A
Revolta dos Malês 11ª.Parte
Por
Jeanne Abi-Ramia
Organizada
por africanos escravos e libertos, a Revolta dos Malês deixou Salvador frente a
frente com o Islã.
“O
vulcão da anarquia”: as preocupações de Feijó
A
Revolta dos Malês ocorreu em Salvador, em 1835, quando o Brasil era governado
por Diogo Antônio Feijó. Regente entre 1835 e 1837, administrou o Império
enquanto o príncipe herdeiro D. Pedro de Alcântara não atingia a maioridade.
Desde a Abdicação de D. Pedro I, acontecida no dia 7 de abril de 1831, o Brasil
atravessou um período marcado por inúmeras crises políticas e econômicas. O
gesto do primeiro imperador provocou um vazio político no país, acirrando as
disputas pelo poder.
O
período conturbado revelou outros problemas, entre eles o agravamento da
situação econômica resultante de um quadro em que o país, perdendo os espaços
na concorrência por mercados econômicos, aumentava a dependência das potências
estrangeiras. As expectativas quanto ao futuro eram difusas e nubladas. Mesmo
diante de tanta instabilidade, a época assistiu à expansão da cultura cafeeira
na região do Vale do Paraíba e o aparecimento dos chamados “barões do café”.
No
contexto em que as atividades agrícolas ocuparam a cena principal, era
fundamental, especialmente para as autoridades e para os grandes proprietários,
manter a escravidão e o tráfico negreiro, apesar da pressão internacional como
aquela promovida pelos ingleses. Registra o historiador Marcus Rediker, o
“grandioso drama do comércio humano”, pois a maioria esmagadora das pessoas
trazidas da África para os diversos cantos do mundo, “foram tragadas pelo
turbilhão em movimento, surreal, do tráfico”.
A esse
quadro somavam-se os anseios das camadas populares por melhores condições de
vida, e das camadas médias, que almejavam maior participação política. A junção
de tantas circunstâncias favoreceu o surgimento de contestações espalhadas pelo
país, sempre esmagadas com rigor pelas forças governistas. As autoridades
constituídas interpretavam que a eclosão de revoltas ameaçava a ordem e a
unidade territorial do jovem Império. Ensina o historiador Ilmar Rohloff de
Mattos que “esses conflitos representavam também o protesto contra a
centralização do governo em torno das províncias do Rio de Janeiro, de São
Paulo e Minas Gerais”.
As
reivindicações populares avolumadas desdobravam-se em contendas espalhadas por
diversas regiões do Brasil. Entendia o regente Feijó ser preciso conter “o
vulcão da anarquia que ameaçava devorar o império”. Eram tempos complexos, em
que a urgência de ações frequentemente mostrava sua face.
No
intrincado quadro envolvendo situações econômicas, políticas e sociais, que
tanto preocuparam o padre Feijó, a mobilização malê, contudo, não deve ser
classificada como mais um movimento daquela época. Mesmo estando inserida no
conjunto de dezenas de revoltas escravas tradicionais, ocorridas na Bahia,
durante a primeira metade do século XIX, apresentava aspectos particulares. Foi
a mais grave, a derradeira e ousada, por ter acontecido no âmago de uma
importante cidade do Império: Salvador. Além dessas singularidades,
distingue-se das demais pelo envolvimento predominante de africanos e de
africanas que professavam a religião muçulmana.
“O
sonho da Bahia muçulmana”
A frase
do historiador João José Reis aponta intenções ao referir-se especificamente a
um movimento conduzido predominantemente por africanos escravos e libertos na
Bahia, durante o governo do regente padre Diogo Antonio Feijó. Conflitos
semelhantes aconteceram naquela província nas décadas iniciais do século XIX.
Porém, o que é entendido por estudiosos como o mais significativo foi o dos
Malês, que se espalhou rapidamente por Salvador, no alvorecer do dia 25 de
janeiro de 1835. Seus participantes, mesmo que por apenas poucas horas,
tornaram-se “senhores das ruas” da cidade.
