A expansão árabe na África e os Impérios Negros de
Gana, Mali e Songai (sécs. VII-XVI)
Ricardo da COSTA
I. A expansão militar islâmica
Existem muitos fatores que contribuíram para a
incrível expansão árabe do século VII que partiu da Península Arábica em
direção ao Magreb – que quer dizer “ocidente” em árabe. A baixa produtividade
do solo da Península e o desejo de ter uma terra cultivável, somado a uma
população em crescimento; o enfraquecimentos dos reinos de Bizâncio e da
Pérsia, que se encontravam devastados pelas guerras e tinham suas províncias em
franco processo de declínio (o imperador bizantino Heráclio [610-641] assistiu
impotente à perda das províncias que havia recentemente conquistado) (ANGOLD,
2002: 50); possíveis afinidades inter-étnicas (a Síria e a Mesopotâmia tinham
tribos árabes), e até o uso de camelos nas batalhas em campo aberto por parte
dos exércitos muçulmanos (HOURANI, 1994: 40).
Tudo isso pode ter contribuído para as sucessivas,
rápidas e espantosas vitórias da espada do Islã, mas definitivamente o motivo
maior e mais poderoso nas mentes de então foi a unidade política e
principalmente espiritual promovida e realizada por Maomé (570-632).
Logo após a morte do Profeta, em 634 a Península
arábica foi definitivamente unificada e os primeiros exércitos islâmicos foram
enviados para o exterior. Seus sucessores, os primeiros califas rashidun(os
“califas corretamente orientados”) (HOURANI, 1994: 459) – a palavra califa
significa “representante” – foram os líderes militares que organizaram as bases
pelas quais o império pôde crescer.
As tropas árabes que realizaram essa expansão tanto
para o leste quanto para o oeste eram disciplinadas e coesas. Definitivamente
não eram bárbaras. Conta a tradição que Abu Bakr (623-624), o primeiro califa,
sogro de Maomé, teria dito às suas tropas:
Sede justos, sede valentes; morrei antes de
render-vos; sede piedosos; não mateis nem velhos, nem mulheres, nem crianças;
não destruais árvores frutíferas, cereais ou gado. Mantende vossa palavra,
mesmo aos vossos inimigos; não molesteis as pessoas religiosas que vivem
retiradas do mundo, mas compeli o resto do mundo a se tornar muçulmano ou nos pagar
tributo. Se eles recusarem estes termos, matai-os.
(citado em DURANT, s/d: 171).
Assim, enquanto Khalid ibn al-Walid, general
supremo de Abu Bakr, conquistava o Iraque e Damasco ao norte, o comandante Amr
ibn al-As, outro recém-convertido e veterano das guerras sírias, partiu de
Gaza, tomou Pelúsio, Mênfis e, finalmente, Alexandria, após um sítio de vinte e
três meses, em 641. O trigo do Egito era muito necessário para Medina, e o
porto de Alexandria oferecia um ponto seguro para a expansão marítima islâmica
(PREVITÉ-ORTON, 1976: 337).
Os cristãos monofisistas do Egito (que acreditavam
em uma só natureza do Cristo), cansados das perseguições religiosas de
Bizâncio, receberam os muçulmanos de braços abertos – de maneira semelhante
como as comunidades judaicas na Península Ibérica fariam em 711. A propósito, a
estória que Amr ibn al-As teria ordenado a destruição da Biblioteca de
Alexandria é considerada hoje uma versão completamente destituída de fundamento
(LEWIS, 1990: 63).
Amr administrou muito bem o Egito. Apesar de ter
governado com base em duros tributos cobrados da população local, ele reparou
canais e, a partir de seu acampamento, construiu em 642 uma nova capital, de
nome al-Fustat (que significa “a tenda”): mais tarde ela se chamaria Cairo.
De posse desse novo potentado, e preocupados com um
possível ataque bizantino vindo do ocidente, a partir de 647 os muçulmanos
decidiram prosseguir em seu assalto ao norte da África. Seguindo a costa
africana, partiram então para o oeste, liderados por Ibn Sad, emir do Egito. Um
poderoso e organizado exército marchou através do deserto até a cidade de Barka
(Barca, atualmente na Líbia), tomando-a de assalto em 643-644. Dali avançou
praticamente sem nenhuma resistência até as proximidades de Cartago, já na Tripolitânia.
Ao sul da Túnis moderna (na Tunísia), o comandante
Okba ibn Nafi construiu um acampamento na areia, em 670, fundando assim uma das
maiores cidades do Islã bem no coração da África romana, Kairuan (Karouan ou
Cairuão) – o “lugar do descanso”, para sustar as contra-ofensivas dos
bizantinos (observe a característica do surgimento da cidade islâmica nessa
expansão militar: ela, via de regra, teve origem em um acampamento militar).
Esse avanço até a Tripolitânia e a fundação de Kairuan foram muito importantes
para a expansão do Islã. Dali, Okba fez incursões e massacres contra as tribos
berberes, que se refugiaram nas montanhas do Atlas.
Os berberes eram tribos nativas que viviam
espalhadas por toda a África do Norte. Segundo o cronista muçulmano Ibn Khaldun
(c. 1332-1395), os berberes eram quase totalmente nômades,
...gentes que vivem em tendas e que viajam no lombo
do camelo, e se instalam nas alturas das montanhas (...) No deserto, a maioria
da população mantém suas genealogias, porque, de todos os laços que servem para
vincular um povo, o de sangue é o mais próximo e de maior força (...)
Os povos que experimentam a influência desse
sentimento preferem sempre a vida do deserto à das cidades...
Em 681, Okba atingiu o Atlântico, mas os berberes
se esqueceram de sua hostilidade secular contra aos romanos e decidiram
combater esse novo invasor. Sob as ordens do príncipe Koceila (Kossaila ou
Kossayla), uma parte dos berberes derrotou Okba ibn Nafi (683), saqueou Kairuan
e fez o exército árabe retroceder de volta para Barka. Contudo, outra parte dos
berberes abraçou o Islamismo, fato que enfraqueceu o exército de Koceila.
Este, recuando para Barka em 689, foi surpreendido
e massacrado por uma força bizantina (PIRENNE, 1970: 136), e o exército árabe,
por sua vez, perseguido pelas forças berberes chefiadas por uma misteriosa e
lendária rainha-sacerdotisa zenata de nome Kahina (ou Kahena), foi obrigado a
retornar derrotado de volta ao Egito – os zenatas ou zanagas eram uma etnia
berbere originária do sul do Marrocos (KI-ZERBO, s/d: 129).
Hasan, governador do Egito, decidiu contra-atacar:
retomou a ofensiva, reconstruiu Kairuan e apoderou-se definitivamente de
Cartago, em 698. Os cartagineses fugiram e a cidade antiga foi substituída por
uma nova, ao fundo do gloso: Túnis. Seu porto, Goulette, tornou-se a partir de
então uma das grandes bases navais islâmicas do Mediterrâneo.
Sim, a expansão islâmica também abrangia os mares:
desde o califa Moawiah (660) os muçulmanos dispunham de uma frota, e com ela
também alargaram seu poder e invadiram as ilhas de Chipre, Rodes, Creta e
Sicília, além de transformarem o porto de Cizico (Cyzicus), na Ásia Menor, em
uma importante base naval islâmica de onde passaram a assediar Constantinopla
(PIRENNE, 1970: 134-135).
Assim, além do avanço para o oeste pelo norte da
África – e simultaneamente a ele – os muçulmanos se apoderam gradativamente de
posições marítimas chaves no Mediterrâneo. A resistência berbere foi desfeita e
a rainha-sacerdotisa Kahina teve a cabeça cortada e enviada como troféu ao
califa no Egito.
II. A fragmentação do Norte da África em potentados
No final do século VII, os muçulmanos concretizaram
definitivamente sua expansão no norte da África. Na região mais setentrional,
outro comandante árabe, Mousa ibn Noçayr submeteu o Magreb (Marrocos) e impôs
definitivamente o Islamismo às tribos berberes. Com isso, a África ficou
dividida em três províncias:
1) O Egito, com sua capital em al-Fustat (próxima
de Cairo);
2) Ifriqiya (Tunísia), com sua capital em Kairuan e
3) Magreb (Marrocos), com sua capital em Fez.
Durante cerca de cem anos, os emires dessas três
províncias reconheceram os califas do Oriente como seus soberanos. No entanto,
devido às longas distâncias e as dificuldades naturais de comunicação – que só
aumentaram com a transferência da capital do Império para Bagdá, essas
províncias gradativamente tornaram-se reinos independentes no século IX, cada
um com uma dinastia. Foram elas:
1) Dinastia tulunida (868-905), no Egito e na
Síria;
2) Dinastia aglábida (800-909), em Kairuan
(dominando a Tunísia, a região oriental da Argélia e a Sicília) e
3) Dinastia idrísida (789-926) no Magreb.
No Egito, a dinastia tulunida durou apenas duas
gerações de monarcas. Fundada por Ahmad ibn-Tulun (868-884), filho de um
escravo turco, com ela, o Egito passou por um rápido renascimento cultural,
tanto nas artes quanto no saber. Ibn Tulun construiu uma nova capital (Qatai,
subúrbio de al-Fustat), palácios, banhos públicos, um hospital, um aqueduto
ainda de pé e a grande mesquita Ibn Tulun, hoje uma homenagem do tempo a seu
governo.
No entanto, seu filho Khumarawayh (ou Khumavaraih,
884-895) transferiu a energia que herdou do pai totalmente para a luxúria:
tributou pesadamente seu povo para revestir seu palácio de ouro e construir uma
piscina de mercúrio, onde sua cama com almofadas (também de ouro) e sempre
cheia com seu harém pudesse flutuar... Apesar disso, Khumarawayh foi
reconhecido como governador do Egito, da Síria e da Mesopotâmia do Norte,
casando sua filha com o califa al-Mutadid-Mutadid. O poder dos tulunidas cai
com seu filho Harun (896-904); outra dinastia turca, os ikshididas (935-969)
tomou-lhes o poder (Islamic Architecture – Tulunids).
Na Ifriqiya (Tunísia), em 800, Ibrahim ibn
al-Aghlab fundou a dinastia aglábida, que governou a região até 909. Embora
fossem tecnicamente submissos aos califas abássidas, os aglábidas eram
independentes. Eles foram responsáveis pela construção da grande mesquita e suas
muralhas, e transformaram sua capital em um importante centro cultural, onde as
ciências religiosas e a poesia puderam florescer.
Os aglábidas criaram também uma marinha e
desenvolveram técnicas agrícolas, de irrigação e de arquitetura, além das artes.
