De vigia a grande nome da arte negra: conheça a história Agnaldo dos
Santos
Exposição na Capela do MAM quer mostrar a
complexidade e importância da obra do escultor baiano, que viveu somente 35
anos
Quem caminha por uma das ruas adjacentes à Praça
Kant, em São Paulo, provavelmente não faz ideia de que um daqueles pedaços de
terra homenageia um baiano que tem produção artística inversamente proporcional
ao seu próprio tempo de vida. Um homem preto, que conseguiu chegar a espaços
importantes da arte brasileira com seu trabalho, vivendo somente 35 anos.
A arte entrou na vida de Agnaldo Manuel dos Santos
meio por acaso. O rapaz nascido no povoado da Gamboa, em Mar Grande, na Ilha de
Itaparica, decidiu se mudar para Salvador na famosa busca por uma vida melhor
perto dos 20 anos. No Porto da Barra, conheceu Mário Cravo Júnior, que tinha um
ateliê na região e conseguiu convencer o artista a emprega-lo como vigia
do espaço.
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Mais de seis décadas após o seu falecimento, em
1962, o escultor ganha homenagem com uma exposição no Museu de Arte
Moderna da Bahia (MAM). Aberta na semana passada. Agnaldo Manuel dos Santos - A
Conquista da Modernidade está na Capela do MAM e é fruto do trabalho da
curadora e historiadora de arte Juliana Ribeiro Bevilacqua, que conheceu o
itaparicano quando trabalhou no Museu Afro-Brasil, em São Paulo.
"Quando o museu foi inaugurado, em 2004, já
exibia um conjunto expressivo de esculturas de Agnaldo. Em 2013, comecei a
estudar a produção dele de forma sistemática. Me intrigou muito um discurso que
era projetado pra ele como um artista primitivo, popular, sem referência, que
era uma produção fruto do inconsciente. Eu me incomodava porque via uma coisa
completamente diferente e, ao longo de minhas pesquisas, percebi o quanto ele
explorou referências específicas e é o que tento mostrar na exposição", afirma
a curadora.
Artista único
Juliana conta que a carreira artística de Agnaldo
tem início justamente a partir de seu trabalho como vigia. Seis anos após o
primeiro contato com Mário Cravo, o rapaz começa a produzir seus próprios
trabalhos autorais, em 1953. O encorajamento para a produção própria surgiu
depois de um período auxiliando o escultor. Para o seu próprio ofício, no
entanto, Agnaldo tinha bem definido qual seria a sua matéria prima: a madeira.
"Ele é um artista fundamental porque é único.
A maneira como ele produziu, durante somente nove anos. Trabalhou como artista,
jovem, mas criou uma identidade artística muito potente, consistente,
única", diz Juliana. A admiração da curadora vai na contramão da maneira
como seu trabalho foi avaliado ao longo do tempo.
Mestra em Estudos Étnicos e Africanos pela
Universidade Federal da Bahia (Ufba) e com atuação como educadora em museus
como o de Arte Sacra de São Paulo e o próprio Afro Brasil, Daniela Ortega
conta que seu interesse pelo artista começou por sua relação pessoal com
a Ilha de Itaparica e por rejeitar o estigma de que o trabalho de Agnaldo tinha
poucas referências.
Essa compreensão de que Agnaldo Manuel tinha uma
arte rasa e de poucas referências é carregada de racismo, avaliam Daniela e
Juliana. A curadora da exposição no MAM ilustra como ele tinha suas referências
e era um artista muito preocupado com suas escolhas ao citar uma entrevista
para o médico Clarivaldo do Prado Valadares, crítico de arte que
questionou o porquê de sua escultura Oxóssi empunhar espingarda e facão
em vez do tradicional arco e flecha.
"Ele responde: 'você acha que Oxóssi hoje
caçaria com arco e flecha? '. Isso resume bem o artista que prezou por sua
liberdade de experimentar, de não ficar preso às convenções tradicionais de
representação, seja do imaginário católico ou do candomblé".
Morte precoce
Viúva de Agnaldo, dona Ernestina Miranda dos Santos
tem hoje 85 anos. Ela esteve presente na abertura da exposição e contou que o
marido morreu vítima de doença de Chagas, aos 35 anos. “Com sua morte, fiquei
sozinha com três filhos pequenos, uma com meses de vida”, recorda Ernestina.
Ela tem orgulho do homem que amou e pede para que a
população do Estado prestigie e conheça o trabalho dele, assim como ele
conseguiu alcançar no Brasil e no mundo. Depois da sua morte, Agnaldo foi
reconhecido com o prêmio internacional de escultura no 1° Festival Mundial de
Arte e Cultura Negra, em Dakar, Senegal (1966), pela escultura Rei. Obras dele
estão no acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro e em
importantes coleções privadas.
"Agnaldo foi um baiano, negro, que trabalhou
por tão pouco tempo e deixou essa herança, essa enormidade, essa coisa linda
que são os trabalhos dele. Uma pessoa que foi um ajudante e hoje vemos esse
grande e importante escultor. Os jovens que estão chegando aí, venham ver os
trabalhos dele", defende a viúva.
A coleção apresentada no MAM reúne
cerca de 46 peças representando orixás, santos, ex-votos, carrancas e figuras
humanas. Os dois últimos, principalmente, falam muito sobre o trabalho do
artista. Para o ex-curador do MAM e atual diretor do Palacete das Artes, Daniel
Rangel, a chegada da mostra de Agnaldo é como um retorno de um filho que passou
anos fora de casa.
“Essa exposição está em sintonia com o momento
atual do MAM, que desde o final de 2021 retoma o programa curatorial iniciado
por Lina Bardi, de forma atualizada; ela pensou um museu moderno, baiano e
nordestino, que apresenta uma modernidade/contemporaneidade: negra, indígena e
popular”, conclui Rangel. Vale destacar que a primeira mostra de Agnaldo foi
organizada pela arquiteta Lina Bo Bardi, que era admiradora do trabalho do
baiano.
A exposição de Agnaldo dos Santos pode ser
vista gratuitamente no MAM-BA, no Solar do Unhão, de terça a domingo,
sempre das 13h às 17h.
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