Malê
deriva da expressão imalê, que em iorubá designa negros muçulmanos, que sabiam
ler, escrever e falar o árabe, língua desconhecida no Brasil – embora não seja
possível precisar o número dos participantes que dominavam tal conhecimento
quando a revolta eclodiu. A escrita em árabe, no entendimento da historiadora
Luciana da Cruz Brito, ocupa “lugar central na interpretação do levante”.
Naquela época, a religião muçulmana, em um país extremamente católico, expandia-se
entre os africanos que viviam na Bahia, e seus devotos deveriam ler o Alcorão.
Inúmeros
historiadores não afirmam, com precisão, o que os participantes pretendiam se
fossem vitoriosos. Admitem que eram motivados por razões heterogêneas. Entre
elas, estavam as lutas contra a escravidão (e suas formas de expressão) e
contra a imposição da religião católica de Roma, bem diversa daquela que a
maioria dos envolvidos professava: a muçulmana.
Entretanto,
acredita João José Reis que de “toda a maneira, não foi um levante sem direção,
um espasmo social produto do desespero, mas um movimento dirigido à tomada do
poder”. Mesmo sem ter detalhes, é certo “que a Bahia malê seria uma nação
controlada pelos africanos, tendo à frente os muçulmanos”.
Salvador:
uma “capital africana”?
Documentos
informam que a maioria esmagadora dos envolvidos na Revolta dos Malês, que
tomaram as ruas e as vielas de Salvador, era constituída por africanos escravos
ou livres. A cidade nesse período, segundo a historiadora Luciana da Cruz
Brito, chegou a ser comparada a uma “capital africana” devido à presença
cotidiana e marcante de africanos. Vale observar que historiadores registram
também a presença no movimento, embora em número bastante reduzido, de homens
brancos livres, pobres, mulatos, mestiços, pardos e negros forros nascidos no
Brasil.
Fontes
indicam que, naquela época, a capital da província da Bahia possuía em torno de
65 mil habitantes, dos quais aproximadamente 40% eram cativos. Por outro lado,
a maioria não escrava era composta por africanos e seus descendentes (pardos e
mulatos). Considera o historiador João José Reis que, somando “os negros e
mestiços escravos e livres, os afrodescendentes representavam 78% da população.
Os brancos não passavam de 22%. Entre os escravos, a grande maioria (63%) era
nascida na África, chegando a 80% na região dos engenhos de açúcar localizados
no Recôncavo”.
Negros
libertos, nas sociedades hierarquizadas escravistas, eram vistos com
desconfiança e pouca aceitação. Assim, enquanto minoria necessitava conservar
boas relações com os “brancos”. Para tal respeitavam e obedeciam as práticas
codificadas de subserviência. Também se filiavam às ordens religiosas induzindo
o pensamento à aceitação dos valores cristãos. Eram caminhos que utilizavam para
se distanciarem de conflitos que envolvessem a justiça ou as autoridades
policiais.
Porém,
tais estratégias nem sempre garantiam algum tipo de ascensão social e muito
menos asseguravam a posse de bens que, muito eventualmente, tivessem adquirido.
Diante de tal situação, os “libertos” na Bahia oitocentista procuravam deixar
testamentos objetivando garantir, no post-mortem, que seus recursos fossem
repassados para herdeiros, legítimos ou não. Para a historiadora Mary Karash, o
escravo, mesmo “liberto, carregava pesado estigma, que o marcava até a morte,
principalmente se fosse africano”. Tal estigma era uma forma de recordá-los de
que não seriam cidadãos plenos como os “brancos”. Os africanos libertos eram
sempre associados com a escravidão e, além disso, vistos como estrangeiros.
Tinham “direitos políticos e de cidadania mais restritos que os libertos
nascidos no Brasil”, informa a historiadora Maria Inês Côrtes de Oliveira.
Contudo,
sob a perspectiva do Estado, e a imprensa da época em que a Revolta dos Malês
aconteceu reforçava a ideia, existia um paradoxo quanto à presença dos
africanos livres ou libertos nas diversas províncias do Brasil imperial. Se
percebidos pelas classes dominantes sob a crença da periculosidade e sob a
sombra do medo que inspiravam, eram indesejáveis. Mas tolerados, se observados
quanto à importância econômica e à força de trabalho escravo, não remunerado,
que reconhecidamente possuíam.
