Noel Rosa tocando crimes na época certa
Em 1995, um grupo de jovens artistas brincava com
zoofilia, dizia que “gay também é gente” e que “baiano fala oxente”, e não eram
taxados de homofóbicos, xenofóbicos ou doentes sexuais.
Os Mamonas assassinas cantavam isso em horário
nobre no Faustão, no Gugu, faziam sucesso com as crianças, com os crentes, com
os gays e com os ateus. Se tivessem aparecido depois da internet, teriam sido
pauta de discussão sobre direitos humanos no Encontro com Patrícia e recebido
uma moção de repúdio da câmara dos deputados. Mas eles fizeram isso no contexto
histórico do final do século XX.
Mamonas assassinas
Os heróis dos anos 90 seriam os vilões dos anos
2020
Eu já vou revelar qual é esse costume criminoso
presente nas músicas de festa junina, mas antes preciso expressar os motivos
que me levaram a escrever sobre isso.
Faz parte das boas práticas de interpretação de uma
obra artística (é um dever de casa) entender em qual realidade aquela obra foi
concebida. É preciso um contexto para a apreciação completa e correta. É claro
que você pode curtir qualquer obra artística sem nenhum background, é uma
experiência muito legal também, mas, nesse caso, você não pode julgar. O
julgamento não pode existir sem levar em consideração o contexto histórico. A
sociedade se modifica rapidamente e a música é uma das manifestações que deixam
esse registro para as gerações futuras. É muito importante que essas obras
permaneçam exatamente da mesma forma em que foram escritas. Reescrever a
história é correr o risco de interpretar errado o presente.
Há um tempo existiu um movimento que, num
sentimento de reparação história, quis destruir obras de arte dos séculos
passados. Estátuas de figuras controversas como Princesa Isabel, Borba Gato, e
nos Estados Unidos George Washington e Thomas Jefferson, tiveram a presença
questionada e foram alvos de ataques que bradavam a retiradas das obras.
Estátuas que são registros históricos para nos ajudar a entender o passado e
conviver com a realidade do presente. Retirar a estátua não vai apagar a influência
que o homenageado da obra teve em determinado local. É preciso entender as
razões pelas quais a figura foi eternizada e em qual contexto histórico isso
ocorreu. Hoje eles não seriam homenageados. Como nós sabemos disso? Porque
conhecemos a história deles e sabemos quem são. Nós não cometemos mais os
mesmos erros que eles cometeram. E como isso foi possível? Porque sabemos quem
são e o que fizeram. Sabemos também que o conceito de errado muda de tempos em
tempos.
Cristovão Colombo
Cristóvão Colombo sendo cancelado em Barranquilla,
Colômbia. Foto: Reuters (2021)
Esses dias fui a um show do Sidney Magal. Em certo
momento do show, ele parou e falou com a plateia num tom de pesar: “Sandra Rosa
Madalena eu ainda posso cantar, mas tem outra música, que é talvez o meu maior
sucesso da época, que se eu cantar aqui a polícia vai esperar na porta para me
prender. Essa eu não posso mais cantar, vamos em frente.”
A música é “Se te agarro com outro te mato” e diz
assim:
“Se te agarro com outro te mato
Te mando algumas flores e depois escapo”
É um crime. Hediondo. Isso se ele for praticado, se
for cantado ou ouvido, não é. Ou pelo menos não era.
Mas cadê o costume criminoso presente nas músicas
de festa junina?
Dei toda essa volta, pra falar que nem as músicas de
festas juninas escaparam da implacável mudança de pensamento da sociedade ao
longo do tempo. Pode conferir, de 10 músicas de festa junina, 7 falam desse
costume que hoje é criminoso. Por exemplo:
Luiz Gonzaga- “Olha Pro céu”
Olha pro céu meu amor
Vê como ele está lindo
Olha pra aquele balão multicor
Como no céu vai sumindo
Mario Zan- “O Balão Vai Subindo” (sonho de papel)
O balão vai subindo vai caindo a garoa
O céu é tão lindo e a noite é tão boa
A primeira música feita para festa junina já
relatava esse costume:
Assis Valente- “Cai, Cai, Balão”
Cai, Cai, Balão
Cai, Cai, Balão
Aqui na minha mão
Balões juninos
Era legal, agora é ilegal.
Desde 1998 soltar balões é crime, que pode ser
enquadrado tanto no artigo 261 do Código Penal Brasileiro por colocar em risco
a segurança do tráfego aéreo, quanto no 9605/98 por crime ambiental. Você pode
ficar três anos preso por soltar balões.
Eu nunca soltei balões na minha vida e nunca vou
soltar, não vejo a menor graça. Mas eu adoro ouvir todas essas músicas que falam
de soltar balão! Não dá pra passar pelo mês de junho sem ouvir uma dessas
músicas. Essas músicas fazem apologia a um crime. Devem ser canceladas?
Arte é ficção. Pode ou não expressar a realidade,
mas não é a realidade, é um fingimento. Uma música, um filme, uma novela, um
espetáculo de teatro como Shakespeare ou um stand-up comedy, são fingimentos. É
a nossa fuga da realidade.
Atuar numa série onde o protagonista é um
traficante de drogas, não pode te fazer um criminoso. Interpretar Hamlet no
teatro não pode te levar a prisão por assassinato. Curtir Bezerra da Silva não
te transforma em maconheiro. Assistir a um show de piadas e rir de tragédias e
situações surreais não destrói sua humanidade.
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