Grande foi o florescimento das atividades intelectuais. Nesse período,
destacam-se Imam Suhnun, Assad ibn al-Furat (no Direito) (SOUSA, 1986), Yahia
ibn Sallam (na Exegese do Alcorão) e Ibn al-Jazzar (na Medicina) (Os
Aglábidas). Os aglábidas também conquistaram e dominaram a Sicília (827-878);
dali, em 846, um exército aglábida conseguiu atacar e saquear Roma. Essa ilha
permaneceu sob o domínio muçulmano mais de cem anos e só foi reconquistada
pelos cristãos em 1091.
Trata-se de um clássico exemplo arquitetônico da
fortaleza ribat. O núcleo dessa construção data do período 770-96 e seu último
estágio dos anos 821-22. Sua construção é atribuída ao aglábida Ziyadat Allah.
Consiste em um cerco fortificado com uma entrada e torres nos cantos e no meio
das paredes. O pátio é cercado por dois níveis de muros. O lado do sul do
segundo assoalho é ocupado por uma mesquita com um mihrab no centro (o mihrabem
uma mesquita é o nicho decorado que indica a direção [qibla] de Meca. MIQUEL,
1971: 556). Para o ribat, ver adiante nosso item VI.
No entanto, uma força religiosa tomaria Ifriqiya de
assalto: os ismaelitas. Por volta de 905, Abu Abdala surgiu naquele reino
pregando uma doutrina que se propagaria por todo o mundo árabe, aDoutrina
Ismaelita dos Sete Imãs. Com a adesão dos berberes, ele conseguiu depor a
dinastia aglábida e saudar Obeidala ibn Muhammad como al-Mahdi (ou Madi), o
“líder justo”, aquele que viria destruir a tirania e estabelecer a justiça.
Contudo, assim que chegou ao poder, uma das primeiras medidas de Obeidala foi
ordenar a morte de Abu Abdala.
O sucesso da tomada do poder pelos ismaelitas fez
surgir uma nova e importante dinastia: os fatímidas (se diziam “fatímidas”
porque se consideravam descendentes de Fátima, filha do Profeta). Lá mesmo na
Tunísia, os exércitos fatímidas se prepararam para a conquista do Egito,
primeiro passo para se chegar ao império do Oriente (LEWIS, 2003: 43).
Aglábidas e fatímidas devolveram à África do Norte
um pouco da prosperidade dos tempos da Roma imperial. No século IX, os
muçulmanos abriram novas rotas, desenvolveram o comércio tanto com o Islã
Oriental quanto com a Espanha e as regiões transaarianas (como veremos a
seguir), e trouxeram novas técnicas para a arte do couro, das tinturas e dos
perfumes. Ao se expandirem até o Egito, tomando-o dos turcos ikshididas, os
fatímidas unificaram todo o norte da África. Transferiram-se então para a
cidade de Qahira (“A vitoriosa”, isto é, Cairo) ao nordeste de Qatai, chegando
posteriormente a ter o controle sobre toda a Arábia e a Síria.
Os fatímidas tornaram-se rapidamente os reis mais
ricos de seu tempo. No entanto, a liberdade cultural e religiosa dos primeiros
tempos deixava pouco a pouco de existir: com o califa al-Haquim (996-1021), uma
série de perseguições contra judeus e muçulmanos teve início – até mesmo a
Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, foi destruída – fato que deu início à
pregação das cruzadas. Apesar disso, a dinastia ainda floresceu culturalmente
com o longo reinado de Mustansir (1036-1094), filho de uma escrava sudanesa.
Mustansir construiu um belo pavilhão e viveu uma
vida de música, vinho e conforto. Ele disse: “Isto é mais agradável que
contemplar a Pedra Preta, ouvir o zumbido dos muezins (o encarregado do apelo à
oração) e beber água impura” (citado por DURANT, s/d: 258). Após sua morte, o
império se fragmentou em várias facções (berberes, sudanesas e turcas).
Ifriqiya e Marrocos já haviam se separado, a Palestina se rebelou e a Síria foi
perdida.
III. Natureza e força da civilização islâmica no
Norte da África
Todas aquelas três cortes dos reinos africanos – do
Cairo, de Kairuan e de Fez – protegeram e desenvolveram as artes – a música, a
filosofia, a poesia, a arquitetura, a pintura e as artes menores (azulejos,
estampas em tecidos, vasos de cristal, etc.). Em Kairuan, em 670 foi erguida a
maravilhosa mesquita de Sidi Oqba, restaurada sete vezes. Seus claustros ainda
hoje são sustentados por colunas coríntias das ruínas de Cartago. A riqueza da
arte de Sidi Oqba tornou Kairuan a quarta cidade santa do Islã – chamada de “um
dos quatro portões do Paraíso”.
Com um púlpito entalhado, o mais antigo minarete
quadrado e maciço do mundo (o minarete é a torre da mesquita), e seus
interiores rodeados de pilastras coríntias iluminadas com velas, a mesquita de
Sidi Okba é um marco da força da arquitetura e da fé islâmica (DURANT, s/d:
258), e artisticamente contrasta maravilhosamente com a imensidão e o silêncio
do deserto – observe que um dos pilares da contemplação estética é justamente
observar a inserção da obra arquitetônica no espaço natural em que ela foi
construída, e essa interação deve ser levada em conta quando da fruição
artística.
Ainda em relação às artes desse período na África
do Norte, é importante destacar que os muçulmanos desenvolveram com intensa
paixão e enorme paciência as chamadas “artes menores”. Azulejos envernizados,
louças de barro, vidros, vasos de cristal, caixas ricamente decoradas com
incrustações de marfim, osso ou madrepérola (tanto na madeira quanto no metal),
tinteiros, tudo com motivos geométricos. Enfim, todas as manifestações da
criatividade artística humana brotaram esplendorosamente na África do Norte
islâmica entre os séculos VII-XI.
III.1. O ensino e as letras
É sabido que o mundo muçulmano na Idade Média
estimulou muito a educação e o estudo das letras. No final do século X, a
biblioteca de Cairo já era uma das maiores do mundo conhecido. O Islão
patrocinava muito o saber: por exemplo, em 988 Iacub Qilis convenceu o califa
egípcio Aziz a custear a educação para estudantes na mesquita de el-Azhar.
Era o início do ensino público – logo seguido pelas
universidades européias (embora ali os estudantes custeassem os gastos). O
estudo sistemático em el-Azhar atraiu universitários de todo o mundo muçulmano,
processo que antecedeu em um século o movimento universitário na Europa.
O califa al-Haquim criou no Cairo uma instituição
chamada Casa de Sabedoria (Dar al-Ilm), que abrigava o ensino da teologia xiita
dos ismaelitas, da astronomia e da medicina. Haquim também doou sua coleção de
manuscritos à Casa da Sabedoria “para que todo o mundo possa vir para ler,
transcrever e se instruir” (MANGUEL, 1997: 47). Ali ainda havia um observatório
astronômico, onde trabalhou o maior dos astrônomos muçulmanos, o egípcio Abu’l
Hasan ibn Yunus (†1009) (RONAN, 2001: 100-101).
E de todos os nomes que brilharam dentre os
doutores do Islã nesse período, o mais conhecido é o de Al-Hazin. Matemático
muçulmano nascido por volta de 965 em Basra, ele tornou-se famoso por ter
escrito um importante tratado de ótica (Kitab al-Manazir). O primeiro a
perceber a capacidade aumentativa do vidro parece ter sido Sêneca († 65 d. C.),
observando objetos através de bolas de vidro cheias d’água.
Mas foi Al-Hazin, em seu Livro de Ótica, quem deu
um passo importante e definitivo ao trabalhar a ação dos “corpos lenticulares”
(FRADA). Seu problema básico fora encontrar a imagem de um ponto brilhante
quando refletido fora de um círculo. Isso envolvia conseguir encontrar um ponto
preciso (A) na circunferência de um círculo.
Al-Hazin ainda observou a forma de meia-lua da
imagem do Sol durante os eclipses na parede oposta a uma pequena cavidade feita
nas folhas de janelas: é a primeira menção conhecida da câmara-escura, base da
fotografia. Até o tempo de Kepler e da Vinci, todos os estudos europeus sobre a
luz basearam-se na obra de al-Hazin (DURANT, s/d: 261).
Por fim, o efeito mais duradouro da expansão do
Islã no Norte da África foi o quase completo desaparecimento do cristianismo. É
bastante provável que os habitantes latinos das cidades tenham emigrado para a
Sicília e Espanha. Todas as populações, especialmente os berberes, adotaram com
tal entusiasmo o Islã que expandirem-no para o sul do Saara, como veremos a
seguir. Assim, o Mediterrâneo deixou de ser uma rota pacífica e romana como o
era no mundo antigo para se transformar em um mar de fronteira bélica de
religiões e civilizações opostas (PREVITÉ-ORTON, 1976: 337).
IV. Civilizações negras ao sul do Saara
No extremo oeste da África setentrional, entre os
atuais países de Mali e da Mauritânia, ao longo do rio Níger até mais a oeste,
na escarpa do Tagant, com limite ao sul nos rios Senegal e Bakoy,
desenvolveram-se as primeiras civilizações negras conhecidas: os Maqzara, o
reino de Tekrur, e os famosos Impérios de Gana (Wagadu), ou o “Império do
Ouro”, como ficou sendo chamado, e o de Songai (ou de Gao). Essas culturas
negras que giravam em torno do Baixo Senegal (nome de toda essa região) foram o
resultado de um desenvolvimento autóctone bastante recuado (e de natureza
pagão-animista), iniciado provavelmente na era cristã, aliado ao avanço
berbere-islâmico em direção ao sul do Saara no século IX.
Essa expansão berbere havia se dirigido tanto no
leste ao sul do Egito, para obter o controle das minas de ouro do Sudão, quanto
no oeste ao sul de Magreb, e aqui no Baixo Senegal a expansão basicamente
tivera como motivação o desejo de dominar as rotas cada vez mais desenvolvidas
dos tráficos de ouro, de sal e de escravos, este último um tráfico que nunca
parou de crescer desde então até meados do século XIX (KI-ZERBO, s/d: 130). O
tráfico de escravos – escravos que eram utilizados em sua maior parte no
serviço doméstico ou como soldados – acontecia tanto no sentido do sul para o
norte do Saara quanto o inverso (DAVIDSON, 1992: 146).
Apesar das dificuldades naturais de se atravessar o
deserto, muitas caravanas de muçulmanos cruzavam o Saara a oeste para
comerciarem escravos, sal, cavalos e metais (ouro e cobre) com as populações
negras. Os berberes também compravam dos negros marfim, peles de animais,
plumas de avestruz e sementes de cola (com cafeína); em troca, traziam cobre,
espadas decoradas de Damasco, louças e talheres finos.
Partindo-se do Magreb (de Fez, mais a oeste, ou
mesmo de Trípoli), os viajantes islâmicos utilizavam quatro rotas conhecidas
através do deserto para chegar a quatro importantes pontos de comércio ao sul.