As
autoridades imperiais chegaram inclusive a admitir que essa fatia da população precisasse
de um “código de leis específico, mais rígido, que correspondesse à necessidade
de segurança desta sociedade, que acreditava estar ameaçada por estes negros
‘estrangeiros’”, segundo registra a historiadora Luciana da Cruz Brito.
Para o
professor Rainer Sousa, a Revolta dos Malês pode ser entendida “como um
conflito que deflagrou oposição contra duas práticas comuns herdadas do sistema
colonial português: a escravidão e a intolerância religiosa”. A esses dois
aspectos João José Reis acrescenta a questão da etnia.
“Viva
nagô, morra branco”- a questão da etnia...
Quanto
a etnia, a grande maioria dos envolvidos na Revolta dos Malês, incluindo a
liderança do movimento, tinha origem iorubana (grupo étnico-linguístico
africano), sendo majoritariamente nagôs.
A superioridade
numérica dos nagôs acabou transformando a língua que falavam naquela utilizada
frequentemente pelos negros escravos e libertos, das diferentes etnias. Segundo
o sociólogo José Reginaldo Prandi, era a “língua geral de comunicação dos
africanos de todas as origens que viviam em Salvador pelo menos no século XIX”.
Aliás,
falar a mesma língua, para a historiadora Maria Inês Cortês de Oliveira,
representou um papel importante “na reconstrução das identidades de ‘nação’ e
na realização das alianças interétnicas na Bahia”. Observa, ainda, que nem
todos os grupos que “podiam se comunicar fundiram-se ou aliaram-se. Todavia, os
que o fizeram tiveram na língua um dos fatores mais importantes do processo de
identificação, que possibilitava a ultrapassagem dos limites de adscrição
étnica e permitia que as ‘nações’ africanas na Bahia se reconstruíssem sobre
novas bases”.
Muçulmano
de etnia mandinga (Fonte: P. David Boilat/ As imagens. Olhares sobre o tráfico
e a escravidão/UFPR)
Minoritariamente,
também participaram do movimento: os haussas (originários principalmente do
norte da Nigéria e do sudeste do Niger) e outros grupos étnicos provenientes de
Angola ou da Costa do Ouro (região atualmente pertencente a Gana). Para o
historiador João José Reis, em termos quantitativos, justifica-se a
“participação discreta daqueles haussas”, que já haviam protagonizados
movimentos como o que ocorrera em fevereiro de 1814 em Salvador. Apesar de
muitos serem adeptos do Islã, entendiam que tal condição não era suficiente a ponto
de justificar uma união com os nagôs com os quais tinham diferenças,
possivelmente não esquecidas, desde a África. Além disso, a maioria tinha “a
essa altura deposto suas armas”.
Então,
mesmo sendo entendido como um movimento multiétnico, foi liderado por africanos
nagôs. Segundo historiadores, o grito ouvido, como protesto no desenrolar dos
fatos, “viva nagô, morra branco”, conduz a tal entendimento.
Religião
e escravidão -
Naquela
época, e é importante registrar, não existiam bem definidas uma identidade
étnica e outra religiosa entre os africanos que viviam no Brasil. Porém,
particularmente na Bahia, o islamismo estava mais difundido em determinadas
etnias, como a dos os nagôs e a dos haussas.
Analisando
o movimento, sobre o prisma religioso e investigando documentos oficiais da
época, há indícios de que os envolvidos na Revolta dos Malês buscavam proteção
da sua crença no dia a dia e, por isso, se insurgiram. A presença da questão
religiosa apresenta-se por meio do nome da revolta. Afinal, malê era como os
negros mulçumanos eram chamados na Bahia.
Entretanto,
nos incontáveis interrogatórios, assentados em extensa documentação oficial que
reúne manuscritos e impressos referentes à “insurreição de escravos malês”
custodiados pela Fundação Pedro Calmon (Salvador), faltam pistas que
caracterizem o movimento posicionado contra o cristianismo, contra os cultos de
outras etnias africanas ou objetivando o estabelecimento da religião muçulmana.
