Opinião
– Quando a ‘consciência’ se torna uma senzala – por Jénerson Alves*
Mário
Flávio - 21.11.2020
Celebrado
em 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra é, em tese, um momento para
refletir sobre o racismo e o preconceito. A data foi escolhida em alusão à
morte de Zumbi, um líder sobre o qual pouco se sabe. As poucas informações
acerca da vida do quilombola e a ausência de um legado palpável são tratados
como de somenos importância por aqueles que se valem da efeméride para apregoar
visões ideológicas. Ao invés de um debate sobre problemas reais, por vezes, a
data se transforma em uma mera cantilena de jargões inúteis, ideologizados, que
em pouco (ou nada) contribuem com o debate público.
Quando
sobram discussões vagas, faltam espaços para reflexões. Sem um aprofundamento
de conteúdo, a tal da “Consciência Negra” se transforma em uma senzala
ideológica, na qual um coletivismo desesperado ‘engole’ as individualidades.
Neste cenário, intelectualidade e linguagem são lançadas no lixo – um fenômeno
que não é raro e já fora estudado minuciosamente pelo filósofo
germano-americano Eric Voegelin.
Concordo
com o professor Paulo Cruz, o qual afirma que, se há de ter um ícone para o
movimento negro do Brasil, mais assertiva escolha seria a de André Rebouças.
Mentor do abolicionismo, Rebouças sentia grande pesar pela condução do processo
abolicionista no Brasil, bem como pelos desdobramentos dela provenientes. Em
uma carta endereçada a Joaquim Nabuco, Rebouças comentou sobre o aniversário da
abolição desta forma: “A 13 de maio de 1889 eu tive uma tristeza inexplicável.
Lembra-se que foi necessário telegrama para tirar-me do meu isolamento de
Petrópolis… Na tarde de 22 de agosto de 1888, quando voltávamos da faustosa e hipócrita
recepção do Imperador, eu lhe disse ao ouvido: ‘agora posso dormir tranquilo…’
Parecia-me que, a todo o momento, os escravocratas assassinavam a princesa
redentora e cobriam de sangue a página santa, que havíamos escrito durante oito
longos anos…”.
Bem
sabemos que, como foi conduzida, a abolição da escravatura no Brasil gerou uma
multidão de famélicos, que foram marginalizados da sociedade. As senzalas
materiais pariram favelas, e um abismo praticamente intransponível se gerou
entre os ‘brasis’. Todavia, talvez o que tem sido apresentado como remédio
apenas prolonga a ferida, ao invés de saná-la. Os discursos daqueles que se
autoproclamam ‘do bem’ são, muitas vezes, tomados por um ódio cego e militante.
Analisando este tipo de fenômeno, o filósofo romeno Gabriel Liiceanu disse:
“(…) o ódio tornou-se impessoal à medida que nem o que odeia é uma pessoa
isolada (mas membro de um grupo, de uma organização, de um partido, de um
‘movimento’ etc.). Nem o que é odiado é isolado, mas pertence a uma categoria (de
classe, de raça, de nação, de religião)”.
Fujamos
da militância do ódio e voltemos os olhos para Rebouças. Ele bem dissera que a
escravidão não seria derrotada por intermédio de “utopias socialistas nem de
violências”, mas pelo trabalho, pela cultura e pelo esforço. É possível que
esta seja uma das maiores lições que podemos tirar para o tempo presente. Não
será o ‘movimento negro’ que salvará o negro das grades do preconceito, mas uma
emancipação de negros em movimento.
Cabe,
portanto, lembrar-se do que já nos ensinara outro negro: Santo Agostinho. O
Bispo de Hipona dizia que há uma lei existencial para a vida em sociedade (vita
socialis): o amor (charitas). Para Agostinho, “o amor fraterno é o que nos faz
amar uns aos outros. Este amor não somente vem de Deus, mas é Deus. Portanto,
quando por amor amamos o próximo é por Deus que o amamos. É impossível que nós
não amemos o próprio amor; pelo qual nós amamos os irmãos. Porque Deus é amor,
necessariamente quem ama a Deus, ama seu irmão” (De Trin., VIII, 12; IX, 10).
Este
amor é a essência que alimentou homens como Luther King e Dom Hélder Câmara.
Que possamos beber da mesma fonte e exalar da mesma seiva, para libertarmo-nos
da sensala ideológica e experimentarmos a liberdade do amor. Neste dia, a
consciência não terá cor: será transparente como o rio da água da vida.
Jénerson
Alves
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