Da esquerda para a direita:
1) De Awdaghost e Tekrur (na Mauritânia atual) para
Tindouf, até Marrakech, Fez e Túnis;
2) De Tombuctu (no Mali) também para Fez e Túnis,
mas passando por Taouden;
3) De Gao (também no Mali) para Trípoli, passando
por Ghadames;
4) De Agadez, mais ao centro, no Níger, também para
Trípoli, passando por Ghadames ou por Murzuk.
Graças a essas regulares rotas de comércio
transaarianas estabelecidas pelos berberes islamizados é que se tem notícia
escrita das civilizações negras ao sul do Saara. Um viajante e geógrafo
muçulmano chamado al-Bakri (século XI) escreveu a principal fonte para essa
região, um livro chamado Descrição da África (de 1087). Abu Ubayd al-Bakri,
filólogo, poeta, geógrafo, historiador e erudito religioso, viveu em Qurtuba
(Córdoba), Al Mariyya (Almeria) e Ishbiliya (Sevilha), onde morreu em 1094. Ele
ficou conhecido por seus comentários a várias obras, principalmente o Sharth
Kitav al amthalde Abu Ubayd al-Qasim ibn Sallam, e o Al 'Ali fi sharh al amáli,
de al-Qali. A intenção desses comentários muito difundidos na Idade Média era
esclarecer os casos em que o significado desejado por um conhecido autor não
estava claro. Então o comentarista explicava as expressões pouco comuns e fazia
as necessárias correções para os novos e futuros leitores (Poetas andalusíes
sevillanos).
Embora al-Bakri, da mesma forma que Tácito em sua
obra Germânia (no século I), nunca tenha ido pessoalmente à região que descreve
em sua obra, ele conversou com viajantes e comerciantes, além de consultar
obras de geógrafos muçulmanos, e pôde assim fazer um precioso registro de
segunda mão sobre aquelas culturas negras (KI-ZERBO, s/d: 131-141; Al-Bakri’s
online guide to Ghana Empire).
Assim, tomando como base esse depoimento muçulmano
(e de outros, como veremos), sabemos que, já a partir do século IX, uma
confederação de tribos berberes sob o comando de Tilutan (836-837) – os
lemtunas, os mesufas e os djoddalas – conseguiram impor sua autoridade sobre
vários grupos negros e negro-berberes instalados ao redor de um povoamento
chamado Awdaghost, que ficava bem no centro da região do Baixo Senegal. Todas
essas culturas próximas a Awdaghost tinham uma defesa natural que as protegiam
de ataques, as escarpas do Tagant, que formam um grande semicírculo natural
protetor naquela região.
Outro escritor islâmico, Al-Idrisi (Abu al-Idrisi,
muçulmano de Ceuta, no Marrocos, educado em Córdoba, na Espanha) (RONAN, 2001:
113) nos informa que o nome desse reino era País de Qamnuriya(Mauritânia) ou
Terra do Maqzara dos Negros (Ard Maqzarati es Soudan). Bem no centro da rota do
sal, de Buré ao sul até Teghazza, esse reino teria tanto no sul quanto no norte
um povoamento concentrado em um cinturão de cidades: ao sul, Awlil, Sila,
Tekrur, Daw e Barissa; ao norte Qamnuriya e Nighira. No entanto, na época da
chegada dos berberes islâmicos, as rotas com o sul (Senegal) teriam desaparecido,
restando o contato e comércio com o norte islâmico.
Um pouco à esquerda do reino de Maqzara, havia
outro importante reino negro, na trilha da famosa “rota saariana do ouro” (que
passava por Walata e Sidjilmasa até Fez): era o reino do Tekrur. No século IX,
esse reino era governado por uma dinastia peule vinda de Hodh: eram os Dia Ogo.
O Tekrur, segundo Al-Idrisi, era um reino com um
soberano independente, que possuía tropas e muitos escravos, e era muito famoso
por seu senso de justiça. Com um comércio ativo, o reino de Tekrur importava
lã, cobre e pérolas do Marrocos e exportava ouro e escravos para o norte
berbere-muçulmano.
IV.2. A escravidão negra
O tráfico negreiro não foi uma invenção diabólica
da Europa. Foi o Islã, desde muito cedo em contato com a África Negra através
dos países situados entre Níger e Darfur e de seus centros mercantis da África
Oriental, o primeiro a praticar em grande escala o tráfico negreiro (...)
O comércio de homens foi um fato geral e conhecido
de todas as humanidades primitivas. O Islã, civilização escravista por
excelência, não inventou, tampouco, nem a escravidão nem o comércio de escravos
(os grifos são nossos) (BRAUDEL, 1989: 138).
Aqui faço um breve parêntese para a escravidão
negra. Muitos séculos antes da chegada dos brancos europeus à África, as
tribos, reinos e impérios negros africanos praticavam largamente o escravismo,
da mesma forma os berberes e demais etnias muçulmanas. Imaginar os portugueses,
castelhanos e italianos lançando seus marinheiros em caçadas aos negros no
coração das florestas africanas não resiste ao exame histórico.
Pelo contrário, os europeus seiscentistas tinham
verdadeiro pavor de deixar o litoral ou mesmo desembarcar de seus navios e
avançar para longe da costa e capturar escravos. Estes eram trazidos pelos
próprios africanos, que tinham grandes mercados espalhados pelo interior do
continente, abastecidos por guerras entre as tribos, ou mesmo puro seqüestro
aleatório. Isso é facilmente comprovado, por exemplo, com a descrição do império
de Mali feita pelo cronista muçulmano Ibn Batuta (1307-1377), um dos maiores
viajantes da Idade Média, e o depoimento de al-Hasan (1483-1554) sobre
Tumbuctu, capital do império de Songai, documentos que exporemos adiante.
Ademais, havia tribos africanas que praticavam
sacrifícios humanos, naturalmente de escravos. Às vezes, para interromper a
chuva, mulheres negras (e escravas) eram crucificadas.
Ao converter meia África, o Islamismo contribuiu
para estimular ainda mais a escravidão dos impérios negros, pois praticou-a
desde cedo: antes mesmo de Maomé, no século VI, mercadores árabes freqüentavam
todos os portos da costa oriental da África, trocando cereais, carnes e peixes
secos por escravos com tribos bantus (SILVÉRIO, 2013: 404-410). As populações negras
não-muçulmanas também consideravam a escravidão um fato normal (como veremos,
normalmente os reis africanos tinham centenas de escravos como soldados – e em
suas guardas pessoais!).
Por exemplo, nas minas de sal-gema de Targhaza
(exatamente na rota do Tekrur em direção a Marrakech), milhares de negros
escravizados morriam para prover uma caravana de camelos cada vez maior de ano
a ano – por volta de 1200 eram entre cinco e seis mil camelos que transportavam
esse sal para o sul.
Outro conhecido exemplo é o rei de Mali, Mansa
Mussa (1312-1332): negro e muçulmano, quando chegou ao Cairo em peregrinação a
Meca em 1324, trouxe consigo quinhentos escravos, também negros, cada um com
uma bola de ouro na mão (tratarei adiante de Mansa Mussa) (HEERS, 1983: 79; DE
BONI, 2003: 317-333).
*
Por fim, a base alimentar do povo do reino do
Tekrur era o milhete (um tipo de milho pequeno), peixe e leite (ROSENBERGER,
1998: 338-358). Vestiam lã (os mais poderosos) e algodão (a maior parte da
população). Seu primeiro rei a converter-se ao Islamismo foi War Jabi Ndiaye.
Com ele, todos os súditos também se converteram (Jabi Ndiaye morreu em 1040)
(KI-ZERBO, s/d: 133).
V. Civilizações negras ao sul do Saara
O Reino de Gana é chamado assim por causa do título
de seus soberanos. Era também chamado de Ugadu (país dos rebanhos). Nessa
época, o clima era bastante úmido, o que favorecia a criação de gado e a
agricultura. Por volta do século IX, viviam na região do Hodh e do Auker
pastores de origem berbere e cultivadores negros sedentários que, com o passar
do tempo, se mesclaram. Em 876, outro cronista muçulmano, Iacub, escreveu: “O
rei de Gana é um grande rei. No seu território encontram-se minas de ouro e ele
tem sob sua dominação um grande número de reinos” (citado por KI-ZERBO, s/d:
135).
V.1.1. Gana renasce na descrição de Al-Bakri
Em 970 o viajante muçulmano Ibn Hawkal viajou de
Bagdá até a margem do rio Níger, e não hesitou em dizer do imperador de Gana:
“É o mais rico do mundo por causa do ouro” (citado por KI-ZERBO, s/d: 133). Um
século depois, outro cronista, Al-Bakri nos dá informações mais precisas, como
disse, em sua obra Descrição da África (de 1087). É esse texto, essa fonte que
a partir de agora abrimos espaço para descrever o reino de Gana (Al-Bakri’s
online guide to Ghana Empire).
A mesquita de Djenne era um dos principais centros
de peregrinação islâmica nas regiões meridionais do Saara e a cidade um
importante entreposto comercial entre a África do Norte e a África Sudanesa.
Djenne fica localizada no centro-sul do Mali, próxima a um dos vales do rio
Níger.
V.1.2. O Reino de Gana
Al-Bakri nos conta:
O reino de Gana está povoado pelos povos de
Soninke, que chamam sua terra de Wagadugu ou Wagadu. O nome Gana é o título do
rei que governa aquele império. O Estado de Soninke é forte, e seu rei controla
200.000 soldados, 40.000 dos quais arqueiros que protegem as rotas de comércio
de Gana.
O poder do rei de Gana provém do monopólio da
enorme quantidade de ouro produzida em seu reino. Esta riqueza permite aos de
Soninke construir e manter enormes cidades, além de uma capital com uma
população estimada entre 15.000 e 20.000 habitantes. Soninke também usa sua
riqueza para desenvolver outras atividades econômicas, tais como a tecelagem, a
ferraria e a produção agrícola.
Imagem 30. Arqueiro de terracota, de Mali (séc.
XIII-XV?)
V.1.3. A capital de Gana
A capital de Gana é chamada Kumbi Saleh. A cidade
consiste na reunião de duas cidades que se unem em uma planície, a maior delas
habitada por muçulmanos e com doze mesquitas (ver imagem 28). Kumbi Saleh
possui também um grande número de juízes e de homens instruídos. Ao redor de
ambas as cidades há poços de água doce e potável, e próximos a eles, terras
cultivadas com vegetais.
A cidade habitada pelo rei está a seis milhas da
outra cidade (muçulmana) e é chamada de Al-Ghana. A área entre as duas cidades
é coberta com casas feitas de pedra e de madeira. O rei tem um palácio e choças
de formato cônico, cercadas por paredes. Na cidade do rei, não muito longe da
corte de justiça real, há uma mesquita. Os muçulmanos que vêem em missões ao
rei podem rezar ali. Há ainda uma grande avenida, que cruza a cidade de leste a
oeste.