Diversos
pesquisadores, examinando registros governamentais frequentemente produzidos
sob tortura ou sob pressão policial, consideram inexistir tal indicativo.
Observam que os prisioneiros nas inquirições não transitaram pelo viés de
“guerra religiosa”. A participação de africanos não muçulmanos é mais um dado
que pode conduzir à interpretação de que a revolta não era estritamente
religiosa.
Contudo,
tal linha de pesquisa não é unânime. Nesse sentido, outra opinião consta no
primeiro texto de que se tem notícia sobre a Revolta dos Malês, publicado, no
ano de 1907, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, pelo
religioso Etienne Ignace. Citado pela historiadora Priscilla Leal Mello, o
padre Ignace demarca o seu entendimento dos fatos quando registra que o
movimento não possuía "tão somente um caráter político e social; não era
um esforço para a conquista da liberdade; revisita, ao contrário, um caráter
sobremaneira religioso: era, em uma palavra, uma guerra santa”.
Além da
questão da etnia e da religiosidade, as consultas nos mais de seis mil
documentos processuais judiciais e policiais indicam que os envolvidos em
declarações tratam de outro importante aspecto. Referem-se à situação
degradante em que viviam, ao sentimento negativo dirigido a inúmeros “brancos e
mestiços”, ao fato de não terem direito algum e ao desejo de não serem mais
escravos. Novamente vale ressaltar que a maioria dos implicados, na qual se
incluiu preponderantemente a liderança malê, era de indivíduos escravizados.
Então, apesar de, nas inúmeras consultas realizadas na documentação produzida
pelas autoridades policiais não ficarem definidas as exatas intenções dos
participantes, é possível deduzir, diante da situação do cativeiro, que
intencionavam por meio do movimento alcançar a liberdade.
Nessa
direção, o historiador João José Reis considera que a revolta “teria tido
também uma orientação de classe por ter sido feita e dirigida majoritariamente
por escravos e porque a linguagem antissenhorial dos presos revela sua face
antiescravista. Foi também assim considerada pelo Estado escravocrata, que
definiu, reprimiu e castigou os rebeldes, acionando uma linguagem e uma
legislação especificamente antiescrava”.
Os
“escravos de ganho”
Observando
a condição social e de trabalho dos envolvidos no movimento dos malês,
percebe-se que a maior parte era composta por africanos escravizados, embora existissem
também libertos. Dos libertos, uns poucos detinham melhor condição financeira,
diferenciando-se dos demais. Mas, como um todo, pertenciam ao que historiadores
nomeiam como “os miseráveis da sociedade”.
No
compasso do crescimento das cidades, especialmente as litorâneas, no alvorecer
do século XIX avolumou-se o mercado de serviços urbanos em que os escravos
também eram ocupados. Isso significava mais uma forma de espoliação das suas
capacidades e aptidões. Cultivavam gêneros e atuavam como pequenos mercadores;
podiam ser pescadores, marinheiros ou estivadores. Prestavam serviços públicos
e produziam algum artesanato. Recebiam pagamento em espécie, destinado ao
senhor, no todo ou na maior parte. Eram os chamados “escravos de ganho” (ou
“negros de ganho”) que, de algum modo, mesmo tratados sem nenhuma distinção,
possuíam a inegável liberdade de circular por Salvador, onde tinham forte
presença. Essa oportunidade de movimentação favorecia contatos possibilitando o
surgimento de revoltas. Após acumularem poucos rendimentos, que os senhores
eventualmente lhes deixavam, alguns conseguiam comprar suas alforrias. Mas,
quando isso acontecia, era o resultado de longos anos de trabalho duro e
extenuante.
Os
“escravos de ganho” espalharam-se pelas freguesias da cidade morando ou não nas
casas senhoriais e, muitas vezes, sob o mesmo teto. Naquela época, a capital da
província da Bahia se caracterizava pela ausência de áreas residenciais
privativas a determinados segmentos sociais. O fato de muitos dos que compunham
a população de africanos e africanas residirem no mesmo espaço ou próximos
estabeleceu um conjunto de relações de vizinhança e de solidariedade. Tal
proximidade favoreceu o surgimento de laços que, vez ou outra, se desdobraram
em ações de cooperação ou até mesmo de discórdia.
