Mais do
que nunca é preciso integrar a fé cristã aos desafios globais de saúde mental
Por
Karen Bomilcar
Os
cuidados de saúde mental são uma das necessidades mais prementes em todos os
continentes, uma vez que ela interage com muitos aspectos do que nos torna
humanos e de como lidamos com os desafios da vida cotidiana.
Com o
aumento das demandas ambientais, sociais, políticas, profissionais, e de
questões espirituais, o número de pessoas que enfrentam problemas emocionais
tem crescido exponencialmente. Esses desafios naturalmente afetam a
espiritualidade de uma pessoa, bem como sua percepção acerca de si mesma e dos
outros. Os desafios da saúde mental são desafios humanos. Todos os seres
humanos experimentam certo grau de problemas de saúde em algum momento da vida.
Em algumas situações, a tensão da vida e, ou, o diagnóstico de distúrbios podem
levar alguns a recorrer a mecanismos ruins de enfrentamento, incluindo
adicções, automutilação e, às vezes, suicídio, na tentativa de acabar com o
sofrimento.
Os
desafios de saúde mental não discriminam por crença, nível de espiritualidade,
status educacional, cor da pele, status socioeconômico ou critérios
demográficos. Uma metanálise de 174 pesquisas, de 1980 a 2013, de 63 países,
revelou que, globalmente, cerca de um em cada cinco adultos experimentou uma
dificuldade de saúde mental no ano de 2013 e que 30% de todas as pessoas
sofrerão de um transtorno mental em algum momento de sua vida adulta.
Um
relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2022 sobre saúde mental no
trabalho estimou que globalmente 12 bilhões de dias de trabalho são perdidos
anualmente devido a faltas e afastamentos causados por depressão e ansiedade a
um custo de 1 trilhão de dólares. Dos indicadores revelados por estudos, temos
visto crescer o número de pessoas com diversos vícios (incluindo a dependência
tecnológica) que procuram os ambulatórios de saúde mental. Isso sem falar das
questões relacionadas à saúde mental não categorizadas como o controle, a busca
por poder, a amargura, a independência a qualquer custo, a demonização do
outro, a inveja, a hipocrisia, a indiferença, entre tantas outras que também
afetam a vida emocional, espiritual e relacional.
Após o
período da pandemia da Covid-19, surgiram outros desafios relacionados à saúde
mental. Tanto por conta dos lutos (seja por perdas relacionadas à morte como
por perdas simbólicas), quanto pelo isolamento social, pela desumanização
causada pelo excesso de vida digital etc. Possivelmente, a solidão é o motivo
de queixa que mais ouço em atendimentos psicológicos e aconselhamentos
pastorais. Ainda hoje há um número significativo de pessoas que por diversos
motivos não retornaram às atividades presenciais em suas comunidades, seja em
cultos públicos ou em círculos de amizades informais. Embora a igreja tenha
usufruído da oportunidade de alcançar pessoas, especialmente as novas gerações,
de forma expressiva no formato on-line através de suas mídias, isso não anula a
necessidade que as pessoas têm de caminhar de forma próxima e intergeracional,
para que possam amadurecer na fé e em suas emoções.
O
cuidado com a saúde em seu significado mais amplo, o shalom, é algo
fundamental. Isso estava no âmago do ministério de Jesus, conforme demonstrado
pela integração da pregação, ensino e discipulado, complementados por suas
obras de cura e libertação. Jesus praticou o cuidado da pessoa como um todo –
corpo, alma e espírito – na vida social dos indivíduos. E, ainda hoje, ele
convida seus discípulos a continuarem essa forma de ministério.
Infelizmente,
a cultura de separar a fé da vida, bem como de simplificar excessivamente
situações e fenômenos complexos, influenciou a forma como a igreja vive,
percebe e trata os desafios de saúde.
A
comunidade cristã ainda luta com o que diz respeito à área de saúde mental,
especialmente pela ausência de ensino na igreja sobre como abordar questões de
perdas cognitivas, adoecimentos psíquicos, transtornos de personalidade, e pela
estigmatização contínua daqueles que lutam com desequilíbrio emocional. Isso
tem um impacto direto sobre como a comunidade oferece apoio a pessoas que lutam
contra doenças mentais e suas famílias e amigos. Nesse sentido, a teologia deve
mover-se continuamente no caminho da integração interdisciplinar, considerando
essas vertentes como sistemas complementares com vistas ao ser humano na sua
totalidade.
No
contexto brasileiro e latino-americano, a igreja tem um papel fundamental nos
processos de prevenção e promoção de saúde emocional e espiritual. Seja através
das vivências das comunidades locais – que muitas vezes são os primeiros
espaços onde alguém busca ajuda – até o ensino sistemático e perseverante
através da Palavra e dos testemunhos de vida, que auxiliará na formação de
pessoas mais maduras que poderão ser sal e luz em todas as esferas da
sociedade, oferecendo sua vulnerabilidade e sabedoria para ajudar outras, mesmo
quando enfrentam desafios psicológicos e espirituais.
Iniciativas
úteis envolveriam profissionais de saúde e líderes cristãos dispostos a ensinar
e a apoiar os que sofrem e também a promover a saúde para toda a igreja,
ajudando-a a conscientizar-se das áreas afetadas pelo desequilíbrio e das ações
para preservá-la. A comunidade de fé como um espaço de conexão e caminhada em
parceria tem um potencial importante de saúde e cura em amplos sentidos.
Sabemos,
sim, que esse espaço também pode trazer mágoas, dores e desalentos. Nossos anos
de pandemia também foram anos nos quais os conflitos interpessoais se
acentuaram, por questões de ordem política, por exemplo. Ainda vivemos as
sequelas de relacionamentos desfeitos, de igrejas feridas etc. Precisamos
retornar nossos corações para a centralidade de Cristo, que nos ordena enxergar
nossos próximos como irmãos e praticar o amor, a fé e a esperança.
Identificação humana e mútua não pode ser negligenciada.
No
nosso continente, o vínculo relacional dentro das comunidades tem se mostrado
fundamental para o cuidado integral das pessoas, em especial dentro das
comunidades mais vulneráveis. É importante abrir as comunidades para conversas,
palestras, aconselhamento em grupo e individual, e para oferecer recursos,
diminuir o estigma e criar uma rede saudável de cuidados para aqueles que
enfrentam desafios de saúde mental.
A
compreensão mais ampla favorece o envolvimento de cristãos em diferentes áreas
do conhecimento com o objetivo de melhorar a saúde da comunidade. Não se trata
de substituir o papel das instituições governamentais centrado no cuidado, nem
descaracterizar o papel da igreja em sua espiritualidade, dimensão
transcendente, de adoração e comunhão. Ao contrário, trata-se de cuidar do
processo de conversão e amadurecimento espiritual e ser sensível à necessidade
de convocar parceiros de outras esferas da sociedade no cuidado, quando necessário.
Deus nos concedeu conhecimento e discernimento e devemos colocá-los a serviço
da comunidade de fé, bem como da sociedade.
Karen
Bomilcar é psicóloga e teóloga em São Paulo, SP, e mobilizadora da rede “Saúde
para todas as nações”, do Movimento Lausanne.
Artigo
originalmente publicado na edição 403 de Ultimato.
Sem comentários:
Enviar um comentário