V.1.4. O rei de Gana
O rei adorna a si mesmo como se fosse uma mulher,
usando colares ao redor do pescoço e braceletes em seus antebraços. Quando se
senta diante do povo, fica sobre uma elevação decorada com ouro e se veste com
um turbante de pano fino. A corte de apelação fica em um pavilhão abobadado,
com dez cavalos estacionados e cobertos com um tecido bordado com ouro. Atrás
do rei ficam dez pajens segurando escudos e espadas, ambas decoradas com ouro.
À sua direita ficam os filhos dos vassalos do país
do rei, vestindo esplêndidas roupas e com os cabelos trançados com ouro. O
governador da cidade senta-se na terra diante do rei e os ministros ficam do
mesmo modo, sentados ao redor. Na porta do pavilhão estão cães de excelente
pedigree e que dificilmente saem do lugar de onde o rei está, pois estão ali
para protegê-lo. Os cães usam ao redor de seus pescoços colares de ouro e de
prata cheios de sinos com o mesmo metal.
A audiência é anunciada pela batida em um longo
cilindro oco que se chama daba. Quando os povos que professam a mesma religião
se aproximam do rei, caem de joelhos e polvilham suas cabeças com pó, uma forma
de mostrar respeito por ele. Quanto aos muçulmanos, eles cumprimentam-no
somente batendo suas mãos.
Os tipos de “casas cônicas” descritas por Al-Bakri
em sua obra ainda podem ser vistas no Mali, como mostra a fotografia acima da
Vila de Songo, no Mali.
V.1.5. A economia e a justiça em Gana
O rei cobra o imposto de um dinar de ouro para cada
carga de asno com sal que entra em seu país, e dois dinares de ouro para cada
carga de sal que sai.1
Os impostos são cobrados também pelo cobre e
qualquer outra mercadoria que entra e sai do Império. O melhor ouro do país vem
de Ghiaru, uma cidade distante da capital 18 dias de viagem. Todas as peças de
ouro que são nativas e encontradas nas minas do Império pertencem ao soberano,
embora ele deixe o povo ter um pouco de ouro em pó, isso certamente com o
conhecimento de todos. Sem essa precaução, o ouro não só se tornaria abundante
como praticamente perderia seu valor.
Quando um homem é acusado de negar um crime, um
chefe pega um barril fino de madeira ácida e amarga de provar e coloca nela um
pouco de água. Depois disso, ele dá essa bebida ao réu para que a beba. Se o
homem vomita, sua inocência é reconhecida e ele é felicitado. Se não vomita e a
bebida permanece em seu estômago, a acusação é aceita e justificada.
Bandiagra: quatro mulheres da etnia dos dogons, com
seus trajes típicos, em frente à mesquita, tendo à frente um sorridente homem
com uma coroa e vestido com um tecido cor de vinho. Todos estão descalços.
Observe o belo contraste entre as cores dos personagens e o tom amarelo-tijolo
do cenário.
V.1.6. A religião em Gana
Al-Bakri nos conta:
Ao redor da cidade do rei há choupanas abobadadas e
bosques onde vivem os feiticeiros, homens encarregados de seus cultos
religiosos. Ali se encontram também os ídolos e os túmulos dos reis. Estes
bosques são guardados: ninguém pode entrar ou descobrir seus recipientes. As
prisões dos vivos também estão ali, e se alguém é aprisionado lá, nunca mais se
ouve falar dele.
Quando o rei morre, constroem uma enorme abóbada de
madeira no lugar do enterro. Então trazem-no em uma cama levemente coberta e
colocam-no dentro da abóbada. A seu lado colocam seus ornamentos, suas armas, e
os recipientes que ele usava para comer e beber. A serpente é a guardiã do
Estado e vive em uma caverna que lhe é devotada. Quando o rei morre, seus
possíveis sucessores se reúnem em uma assembléia, e a serpente é trazida para
picar um deles com seu focinho. Essa pessoa é então chamada para ser o novo
rei.
A descrição de Al-Bakri é sucinta e clara. A
população de Gana, rodeada de hortas, pepinos, palmeirais e figueiras, vivia
assim em uma espécie de oásis protetor na fronteira sul do deserto. Como disse
acima, a mesquita de Djenne tornava a região um importante centro islâmico, com
um comércio bastante próspero. Al-Bakri nos diz a respeito: “A criação de
carneiros e de bois é aí particularmente próspera. Por um simples mitkal (moeda
de ouro equivalente ao dinar – 4,722 gramas) podem-se comprar pelo menos dez
carneiros. Encontra-se muito mel, que vem do país dos Negros. As gentes vivem
desafogadamente e possuem muitos bens” (citado em KI-ZERBO, s/d: 136).
O escritor muçulmano não se esquece da cozinha e a
graça das moças da terra: “Encontramos também jovens com uma linda cara, tez
clara, corpo esbelto, seios direitos, cintura fina, ombros largos, ancas
abundantes, sexo estreito, etc” (citado em KI-ZERBO, s/d: 136).
Embora devamos ter uma prudência em relação aos
textos dos cronistas muçulmanos, pois, como disse, alguns deles foram redigidos
com base em narrativas orais e consulta a obras, não no local, a obra de
Al-Bakri nos sugere um grau de islamização ainda bastante fraco das populações
negras (André Miquel é ainda mais rigoroso: “No Ghâna, de resto directamente
atingido pelo choque almorávida, tanto o povo como o rei ter-se-iam mantido
pagãos, sòmente sendo tocados pelo Islame os intérpretes e certos
funcionários...”. MIQUEL, 1971: 216).
Tanto o rei, que ainda era escolhido com base em
tradições animistas – a picada da deusa-serpente –, quanto uma parte do povo
teriam ainda se mantidos pagãos (embora se deva observar que a cidade com maior
densidade demográfica descrita por Al-Bakri era a muçulmana, com suas doze
mesquitas). Segundo Ki-Zerbo, esse era o culto do deus-serpente do Uagadu
(Uagadu-Bida), antepassado-totem dos Cissés: “Segundo a lenda, saía da toca no
dia da entronização dos reis e recebia em sacrifício anualmente a mais bela
rapariga da terra. Um dia, diz-se, Maghan, vendo a sua noiva, a jovem virgem
Sai, entregue à serpente, matou o réptil. Mas o pitão era o deus da
fecundidade. Teria sido o seu desaparecimento que desencadeara a desertificação
do país” (KI-ZERBO, s/d: 138). Deve-se ainda atentar para o fato de o Império
ter, segundo as estimativas dos especialistas, cerca de um milhão de habitantes
(DAVIDSON, 1992: 147).
De resto, Al-Bakri parece ter delimitado bastante
bem a separação entre as duas culturas religiosas naquele momento: um bom
exemplo disso é a saudação das pessoas quando se aproximavam do rei. Os
animistas jogavam terra em sua cabeça em sinal de respeito, os muçulmanos
batiam palmas, notável e marcante diferença que mostra o ainda baixo grau de
penetração islâmica junto ao rei e à corte de Gana.
Em suma, sabemos da existência desse rico império
negro e escravocrata graças aos viajantes islâmicos e à presença muçulmana na
região, com seu grupo letrado, mas que ainda não se misturara efetivamente com
a população autóctone, nem conseguira penetrar na casa real, ainda de forte
tradição animista.
Para finalizar, como eram fisicamente os homens de
Gana? Outro cronista islâmico que viveu duzentos anos depois de al-Bakri, o
historiador al-Umari (1301-1349), nos informa que o povo era “alto, de
compleição preta retinta e cabelos encrespados”. Um dos informantes de al-Umari
lhe disse que “o ouro é extraído cavando-se buracos na profundidade que chegam
à altura de um homem e são encontrados embutidos nas laterais dos buracos, ou
às vezes no fundo deles” (DAVIDSON, 1992: 148).
Os séculos IX e X viram o apogeu do império negro
de Gana. No entanto, no século XI, com o avanço almorávida, aqueles territórios
foram teatro de grandes convulsões, como veremos a seguir.
VI. A gesta dos almorávidas (c. 1056-1147)
33. O Império Almorávida em sua maior extensão (c.
1110)
africa34.jpg
Os almorávidas, cuja dinastia começou em 448 (20 de
março de 1056), eram formados por várias tribos que se diziam descender de
Himyar. As mais célebres são as de lamtuna (ou lemtuna), da qual o príncipe dos
crentes Ali ibn Taxufin faz parte, e os chadala. Saídas do Yêmen nos tempos de
Abu Bakr Siddiq, que as enviou para a Síria, elas passaram depois para o Egito
e depois se transferiram para o Magreb, com Musa ibn Nusayr. Seguiram depois
para Tariq até o Tanger, mas seu gosto pelo isolamento as empurraram para o
interior e ali habitaram até a época que vamos tratar (Kamil fi-l-Tarij, de Ibn
al-Athir. In: SÁNCHEZ-ALBORNOZ, 1986, tomo II: 108).
No século XI, do Saara Espanhol ao Marrocos, surgiu
um poderoso movimento berbere islâmico que varreu a costa setentrional da
África até chegar à Península Ibérica, conferindo um novo caráter e
dramaticidade tanto às culturas da África do Norte quanto à Reconquista Ibérica
cristã. Para entendê-lo, é preciso levar em conta que, durante muito tempo, os
berberes, como vimos, foram reticentes com o Islã, mas depois de terem se
convertido transformaram-se em uma das etnias africanas que abraçaram a fé do
Corão com mais força.
No entanto, no século X, o Islamismo ainda era
praticado em muitas áreas orientais africanas de maneira bastante permissiva.
Isso ocorria especialmente com muitas tribos de chefes berberes da costa
atlântica da Mauritânia, como os sanhadjas. Por exemplo, eles cumpriam a
obrigação da peregrinação a Meca somente como uma formalidade política. Assim,
ao retornar de Meca e parar em Kairuan, Yaya ibn-Ibrahim, chefe dos djoddalas,
foi se consultar com um sábio muçulmano de nome Abu Amiru (de Fez) e foi
repreendido por este por sua ignorância em relação à fé.
O sábio, chocado com o baixo nível de conhecimento
da Lei corânica dos djoddalas, decidiu procurar um teólogo para instigá-lo a ir
até àquele povo berbere e guiá-lo à luz da verdade sagrada. Encontrou Abdallah
ibn Yacine, um grande letrado da cidade de Sidjilmasa, que aceitou ir pregar
entre os djoddalas.
Contudo, os berberes o receberam muito mal. Não
gostaram nem um pouco das práticas ascéticas de Yacine, queimaram sua casa e o
expulsaram. Yacine então se retirou (cerca de 1030) com dois discípulos da
etnia berbere dos lemtunas, Yaya ibn Omar e seu irmão Abu Bakr (não confundir
com o califa do mesmo nome do século VII), para algum lugar desconhecido da
costa atlântica. Foi então que começaram a receber adeptos. Quando chegaram ao
milhar, Ibn Yacine batizou-os de Al-Morabetin (aqueles do ribat), palavra que
deu origem a almorávida.