O entra
e sai de conhecidos ou de “parentes de nação” (uma espécie de família
simbólica, já que a de origem fora desfeita pelo tráfico intercontinental de
escravos) acontecia diuturnamente nessas moradias. Tal movimentação, que antes
quase não chamava a atenção, passou a ser observada e acompanhada, com especial
cautela, pelas autoridades – especialmente após a Revolta dos Malês.
Num dia
santo ou festivo.
Em
geral, segundo o historiador Sérgio Figueiredo Ferretti, as revoltas de escravos
que ocorreram na Bahia na primeira metade do século XIX eram arquitetadas,
intencionalmente, para acontecer “num dia santo importante, como o Natal, a
festa do Bonfim, a procissão de Corpus Christi ou as festas juninas, em que a
cidade estivesse relativamente deserta e a população concentrada no lugar
principal da festa. (...) Os levantes na cidade visavam conseguir armas e
munições, atacar guarnições policiais menores com o mesmo fim e libertar outros
escravos presos ou em depósito, e contar com o apoio de escravos urbanos.
Visavam igualmente apoderar-se de embarcações para retornar à África ou mesmo
matar os brancos para dominar o local, aclamando chefes negros”.
O
movimento malê foi desenhado para eclodir na madrugada do dia 25 de janeiro de
1835, domingo, quando na região do Bonfim, em Salvador, aconteceria uma festa
católica celebrando Nossa Senhora da Guia. Romperia quando os escravos urbanos
saíssem para cumprir tarefas cotidianas como buscar água nos chafarizes.
Segundo registros escritos em árabe, encontrados e traduzidos, o planejamento
incluía provocar, em diversos pontos da cidade, incêndios simultâneos que
distraíssem a atenção das autoridades.
Contudo
havia tensões e conflitos entre a população africana escravizada ou liberta.
Documentos policiais da época informam casos de disputas entre parceiros e
vizinhos. Delações, aos senhores ou às autoridades governamentais, aconteciam.
Os autos da devassa (produzidos no decorrer do processo judicial) registram que
na véspera do dia 25 informações sob a trama foram reveladas a um juiz de paz,
acredita-se que por escravas libertas. A partir daí, precipitaram-se os
acontecimentos.
O
presidente da província, Francisco de Sousa Martins, alertado, tomou
providências mobilizando as forças policiais, que iniciaram buscas. Guardas
circularam pela cidade. Suspeitaram de uma casa onde, efetivamente, se reuniam
participantes da revolta. Ao invadirem a moradia, foram surpreendidos com a
imediata ação daqueles que, atacados, reagiram portando facas, facões e algumas
armas de fogo. Apesar das informações e dos dados oriundos dos setores que
comandaram a repressão não serem coesos, fontes avaliam que desse enfrentamento
inicial resultaram mortos e feridos.
Relatos
esclarecem que o caos se espalhou por Salvador. A Câmara Municipal foi atacada.
Os revoltosos, segundo o historiador Ilmar Rohloff de Mattos, “liderados pelos
muçulmanos Manuel Calafate, Aprígio, Pai Inácio, dentre outros” pretendiam
tomar a prisão existente no subsolo daquele prédio público. Intencionavam
libertar “um dos líderes malês mais estimados, o idoso Pacifico Licutan, cujo
nome muçulmano era Bilal”, segundo registra o historiador João José Reis. Tal
investida não alcançou o sucesso pretendido; os carcereiros e a guarda do
palácio do governo (localizado na proximidade) responderam com violência.
O
movimento seguiu em frente. Alastrou-se pelas ruas da cidade e seus
participantes prosseguiram enfrentando as forças policiais. Com a manhã já avançada,
outros envolvidos rumaram no sentido da região da Água de Meninos (bairro
histórico de Salvador, localizado entre o Pilar e São Joaquim, dentro da Baía
de Todos os Santos), onde havia um quartel de cavalaria. Combates renhidos e
decisivos aconteceram, com a vitória pendendo para o corpo oficial – mais
numeroso, bem armado, e que contara com o reforço de outras guarnições.