O ribat era uma espécie de convento militar
muçulmano erguido nas fronteiras do dar al-islan (a “Casa do Islã”) e que
acolhia voluntários piedosos que desejavam se retirar do mundo e que ali
ficavam sob as ordens de um veterano (sheikh) para se purificar e sair em
missões conforme o desejo do sheikh (DEMURGER, 2002: 43). Demurger define o
ribat em uma obra dedicada às ordens militares cristãs porque muitos
historiadores consideram o ribat o antecessor islâmico das ordens militares e o
autor discute essa tese, da qual discorda).
A idéia de posto de vigília e mosteiro fortificado
foi mais tarde valorizada pelo sufismo: os sufis levavam um modo de vida que
buscava a união com Deus por meio do amor, do conhecimento baseado na
experiência e ascese, que levaria a uma união estática com o Criador. Essa
invocação tinha o objetivo de desviar a alma das distrações mundanas para
libertá-la até o vôo da união com Deus. Uma das formas do dhikr era um ritual
coletivo chamado hadra: os participantes repetiam constantemente o nome de Alá,
cada vez mais rapidamente, até se chegar a um transe e perda da consciência do
mundo sensível (COSTA, 2002: 73-74).
No tempo dos almorávidas não se têm notícias desse
sentido preciso de guarnição religiosa. Nessa época, a palavra ribat
significava “sua seita, seu corpo, suas forças, sua guerra santa”. O único
autor que empregou a palavra precisa de rabita (fortaleza) foi Ibn Abi Zar, em
sua obra Rawd al Qirtas (de 1326), portanto, duzentos anos depois do período de
Yacine (KI-ZERBO, s/d: 143).
A missão dos almorávidas era impor a verdadeira fé
pela força aos não-crentes. A partir de 1042, eles se lançaram em uma furiosa
jihad a partir das regiões do Adrar e do Tagant, ambas hoje no coração do Saara
Espanhol, contra os djoddalas e os lemtunas, tendo Yacine como chefe espiritual
e Yaya como general. Negros do Tekrur logo se juntaram a eles, desejosos de se
opor ao Império de Gana. Yaya foi expulso do exército, por não concordar com os
saques e violações cometidos por seus soldados.
Após um breve e novo retiro espiritual, ele
conseguiu novas adesões de discípulos e se lançou novamente no deserto. Isso,
somado à pregação religiosa de Yacine, fez com que as forças almorávidas
ganhassem uma grande adesão de soldados (cerca de 30.000 homens armados de
lanças, machados, maças, a pé, a cavalo e em camelos). Esse motivado exército
religioso varreu todo o Sudão ocidental.
Yaya morreu em 1056 em uma batalha contra os
djoddalas próxima a Atar. Yacine atacou o Marrocos (Maghreb el-Acsa) e morreu
no ano seguinte, quando os almorávidas passaram a ser dirigidos pelo emir Abu
Bakr. Este fundou em 1062 a cidade de Marrakech, apoderou-se de Fez, Tlemcen
(capital dos zenatas) e alargou seu poder até Argel. Depois disso, Abu Bakr
retornou para o sul e se instalou no Tagant, decidido a atacar e submeter o
Império negro de Gana.
VI.1. Os almorávidas na Península Ibérica
Mas antes de tratar do declínio de Gana e de sua
derrota para as forças almorávidas, abro um pequeno parêntese à conquista
almorávida da Península Ibérica (1092-1094), devido à sua importância para o
processo da Reconquista cristã. Nas palavras do conde D. Pedro de Portugal,
filho bastardo do rei D. Dinis e famoso cronista do século XIV, os almorávidas
eram “os melhores cavaleiros que os mouros tinham” (Crónica Geral de Espanha de
1344, 1990, vol. IV, cap. DLXVIII: 34).
Esses monges-soldados muçulmanos haviam declarado
uma guerra santa contra “os muçulmanos depravados dos reinos ibéricos” (CAHEN,
1992: 295).
Mesmo antes da invasão almorávida na Península
Ibérica, os governantes dos reinos de taifas, mais tolerantes com a convivência
e a afinidade entre moçárabes e andaluzes, já não se interessavam pela guerra
santa. A palavra taifa (que significa “partido, facção”) designa os principados
que se constituíram na Hispânia sobre os restos do califado omíada de Córdoba
(MIQUEL, 1971: 216).
Por exemplo, o rei de Granada, ‘Abd Allãh Nãsir,
conta em suas memórias que o hadjib Almançor (Muhammad ibn Abi ‘Amir) não
conseguiu convencer os andaluzes a fazer a guerra, pois eles “...declararam-se
incapazes de participar nas suas campanhas e alegaram (...) que não se achavam
preparados para combater e, por outro lado, que a sua participação nas
campanhas os impediria de cultivar a terra” (MATTOSO, 1985: 194).
Outro bom exemplo da nova mentalidade dicotômica
desses invasores berberes é a obra Ódio a cristãos e judeus do pensador
cordovês Ibn Abdun (séc. XII):
Um muçulmano não deve fazer massagem em um judeu
nem em um cristão, nem tirar suas sujeiras ou limpar suas latrinas, pois o
judeu e o cristão são mais indicados para essas atividades, que são tarefas
para gentes vis (…)
Deve proibir-se às mulheres muçulmanas que entrem
nas abomináveis igrejas, pois os clérigos são libertinos, fornicadores e
sodomitas.
Tratado de Ibn Abdun. In: SÁNCHEZ-ALBORNOZ, tomo
II: 219.
Curiosamente, os almorávidas praticavam a cinofagia
– morte de cães – uma prática e hábito culinário pré-islâmico presente em um
hadith do profeta: “Os anjos não entram em uma casa onde há um cão”:
A Hadith consiste na tradição oral das tribos que
habitavam a Arábia mais os ensinamentos de Maomé que não foram para o Livro,
mas que foram se formando através dos anos. Esta tradição é que conta a
história do Profeta, dos santos e dos outros profetas menores, entre estes
Jesus.
Os mulçumanos acreditam também nos gênios, fadas,
nos espíritos bons e maus, em práticas mágicas e outras coisas que, proibidas
aos fiéis, podem ser usadas pelos descrentes.
KHALIDI, 2001: 16-17.
Eles também inovaram a sociedade dos nômades
berberes e as das fronteiras do mundo negro, trazendo inovações táticas no modo
de se fazer a guerra. Acrescentaram aos exércitos regulares três fileiras de
arqueiros – precedendo a Europa cristã em quase dois séculos na superioridade
da infantaria de arqueiros sobre a cavalaria. Além disso, numa revolução
ideológica dos aspectos mentais do conflito, incluíram grupos com grandes
tambores, com o intuito de aterrorizar os inimigos.
Iluminura das “Estações de Hariri” (1237),
manuscrito da Biblioteca Nacional de Paris. Esta cena representa uma pequena
paragem antes do ataque decisivo, quando tocam as trombetas e rufam os
tambores. Ela pode estar se referindo a uma das primeiras batalhas do Islão na
Península Ibérica. No entanto, os trajes dos guerreiros e os jaezes das
montadas apontam para uma origem oriental e para a época em que a iluminura foi
elaborada. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. Antes de Portugal.
Lisboa: Editorial Estampa, s/d, p. 399.
Este novo estilo de guerra, mais agressivo, era
marcado basicamente pela fundamentação religiosa (MATTOSO, 1985: 194). Isto os
distinguia dos outros islamitas andaluzes da Península, desprezados pelos
berberes almorávidas. Assim, aconteceu a partir do século XI uma
“internacionalização” do conflito na Península Ibérica.
De um lado, cristãos peninsulares ligados
ideologicamente ao restante da Europa, especialmente ao reino franco; de outro,
muçulmanos ibéricos dos reinos de taifas auxiliados pelo conjunto de aliados da
África do Norte, por sua vez intransigentes na ortodoxia. Nesse contexto
deram-se as vitórias portuguesas do primeiro rei de Portugal, Afonso Henriques,
na batalha de Ourique (1146), e na tomada da cidade de Lisboa (1147), com o
auxílio de cruzados vindos do norte europeu.
VI.2. A queda do Império de Gana (1203)
Até esse avanço almorávida, o Império de Gana
conseguira suportar os ataques estrangeiros, tanto de tribos inimigas quanto
dos próprios berberes, graças ao seu exército composto de guerreiros soldados,
cavaleiros e arqueiros – citados por Al-Bakri em sua obra, como vimos.
No entanto, apesar de uma forte resistência, eles
foram derrotados pelos almorávidas e sua capital, Kumbi Saleh, foi tomada e
saqueada, por volta de 1076. Com essa vitória, os almorávidas receberam um
poderoso reforço, devido às conversões dos negros de Gana. Disso nos informa o
cronista Al-Zuhuri: “As gentes do Gana tornaram-se muçulmanas em 1076 sob a
influência dos lemtunas” (citado por KI-ZERBO, s/d: 147).
Abu Bakr prosseguia em sua tentativa de unificar as
tribos berberes e com elas atacar Gana. No entanto, morreu em uma escaramuça
por causa de uma flecha envenenada (1087). Gana reconquistou sua independência,
mas após a devastação e saque de sua capital, dez anos antes, o reino negro
nunca mais conseguiu recuperar seu antigo poderio. Pelo contrário, as caravanas
passaram a se desviar das rotas que privilegiavam o coração de Gana, e os
comerciantes passaram a optar por Tombuctu, Gao e Djena.
Os muçulmanos ricos se refugiaram em Walata,
especialmente depois do segundo saque da capital, Kumbi, em 1203, por parte do
rei sosso Sumaoro Kanté. Paralelo a esse declínio comercial aprofundou-se o
processo de islamização das etnias negras, embora sem nunca atingir todas as
camadas da população – e, de resto, o islamismo negro era bastante mesclado com
práticas animistas.
VII. O Império de Mali (c. 1235-1500)
A queda do Império de Gana abriu um vácuo de poder.
A grande questão era: quem tomaria agora o controle das rotas comerciais
próximas das fontes auríferas? Os almorávidas fracassaram em sua tentativa de
monopolizar o tráfico. O reino que parecia mais próximo de conseguir esse
intento era o reino sosso dos Kantés, ao sul de Gana.
Em 1180, surgiu um guerreiro, Diarra Kanté, de um
clã de ferreiros animistas adversários do Islão. Feiticeiro famoso e de
prestígio, Kanté conseguiu tomar a cidade de Kumbi Saleh, mas sem ocupar as
jazidas de ouro, controladas agora por uma tribo de camponeses, os malinqués
(“homem de Mali”). Kanté, após dominar o Dyara, o Bakunu e o Bumbu, apoderou-se
da região do Buré.