As
tropas igualmente contiveram ataques de alguns integrantes da revolta, que
fugiram pelo Recôncavo Baiano (região geograficamente situada em torno da Baía
de Todos os Santos), onde se localizava parte importante dos engenhos que
utilizavam a mão de obra escrava. Acabaram massacrados pelas fileiras da Guarda
Nacional, pela polícia e por civis armados que estavam apavorados ante a possibilidade
do sucesso da revolta negra.
A
repressão, as prisões e as sentenças
A
partir daí, a repressão avançou vasculhando moradias. O resultado foi a
apreensão de vestimentas (túnicas brancas) e escritos (fragmentos de orações).
Foram recolhidos objetos como tábuas para ensinar a ler e a escrever em árabe,
pequenas bolsas feitas em couro contendo frases do Alcorão e usadas como
proteção contra “todos os perigos”. Tais descobertas incriminaram seus
proprietários, provocando detenções de centenas de escravos e libertos no Forte
de São Marcelo (conhecido como Forte do Mar). Os aprisionados foram conduzidos
posteriormente aos tribunais onde aconteceram os julgamentos e as sentenças.
Cálculos
efetivados por estudiosos do tema, apoiados em documentos oficiais, estimam que
estiveram envolvidos no conflito de 600 até 1500 africanos. Contudo, é
necessário pontuar que do total dos africanos muçulmanos que viviam na Bahia
naquela época, nem todos participaram do movimento. Entretanto, as autoridades
constituídas poucas vezes fizeram tal distinção.
Interligada
à complexidade da situação, destaca-se a questão da língua árabe, geralmente
desconhecida pelas autoridades estabelecidas e pela população. Nos autos do
processo, muitos dos suspeitos e dos aprisionados, possivelmente tentando
escapar das acusações e das penas que aconteceriam (e aconteceram), ou
desejando ocultar os planos da revolta, negavam saber ler e escrever em árabe.
Assim, os inquisidores tinham enormes dificuldades na tradução dos papéis ou
dos depoimentos que seriam provas de incriminação dos envolvidos. A transcrição
do que era declarado pelos envolvidos, incontáveis vezes, podia ser uma
aproximação do que fora realmente dito; ou do que o escrivão policial entendera
ou pensara que entendera.
Frequentemente,
sem prova definitiva, inúmeros foram presos, julgados e sentenciados. Muitos
foram mortos e outros deportados. Torturas também foram aplicadas, como
condenação, especialmente aos libertos, já que os cativos permaneciam com as
suas atribuições na sociedade hierarquizada e escravista daquela época. Apesar
de massacrada e da breve duração, a Revolta dos Malês demonstrou às autoridades
e às elites o potencial de contestação e rebelião que envolvia a manutenção do
regime escravocrata. Essa ameaça esteve sempre presente durante todo o Período
Regencial e se estendeu pelo governo pessoal de D. Pedro II.
Breve
duração e longa repercussão
Se a
breve duração do movimento malê, ocorrido em poucas horas do dia 25 de janeiro
de 1835, é um lado da questão, o outro envolve a repercussão que ganhou
adiante. A presença de escravos nas cidades do Império (e na Corte) sempre
inquietou a população “branca”. Ainda mais quando notícias de insurreições
negras (reais ou imaginárias) chegavam de pontos do Império, como essa revolta
urbana de 1835. Outra imensa preocupação era a difusão do “haitianismo”,
movimento iniciado em 1790 por escravos e que culminou com a independência do
Haiti, em 1804.
Medos,
receios e intranquilidades passeavam pelos quatro cantos do Império brasileiro,
passando a compor o dia a dia das “pessoas de bem”, observa o historiador Ilmar
Rohloff de Mattos. Exemplo disso pode ser notado pelo edital da Câmara
Municipal do Rio de Janeiro, de 1831, determinando que: "os escravos que
forem encontrados fazendo desordens serão conduzidos ao calabouço, dando-se
imediatamente parte aos senhores para estes mandarem dar nos motores cem
açoites, conforme a lei, e, se recusarem a fazê-lo, sofrerão a multa de 30$000
e 8 dias de pena, bem como os senhores que deixarem de castigá-los”.