Kanté foi um pequeno interregno entre dois
impérios, Gana e Mali. Quanto ao segundo, não se conhecem as origens do reino
de Mali (ou Mandinga). Diferentes etnias viviam naquela região. Seus chefes se
diziam “caçadores-mágicos”, todos com ritos iniciatórios mais ou menos comuns.
Esses clãs estavam unidos pelo chamado “parentesco de brincadeira”, isto é, um
curioso direito e dever de fazer troça uns aos outros. O chefe gozava do
monopólio das pepitas de ouro. A estrutura social baseava-se em uma grande família
que dispunha de um campo comunitário (foroba) próximo à aldeia. Logo um dos
herdeiros sosso tomou o título de mansa (ou maghan), isto é, imperador.
Paralelo a esse processo de integração por parte
dos sosso acontecia a conversão ao Islamismo. Baramendana foi o primeiro rei a
se converter, graças ao pai de Abu Bakr, em 1050. A tradição conta que
Baramendana estava desesperado por causa de uma longa seca. Então se dirigiu a
um devoto lemtuna que o levou a um monte para passar uma noite rezando. Pela manhã
choveu, e o rei mandou destruir os ídolos animistas e se converteu ao
Islamismo.
A partir de 1150 se conhece relativamente bem a
cronologia dos reis de Mali. Hamana, Djigui Bilali (1175-1200), Mussa Keita,
Naré Famaghan (1218-1230) e principalmente Sundjata (ou Mari Djata, o “Leão do
Mali”), todos com estórias recheadas de lendas e mitos e transmitidas também
pelos griot, os “transmissores de ouvido” de cada etnia que passam de geração
para geração as tradições de sua cultura.
Na época de Sundjata, Mali era um reino
essencialmente agrícola. Os malinqués desenvolveram a cultura do algodão, do
amendoim e da papaia, além da criação de gado. Sundjata instituiu uma
associação de trinta clãs (de artesãos, de guerreiros, de homens livres – que,
no entanto, eram chamados de “escravos da coletividade”, os ton dyon). Com o
crescimento do reino, a categoria dos escravos se multiplicou – recorde que
sempre os reinos negros praticaram a escravidão.
Com o filho de Sundjata, Mansa Ulé (1255-1270) e
seus sucessores – Abubakar I, Sakura, Abubakar II – até Mansa Mussa (ou Kandu
Mussa, 1312-1332), o reino de Mali passou a ser conhecido no mundo ocidental.
Em 1324, Mansa Mussa realizou uma peregrinação a Meca, passando pelo Egito e
com a intenção de maravilhar os soberanos árabes.
Observe as feições alongadas do rosto do
personagem, aliás, de todo o corpo. Pode-se, assim, ter uma noção do tipo
físico predominante então, além de uma contemplação de posturas e gestos
corporais.
O Tarikh es Soudan! (1655), de autoria do mouro Es
Saadi, nos informa que ele atravessou o deserto passando por Walata e pelo Tuat
com 60.000 mil servidores (escravos), evidentemente um exagero – as cifras hoje
estão por volta de 500 (HEERS, 1983: 79). Chegou ao Cairo com cerca de duas
toneladas de ouro (!), em pó e em pepitas. O cronista Al-Omari (†1349) nos
conta:
Quando da minha primeira viagem ao Cairo, ouvi
falar da vinda do sultão Mussa (...) E encontrei os habitantes do Cairo todos
excitados a contarem as largas despesas que haviam visto fazer às suas gentes.
Este homem espalhou pelo Cairo ondas de
generosidade. Não deixou ninguém, oficial da coroa ou titular de qualquer
função sultânica, sem receber dele uma quantia em ouro. Que nobre aspecto tinha
este sultão! Que dignidade e que lealdade!
(citado por KI-ZERBO, s/d: 171).
Mansa Mussa foi tão generoso que, ao sair do Cairo,
foi obrigado a pedir um empréstimo a um riquíssimo mercador de Alexandria, para
que pudesse manter sua largueza até chegar a Meca...
Sua peregrinação fez o Império de Mali ser
conhecido por todo o mundo, e os mapas europeus passaram a citá-lo. Por
exemplo, tanto o de Angelo Dulcert Portolano (1339), quanto o Atlas catalão de
Abraão Cresques (1375), elaborado para o rei da França Carlos V (1338-1380), o
Sábio, trazem nitidamente o nome da capital (Ciutat de Melli), além do rei de
Mali, Mansa Mussa, sentado em seu trono e segurando uma pepita de ouro.
Este mapa catalão do século XIV do Norte da África
tem quatro reis, três africanos: o rei Mansa Musa de Mali (sentado, com uma
gema de ouro na mão direita), o rei de Organa, o rei da Núbia e o rei da
Babilônia.
Os dois números em vermelho no mapa marcam dois
textos. São eles: 1. “Toda esta parte tem gentes que ocultam a boca; só se vêem
seus olhos. Vivem em tendas e têm caravanas de camelos. Também possuem animais
de cujas peles fazem excelentes escudos”; 2. “Este senhor negro é aquele muito
melhor senhor dos negros de Guiné. Este rei é o mais rico e o mais nobre senhor
de toda esta parte, com abundância de ouro na sua terra” (tradução literal).
Observe que embaixo do globo de ouro que o imperador Mansa Musa segura na mão
direita está a representação da cidade de Tumbuctu.2
De regresso para Mali, o imperador trouxe consigo
um poeta-arquiteto, Abu Issak, mais conhecido como Es Saheli. Com ele,
construiu a grande mesquita de Djinger-ber, em Tumbuctu.
Os sucessores de Mansa Mussa tiveram dificuldades
de manter um território tão vasto. Depois de Maghan (1332-1336), até Mussa II
(1374-1387), o reino de Mali viu Tumbuctu ser saqueada, além de sucessivos
assassinatos palacianos que enfraqueceram o império. Lentamente a hegemonia
passava para o reino de Gao, que anexava uma a uma as províncias do leste, além
de tomar a cidade de Djena, metrópole comercial.
No final do século XV o Tekrur passou para os
domínios do estado volofo. Houve um curto período confuso entre a hegemonia do
Mali e do Gao. Várias etnias foram arrastadas para o movimento dos peules do
Bundu, conduzido por Tenguella I (chamado de “o Libertador”). O imperador do
Mali tentou até uma aliança com D. João II de Portugal, mas nenhuma das missões
portuguesas parece ter chegado a seu destino.
Ela preserva o mesmo estilo africano, tanto no tipo
de material da construção quanto no estilo, reto, simples e vertical. Observe
os paus enfiados nas paredes (como nas outras mesquitas exibidas nas demais
imagens): são andaimes usados ao longo dos séculos para restaurar os edifícios
de adobe e estuque, após o castigo sofrido pela construção nas concentradas e
breves chuvas anuais.
VII.1. A religião em Mali
Como todos os reinos negros islamizados desse
período, a religião em Mali era um misto de várias influências, especialmente
as pagãs. Por exemplo, Mussa desconhecia a interdição do Corão de ter mais de
quatro mulheres, e os malinqués comiam carnes proibidas pelo Islão. Sacerdotes
com máscaras de aves praticavam ritos animistas na corte. Em contrapartida, as
festas religiosas islâmicas eram celebradas com grande pompa. As crianças
aprendiam o Alcorão, às vezes com duros castigos – eram postas a ferro, por
exemplo.
VII.2. O imperador e sua corte em Mali (descrição
de Ibn Batuta)
Imagem 44. Ibn Batuta
africa44.jpg
O cronista muçulmano Ibn Batuta (1307-1377), um dos
maiores viajantes da Idade Média, chegou a Mali quinze anos depois da morte de
Mansa Musa, entre os anos 1352-1353. Em um belo texto medieval, esse notável
cronista muçulmano nos informa o fausto da corte do imperador de Mali (o texto
explicativo em parênteses é de minha autoria):
O sultão tem uma cúpula elevada, cuja porta se
encontra no interior de seu palácio e onde ele se senta com freqüência. Tem do
lado das audiências três janelas em arco, de madeira, cobertas de placas de
prata, e por baixo delas três outras guarnecidas de lâminas de ouro ou de prata
dourada. Estas janelas têm cortinados de lã que são levantados no dia da
audiência do sultão na cúpula (...)
Da porta do castelo saem trezentos escravos, uns
com arcos na mão, outros com pequenas lanças e escudos. Uns estão sentados,
outros de pé. À chegada do rei, três escravos precipitam-se para chamar o seu
lugar-tenente. Chegam os comandantes, assim como o pregador, os sábios
juristas, que se sentam à esquerda e à direita, diante dos homens de armas. À
porta, de pé, o intérprete dougha em grande aparato.
Está soberbamente vestido, em seda fina. O seu
turbante está ornado de franjas, que estas gentes sabem fazer admiravelmente.
Tem um sabre a tiracolo, cuja bainha é de ouro. Nos pés botas e esporas (...)
Tem na mão duas lanças curtas. Uma é de prata, a outra é de ouro. As pontas são
de ferro. Os militares, o governador, os pajens ou eunucos e os mesufitas
(mercadores berberes e sarakholés) estão sentados no exterior do lugar das
audiências, numa longa rua, vasta e com árvores.
Cada comandante tem diante de si os seus homens,
com as suas lanças, os seus arcos, os seus tambores, as suas trompas, enfim,
com os seus instrumentos de música feitos com caniços e cabaças, em que se bate
com baquetas e que dão um som agradável (as trompas eram feitas de marfim das
presas de elefantes). Cada um dos comandantes tem sua aljava às costas. Tem o
seu arco à mão e anda a cavalo (...) No interior da sala de audiências e nas
janelas vê-se um homem de pé. Quem desejar falar ao rei dirige-se primeiro ao
dougha. Este fala ao dito personagem que está de pé e este último ao soberano.
Instala-se então um grande estrado com três degraus
debaixo de uma árvore. É o pempi.3 É coberto de seda e guarnecido de almofadas.
Por cima instala-se o guarda-sol, que parece uma cúpula de seda, no alto da
qual se vê uma ave do tamanho de um gavião.
O rei sai por uma porta aberta num ângulo do
castelo. Tem o seu arco à mão e a aljava às costas. Traz na cabeça um solidéu
de ouro, fixado por uma pequena faixa também de ouro, cujas extremidades são
pontiagudas como facas e com mais de um palmo de comprimento. Na maioria das
vezes, traz uma túnica vermelha e felpuda, feita com tecidos de fabricação
européia chamados mothanfas. Diante dele saem os cantores, tendo na mão um
kanabir de ouro e de prata (O kanabir era uma calhandra, isto é, uma espécie de
cotovia, sabiá-do-campo).
Atrás dele encontram-se cerca de trezentos escravos
armados. O soberano caminha lentamente. Aproxima-se devagar e pára mesmo de vez
em quando. Chegado ao pempi, deixa de caminhar e olha para os assistentes. Em
seguida, sobe lentamente o estrado, como o pregador sobe ao púlpito. Uma vez
sentado, tocam-se os tambores e fazem-se soar as trompas e as trombetas.
citado por KI-ZERBO, op. cit.: 176-177.)
Alguns dos pajens escravos do rei eram comprados no
Cairo. Era expressamente proibido espirrar em sua presença. Os cortesãos
vestiam-se de branco, com tecidos de algodão cultivado na própria terra. As
jovens e mulheres escravas, em contrapartida, andavam completamente nuas, para
escândalo de Ibn Batuta. Ele ainda estranhou a comida: “Dez dias depois de
nossa chegada, comemos um mingau que eles preferem a qualquer outra comida. Na
manhã seguinte, estávamos todos doentes” (citado por DAVIDSON, op. cit.: 150).
VII.3. A organização política e a vida econômica
No século XVI, tempo de Mahmud Kati, historiador e
conselheiro do Askia Mohammed, o império tinha cerca de quatrocentas cidades e
vilas. O sistema de governo era descentralizado. Era dividido em províncias,
administradas por um dyamani tigui (ou farba). As províncias eram subdivididas
em conselhos (kafo) e aldeias (dugu).
A autoridade da aldeia poderia ser bicéfala: um
chefe político, outro religioso. O farba recolhia impostos e requisitava
tropas, caso necessário. Havia ainda reinos subordinados que reconheciam a
hegemonia do imperador, enviando regularmente presentes.
Um dos segredos do Império de Mali foi a
maleabilidade de seu sistema político, única lógica possível em uma estrutura
sem burocracia, além da tolerância religiosa. Povos tão variados como os
tuaregues, os songais, os malinqués e os peules, reconheceram, durante mais de
cem anos, a soberania do imperador de Mali. Há um elogio do cronista Ibn Batuta
que expressa bem esse sentimento de confiança no funcionamento da estrutura do
império:
Não é necessário andar de caravana. A segurança é
completa e geral em todo o país (...) O sultão não perdoa a ninguém que se
torne culpado de injustiça (...) O viajante, tal como o homem sedentário, não
tem a temer os malfeitores, nem os ladrões, nem os que vivem de pilhagem.
Os pretos não confiscam os bens dos homens brancos
que venham a morrer nas suas terras, ainda mesmo que se trate de tesouros
imensos. Depositam-nos, pelo contrário, em mãos de um homem de confiança dentre
os brancos, até que se apresentem aqueles a quem revertam por direito e tomem
conta deles.
(citado por KI-ZERBO, op. cit.: 180).
Esse é um belo testemunho da grandeza do Mali,
feito pelo maior viajante da época.
VIII. O Império de Songai (de Gao)
Imagem 45. Máxima extensão do Império de Songai
(século XVI)
Uma das características mais perenes das sociedades
pré-industriais e iletradas (ou semiletradas) é a existência de mitos de origem
relacionados à cultura e especialmente ao poder monárquico, além de suas
manifestações sociais, todos mitos originários das tradições orais africanas
(Controversial Origins). Além disso, os homens das sociedades pré-industriais
também tinham uma forma bastante distinta de se relacionar com o mundo (a
natureza) e com seus animais.
O caso do Império de Songai (ou de Gao) é um deles.
Sua estória começa com o mito do feiticeiro Faran Makan Boté. Ele nasceu de um
pai sorko e uma “mãe-fada ligada aos espíritos das águas”. Ao subir o rio,
Makan Boté se aliou aos caçadores gows e pescadores sorkos, e passou a exercer
as funções de grande sacerdote (kanta) junto a camponeses na região de
Tillabery. Assim teriam nascido as energias mágicas do Songai (KI-ZERBO, op.
cit.: 181).
Mas a lenda não pára aqui. Por volta do ano 500,
príncipes berberes chegaram às margens da curva do rio Níger e libertaram os
pescadores sorkos e camponeses gabibis do terror de um peixe-feiticeiro (seria
um descendente de Makan Boté). O autor da façanha teria sido Za Aliamen, e a
partir de então sua dinastia reinaria em Kukya até 1335 (no mapa acima, a
região assinalada entre Tumbuctu e Gao). Por volta de 1009, Diá Kossoi,
décimo-quinto rei da dinastia fundada por Za Aliamen, fixou sua capital em Gao.
Ele foi o primeiro rei a se converter ao Islamismo. Já no século XI, Gao
rivalizava com a cidade de Kumbi, capital de Mali.
Esse surto de desenvolvimento despertou a cobiça
dos malinqués: em 1325, Gao foi conquistada pelo Império de Mali, mas em 1337,
dois irmãos e príncipes songaleses – Ali Kolen (ou Golon) e Suleiman Nar –
conseguiram se desvencilhar da dominação mali, e Ali Kolen fundou a nova
dinastia dos Sis (ou Sonnis).
Suleiman
Daman (ou Dandi), décimo-oitavo rei da dinastia Sonni, teria conquistado a
cidade de Mesma, mas foi com Sonni Ali (1464-1493), ou Ali Ber (o Grande), ou
ainda Dali (o Altíssimo), imperador songai e grande feiticeiro, é que o império
se afirmou definitivamente. Sonni Ali conquistou Tumbuctu – então sob o domínio
tuaregue –, realizando um verdadeiro massacre (1468), motivo pelo qual os
escritores muçulmanos terem-no apresentado como um tirano sanguinário, um ímpio
(Sunni Ali).
Ali
também conquistou Djenne (1473), após noventa e nove tentativas (!) dos
malinqués de se apoderar de volta da cidade, além do centro de Macina, um pouco
mais ao norte. Abriu ainda um canal d’água a oeste do lago Faguibine (ver
imagem 42) e ordenou a redação das atas oficiais do reino. Com sua morte, em
1492, seu filho Sonni Bakary assumiu a coroa, mas reinou somente um ano.
Em
seguida, houve uma tomada do poder: o filho de Sonni renegou a fé islâmica e um
lugar-tenente chamado Mohammed Torodo, assumiu o trono, com o nome de Askia
Mohammed, com a ajuda dos ulemás, corpo de estudiosos (HOURANI, op. cit.: 77).
Como
Mussa, Askia também realizou uma luxuosa peregrinação a Meca em 1496, com
quinhentos cavaleiros e mil homens a pé. Esse mini-exército de escravos e
homens livres levava consigo 300.000 peças de ouro, um terço distribuído em
esmolas durante a viagem. No Hedjaz, Askia conseguiu do califa o título de
“califa do Sudão”: Khalifatu biladi al-Tekrur.
Do
califa Mohammed até Askia Ishak I (1539-1549), o império adquiriu cada vez mais
territórios, graças às guerras – e apesar das intrigas e assassinatos políticos
palacianos. Por exemplo, no tempo de Askia Mohammed Bunkan (1531-1537), o
imperador de Songai tinha uma grande corte com um harém, seus cortesãos
recebiam roupas de fazenda e braceletes (mantendo a tradição medieval do
soberano vestir, literalmente, seus convivas) e uma orquestra, com novos
instrumentos (trombetas e tambores) acompanhava o príncipe em suas viagens. A
guarda pessoal do soberano era composta de 1.700 homens. O império então se
estendia por mais de dois mil quilômetros, de Teghazza ao país dos mossi (norte
a sul), de Agades a Tekrur (leste a oeste).
Mais
bem organizado e estruturado que o império de Mali, Songai estava fundado em
torno da pessoa do imperador. No dia de sua entronização, ele recebia um selo,
uma espada e um Corão, além de conservar dois atributos mágicos antigos: o
tambor e o fogo sagrado (dinturi). A corte obedecia a um rígido protocolo: por
exemplo, o cuspe do príncipe não podia cair no chão, sendo recolhido nas mangas
de qualquer um dos setecentos homens vestidos de seda que o acompanhavam. Como
em Mali, todos os que se aproximavam dele deveriam cobrir a cabeça de pó, com
raras exceções (no caso do general do exército, este utilizava farinha).
A
formação do exército, dividido por sua vez em vários corpos, reestruturou a
sociedade: isento de ir à guerra, o povo trabalhava na terra, na produção
artesanal e no comércio. A “burocracia” era muito estratificada (citemos apenas
alguns cargos): os altos funcionários (os koy, os fari), ministros e
governadores das montanhas (tondi-fari), feiticeiras (que tinham a permissão de
dirigirem-se ao imperador pelo nome), o governador da província (gurma-fari)
que era o celeiro agrícola do império, o ministro da navegação fluvial
(hi-hoy), o chefe dos cobradores de impostos (fari-mondyo), o sacerdote do
culto aos antepassados (horé-farima), o inspetor das florestas (sao-farima), o
chefe dos pescadores (ho-koy), e ministro encarregado dos homens brancos
residentes no império (korey-farima). Todos eram nomeados e demitidos pelo
imperador a seu bel-prazer.
A
economia songai é hoje calculada com base no número de escravos disponíveis
para o trabalho no campo. Por exemplo, uma terra com duzentos escravos deveria
produzir cerca de 250 toneladas de arroz por ano (1.000 sunus). O historiador
Ki-Zerbo descarta a possibilidade de comparação desse sistema escravocrata com
o feudalismo europeu, embora defenda um princípio semelhante para o caso
africano: a existência do sistema religioso-simbólico de dádiva e contra-dádiva
atenuava a opressão escravocrata. Pois o que interessava ao senhor da terra era
ter o maior número de famílias e aldeias de servos, não apenas a exploração
econômica (KI-ZERBO, op. cit.: 187-188).
Isso
certamente é um caráter análogo ao sistema sócio-econômico vigente cerca de
quatrocentos anos antes na Europa medieval. Esse sistema, também chamado de dom
e contra-dom, está bem expresso em um documento, escrito pelo historiador
soninké de Tumbuctu, Mahmud Kati (Tarikh el-Fettach – a Crônica do Buscador –
obra escrita em 1520). Nele, há um interessante e expressivo diálogo em que o
imperador Askia Daud concede a liberdade a uma escrava. Ela, por sua vez,
sentindo-se presa a ele, declara:
É
necessário que eu te traga um tributo para que, com ele, te lembres de mim.
Será de duas barras de sabão no princípio de cada ano.
Então o
imperador respondeu:
E eu
também quero, para obter o perdão do Altíssimo e a Sua indulgência, mandar-te
pagar um tributo, que receberás de mim no princípio de cada ano e que será
constituído por uma barra inteira de sal e por um grande pano preto. Aceita-o,
pelo amor de Deus.
(citado
por KI-ZERBO, op. cit.: 188)
Observe
os comentários do próprio autor escritos nas margens.
O ouro
e o sal serviam de moeda corrente em Songai, mas a principal moeda eram os
cauris, conchas de moluscos utilizadas como moeda de troca até meados do século
XIX – e isso do Sudão à China. De qualquer modo, os imperadores Askias
procederam a uma unificação de pesos e medidas para evitar fraudes.