No caso
da Revolta dos Malês, que deixou a cidade de Salvador em pânico por várias
horas, após o movimento ter sido sufocado pelas autoridades responsáveis os
participantes que sobreviveram foram aprisionados. Porém, mesmo depois das sentenças,
envolvendo penas como açoite e degredo, significativos desdobramentos
prosseguiram ao longo do tempo.
Segundo
a historiadora Luciana da Cruz Brito, espalhou-se um sentimento antiescravista
pela Bahia. Viver naquela província “após 1835 tornou-se uma tarefa ainda mais
difícil para os africanos”. Isso porque eles foram considerados responsáveis
pelo movimento malê e vistos pelas autoridades imperiais constituídas “como
inimigos da nação, da civilidade e da segurança”.
Até
mesmo para os proprietários de escravos e de terras, interessados na manutenção
do sistema vigente, inúmeros receios ocuparam seus pensamentos, resultando em
leis que objetivaram responder à demanda de controle e de repressão da
população africana.
O clima
antiafricano, após o movimento malê, alcançou tamanha gravidade que, no dia 30
de abril de 1835, um deputado apresentou à Assembleia Legislativa da província
da Bahia uma proposta sugerindo que “o governo provincial expulsasse para fora
do Império, com maior brevidade possível, e ainda à custa da Fazenda Pública,
os africanos forros de um e outro sexo, que se fizerem suspeitos de promover a
insurreição de escravos”. É importante observar que, ainda segundo a
historiadora Luciana da Cruz Brito, a intenção de “deportar os africanos, naquele
momento, não viria associada a nenhuma intenção de abolição da escravidão,
sobretudo imediata ou incondicional”.
As
apreensões e os temores de que outros levantes dessa natureza se alastrassem
pelas províncias fez com que as autoridades tomassem medidas e atitudes que
impediram outras revoltas.
Na
capital do Império, por exemplo, africanos libertos oriundos da Bahia não eram
bem-vindos e estavam proibidos de desembarcar na cidade; sobretudo após a
revolta de 1835.
Aqueles
que já viviam na região voltam e meiam sofriam perseguições por parte da força
policial. A grande preocupação era quanto à proliferação de reuniões que
poderiam se desdobrar em outras tantas revoltas. Nesse contexto, onde a tensão
e a desconfiança dialogavam latentes, domicílios eram invadidos, festas e
encontros religiosos proibidos “quase sempre pressentidos com horror pelos
senhores”, segundo a historiadora Mary C. Karasch.
Diante
dos levantes de escravos ocorridos no Império na primeira metade do século XIX,
como o malê, não se pode concordar, segundo o historiador Sérgio Figueiredo
Ferretti, “com os defensores do mito da democracia racial” e nem com a ideia da
“benignidade da escravidão brasileira”.
Mãos
letradas: saberes e liberdade enquanto projeto
Ainda
sem resposta, uma questão se apresenta: como esses escravos envolvidos no
movimento malê chegaram a Salvador, já que pesquisas indicam que, segundo o
livro sagrado do Alcorão, não era permitida a escravidão de um muçulmano.
Historiadores, a partir desse preceito, se interrogam, indo além: de que forma
iniciados na religião foram negociados como cativos para o Brasil, por exemplo?
Teorias consideram que talvez não fossem escravos na região de onde vieram.
Teriam, sim, sido capturados por portugueses ou por espanhóis que traficavam,
comercializando esse tipo de “mercadoria”.
De todo
o modo, estudiosos que se aprofundam nos fatos que envolveram, por exemplo, a
Revolta dos Malês, entendem que é simplificar em demasia observar que a África
trouxe para as terras americanas apenas, e tão somente, a força de trabalho
escravo que abasteceu as propriedades agrícolas, além das incontáveis tarefas
no mundo urbano.
Segundo
a historiadora Priscilla Leal Mello, aquele continente trouxe “mãos letradas na
linguagem poética e abstrata do árabe. Não trouxe apenar saberes orais. Trouxe
saberes escritos em uma língua de sofisticado alfabeto que, na época, a quase
ninguém era cabível decifrar. Não trouxe conhecimento apenas de conteúdo
prático. (...) Não trouxe mentes vazias que precisassem aprender na América
escravista, e somente aqui, o sentido de liberdade. Trouxe esse sentimento de
liberdade (e de escravidão) não somente de sua própria experiência, mas também
de suas reflexões mentais mais profundas”.