As
cidades do império eram bastante populosas, e parece que suas gentes se
orgulhavam disso. Um trecho da mesma obra de Mahmud Kati ilustra muito bem esse
sentimento de auto-estima:
Tendo
surgido uma contenda entre as gentes de Gao e as de Cano quanto a saber qual
das duas cidades era a mais populosa, frementes de impaciência, jovens de
Tombuctu e alguns habitantes de Gao intervieram e, pegando em papel, em tinta e
em penas entraram na cidade de Gao e puseram-se a contar os grupos de casas,
começando pela primeira habitação a oeste da cidade, e a inscrevê-las uma após
a outra, “casa de fulano”, “casa de sicrano”, até chegarem às últimas
construções da cidade, do lado leste. A operação levou três dias e contaram-se
7.626 casas, sem incluir as cubatas construídas de palha.
(citado
por KI-ZERBO, op. cit.: 189)
Esse
certamente é um dos primeiros censos conhecidos em África, talvez mesmo um dos
primeiros do fim da Idade Média européia. Com ele, os historiadores puderam
calcular uma população citadina de cerca de 100.000 habitantes.
VIII.1.
Tumbuctu renasce na pena de Al-Hasan (1483-1554)
Todas
essas cidades eram grandes centros de estudos, especialmente dos textos
religiosos e de Direito (notadamente a jurisprudência). Em sua obra Descrição
da África (1526), o granadino Al Hasan, chamado de Leão, o Africano (al-Hasan
ibn Muhammad al Wazzân az-Zayâtî, 1483-1554), nos dá preciosas e claras
informações sobre a cidade de Tumbuctu (os comentários em parênteses são meus):
O reino
recebeu recentemente esse nome, depois que uma cidade foi construída por um rei
chamado Mansa Suleyman, no ano 610 da Hégira (1232), próxima doze milhas de uma
filial do rio Níger (Mansa Suleiman reinou nos anos 1336-1359. Na verdade, a
cidade de Tumbuctu foi provavelmente fundada no século XI pelos tuaregues, e
antes foi capital do reino de Mali em 1324).
As
casas de Tombuctu são choupanas feitas de pau-a-pique de argila, cobertas com
telhados de palha. No centro da cidade há um templo construído de pedra e de
almofariz por um arquiteto de nome Granata.4
Além do
templo, há um grande palácio também construído pelo mesmo arquiteto, onde o rei
vive. As lojas dos artesãos, dos comerciantes, e, especialmente, as dos
tecelões de pano de algodão, são muito numerosas. As telas são importadas da
Europa para Tombuctu, carregadas por comerciantes da Barbária.5
As
mulheres da cidade mantêm o costume de vendar seus rostos, com exceção dos
escravos, que vendem todos os gêneros alimentícios. Os habitantes são tão
ricos, especialmente os estrangeiros que se estabeleceram no país, que o rei
atual deu duas de suas filhas a dois irmãos, ambos homens de negócios, pois era
ciente de suas riquezas.6
Há
muitos poços que contêm água doce em Tumbuctu. Além disso, quando o rio Níger
está cheio, canais levam a água para a cidade. Grãos e animais são abundantes,
de modo que o consumo de leite e de manteiga é considerável. Contudo, o
fornecimento de sal é fraco, porque ele é levado daqui para Tegaza, que fica
cerca de 500 milhas de Tumbuctu.
Eu
mesmo estava na cidade no momento em que uma carga de sal foi vendida por oito
ducados. O rei tem um rico tesouro rico de moedas e pepitas de ouro. Uma dessas
pepitas pesa 970 libras.7
A corte
real é magnífica e muito bem organizada. Quando o rei vai de uma cidade a outra
com as gentes de sua corte, monta um camelo e os cavalos são conduzidos
manualmente por servos (escravos). Se a luta é necessária, os servos montam os
camelos e todos os soldados montam nas costas dos cavalos. Quando alguém
desejar falar com o rei, deve ajoelhar-se diante dele e curvar-se ao chão; mas
isto é exigido somente daqueles que nunca falaram nem com o rei, nem com seus
embaixadores.
O rei
tem aproximadamente 3.000 cavaleiros e uma infinidade de soldados de
infantaria, todos armados com arcos feitos de funcho selvagem, e com o qual
disparam setas envenenadas.8
Este
rei faz a guerra somente contra os inimigos vizinhos e contra aqueles que não
aceitam lhe pagar tributo. Quando obtêm uma vitória, ele vende todos os
inimigos, inclusive as crianças, no mercado em Tumbuctu.
Os
pobres cavalos nascem pequenos neste país. Os comerciantes usam-nos para suas
viagens e os cortesãos para mover-se na cidade. Os bons cavalos vêem da
Barbária. Chegam em uma caravana e, dez ou doze dias mais tarde, são conduzidos
ao soberano, que, caso goste, os examina e paga apropriadamente por eles.
O rei é
um inimigo declarado dos judeus. Ele não permitirá que nenhum deles viva na
cidade. Caso ouça que um comerciante da Barbária anda ou faz negócio com eles,
o rei confisca seus bens. Há numerosos juízes em Tumbuctu, professores e
sacerdotes, todos bem nomeados pelo rei, que honra muito as letras. Muitos
livros escritos à mão e importados da Barbária são vendidos. Há mais lucro
nesse comércio do que em toda a mercadoria restante.
Ao
invés de dinheiro, são usadas pepitas puras de ouro como moeda de troca. Para
compras pequenas, escudos de cauris trazidos da Pérsia; quatrocentos cauris
igualam um ducado. Seis ducados e dois terços correspondem a uma onça romana de
ouro.9
Os
povos do Tumbuctu são de natureza calma. Têm um costume quase regular de
caminhar à noite pela cidade (com exceção daqueles que vendem ouro), entre dez
e uma hora da madrugada, tocando instrumentos musicais e dançando. Os cidadãos
têm muitos escravos a seu serviço, tanto homens quanto mulheres.
A
cidade corre muito perigo de incêndios. Quando eu estava lá em minha segunda
viagem (provavelmente em 1512), metade da cidade queimou no espaço de cinco
horas. Com medo de o vento violento levar o fogo para a outra metade da cidade
e também queimá-la, os habitantes começaram a tirar seus pertences.
Não há
nenhum jardim ou pomar na área que cerca Tumbuctu.
(Leo Africanus: Description of Timbuktu, from The
Description of Africa [1526])
VIII.2.
A educação no Império de Songai
Como em
todo o mundo urbano islâmico, a educação era muito incentivada pelos potentados
locais. Tumbuctu e as demais cidades do Império de Songai tinham muitos
professores e uma antiga tradição de centros de estudos. Em Tumbuctu, por
exemplo, a universidade de Sankore, organizada em torno de três mesquitas
(Jingaray Ber, Sidi Yahya e Sankore), abrigava já no século XII cerca de 25.000
estudantes, isso em uma população de cerca de 100.00 pessoas, como vimos (ver
University of Timbuktu).
Imagem
50. Universidade de Sankore, construída por volta do século IX
Doutores
atravessavam o deserto para ministrar seus cursos ou assistir a alguma
disciplina de um colega. O cádi (juiz) de Tumbuctu, Mahmud, inspirava
reverência dos Askias e de seus ministros - suas funções eram distintas das do
governador, pois não tinha deveres políticos ou financeiros, cabendo-lhe
somente decidir conflitos e tomar decisões à luz do sistema islâmico de leis
(HOURANI, op. cit.: 56)
Muitas
vezes o cádi censurava abertamente o imperador nos conselhos, quando se
sentavam ao lado dos generais. Por exemplo, novamente segundo Mahmud Kati em
sua obra Tarikh el-Fettach (1520) – e se acreditarmos na sinceridade de seu
relato - ele teria dito pessoalmente ao Askia Mohammed, de quem era
conselheiro:
Esqueceste
ou finges esquecer o dia em que me foste procurar em casa e me pegaste pelo pé
e pelas roupas, dizendo-me “Venho colocar-me sob a tua proteção e confiar-te a
minha pessoa para que me livres do fogo do Inferno”? Foi por esse motivo que
pus fora os teus enviados.
(citado
por KI-ZERBO, op. cit.: 190)
Como se
vê – e Ki-Zerbo destaca muito bem isso em sua obra – a soberba universitária
tem longa tradição mundo afora, e aqui se misturava ao clericalismo vigente no
século XVI.
Desse
celeiro de estudiosos de Songai, o mais ilustre sem dúvida foi Ahmed Baba (c.
1556-1620). Nascido em Arauane (dez dias de marcha de Tumbuctu a Tuat), Baba
teria escrito setecentas obras (!), dentre elas um dicionário dos sábios do
rito malekita e um tratado sobre as populações do Sudão ocidental. Seus estudos
abrangiam praticamente todo o campo dos estudos islâmicos da época: Língua
Árabe, Retórica, Exegese corânica e Jurisprudência. Sua biblioteca tinha cerca
de 1.600 obras.
Mahmud
Kati escreveu com entusiasmo sobre esse ambiente cultural efervescente no
Império de Songai, e com ele termino minha narrativa da expansão muçulmana na
África e o surgimento dos impérios negros ao sul do Saara:
Naquele
tempo, Tombuctu era sem igual entre as cidades do país dos Negros pela solidez
das instituições, pelas liberdades políticas, pela pureza dos costumes, pela
segurança das pessoas e dos bens, pela clemência e compaixão para com os pobres
e os estrangeiros, pela cortesia em relação aos estudantes e aos homens de
ciência e pela assistência prestada a estes últimos.
(citado
por KI-ZERBO, op. cit.: 191)
Assim,
até o século XVI, o Império de Songai, como o restante da África negra, conheceu
um grande desenvolvimento e expansão. No entanto, a partir de então, os estados
muçulmanos passariam a um expansionismo brutal (o primeiro deles o reino de
Marrocos, muito interessado nas minas de sal do outro lado do deserto). Somado
a isso, a Europa passou a conhecer a África e utilizá-la para seus fins
igualmente expansionistas. “É o começo de uma aventura sombria”, afirma
Ki-Zerbo (KI-ZERBO, op. cit.: 251).
Essa
escultura de madeira patinada (com verniz oxidado pelo tempo e pela luz) é uma
boa metáfora de encerramento de nossa narrativa. A partir de então – século XVI
– a África se ajoelhou e se rendeu a seus conquistadores muçulmanos e europeus,
cada vez mais ávidos de homens e riquezas, cada vez mais aproveitadores, tanto
do sistema escravocrata vigente na África (entre muçulmanos negros, berberes e
entre as tribos não-muçulmanas) quanto de suas rotas de comércio e exploração
de metais e produtos.
Este
trabalho é dedicado ao querido e saudoso Professor Mário Maestri Filho, que nos
distantes idos de 1983 ministrou a então inédita disciplina História da África
no curso de História da Universidade Santa Úrsula, matéria que tive a honra de
assistir como aluno e que me fez despertar o interesse pelas culturas negras
medievais africanas.
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