Bem
mais importante do que analisar o fato desses africanos serem letrados é
entender e refletir sobre o uso político que fizeram com tal aprendizado ao se
rebelarem, como fizeram os malês. Quando esses protagonistas, reunidos no
interior de casebres espalhados pelas ruas e vielas de Salvador, planejaram
ações que aconteceriam em janeiro de 1835, saíram da sombra. Anônimos,
pretenderam deixar claro as suas trajetórias.
Lutaram
desejando preservar, nas palavras da historiadora Maria Inês Cortes de
Oliveira, as “raízes longínquas de suas culturas. Sua vitória pode ser
comprovada por tudo aquilo que conseguiram fazer chegar até nós. A Bahia,
melhor do que ninguém, é testemunha desse fato”.
Histórias
recontadas e caminhos cruzados
“Quando
não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vens”. O
provérbio africano que transita pela memória coletiva da história
afro-brasileira, retoma a trajetória de duas personagens interligadas por laços
familiares. De forma particular e singular, ambas marcaram a presença das
populações negras, mesmo que no caso de uma delas não se tenha a certeza da
existência. Trata-se de Luisa Mahin, que teria vindo para o Brasil como escrava
e a quem se atribui um importante papel no movimento malê. Diversos
pesquisadores avaliam ser uma figura idealizada, um arquétipo construído, hoje
reverenciado como símbolo da luta da mulher negra por diversos setores da
sociedade brasileira.
Luiza
Mahin entrou para a História por meio de relatos do seu filho, reconhecido como
um dos precursores do movimento abolicionista no Brasil, o poeta Luiz Gama,
nascido em Salvador no dia 21 de junho de 1830. Mesmo sem contar com
documentação ou registros materiais que possam comprovar efetivamente a sua
existência, de acordo com a historiadora Aline Najara da Silva Gonçalves, Gama revelou
o “nome da mãe em uma carta autobiográfica enviada em 1880 ao amigo Lucio de
Mendonça e, antes disso, dedicou-lhe os versos do poema Minha Mãe, escrito em
1861”. Alguns estudiosos alegam que Luiza teria sido uma criação literária do
escritor. De todo o modo, ficção ou não, alimentou o desenvolvimento do mito.
No
documento, escrito para Mendonça dois anos antes da sua morte em São Paulo,
informa ser filho natural “de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de
Nação) de nome Luiza Mahin, pagã que sempre recusou o batismo e a doutrina
cristã. (...) Dava-se ao comércio – era quitandeira muito laboriosa e, mais de
uma vez, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de
escravos que não tiveram efeito”. Conduzida pelos caminhos da fantasia ou da
realidade por Luiz Gama, Luiza Mahin alcança a cena principal do movimento dos
malês.
Evidentemente
não é possível, para os que não viveram os mesmos tempos, resgatar com precisão
os pensamentos mais profundos daqueles protagonistas diante da escravidão. A
violência e o terror impostos aos africanos foram cruciais na própria formação
da economia atlântica e de seus múltiplos sistemas de trabalho, no decorrer do
tempo em que a escravidão vigorou mundo afora.
Segundo
palavras dos historiadores João José Reis e Elciene Azevedo, as histórias de
liberdade vivenciadas nos tempos em que existiu o cativeiro “pertencem ao
território das sombras“. Mas não para sempre. Afinal o sempre é todo o dia?
Resgatar
tantas memórias, trazendo-as para a cena principal, é considerar que a
resistência fez parte do cotidiano dos envolvidos e que a concepção de
liberdade, para eles, não representava uma idealização afastada do tangível:
era um projeto e um objetivo a serem alcançados. E o legado permanecerá vivo
toda a vez que alguém escrever sobre o assunto, buscando despertar o interesse
e a reflexão sobre a Revolta dos Malês.
Jeanne
Abi-Ramia é professora de História e consultora da série de TV O Mochileiro do
Futuro.
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