Regina Duarte faz melhor discurso de posse e leva frescor para a
política
Imagem: Reinaldo Polito/UOL
Reinaldo
Polito
04/03/2020 13h08
A política é como o show business: você tem uma
estreia fantástica, desliza por algum tempo e termina num inferno.
Ronald Reagan
Ronald Reagan
Regina Duarte acaba de tomar posse como secretária
especial da Cultura. O evento deste dia 4 de março no Palácio do Planalto foi
muito concorrido. Contou com a presença de centenas de convidados, de muitos
ministros e do presidente da República. Talvez uma das posses mais aguardadas e
badaladas neste governo. Mais aguardada e badalada até que a da posse da
maioria dos ministros. A cultura está subordinada ao Ministério do Turismo por
estar, mas, por sua relevância, tem status de verdadeiro ministério.
Certa vez, conversando com Max Gehringer, ele me
disse: "Polito, já reparou como tudo o que fazemos na vida, sem que
atentemos, acaba tendo utilidade? Analise o nosso caso. Quando garotos, logo
depois de termos trocado as calças curtas pelas compridas, porque naquela época
os meninos só podiam usar calças compridas depois de deixarem de ser crianças,
brincamos de atuar como locutores em serviços de alto-falantes nas quermesses
do interior. E veja como depois de mais de 40 anos essa experiência tem sido
útil nas nossas atividades como palestrantes, professores e apresentadores de
programas de rádio e televisão!"
Regina
Duarte interpretou a si própria

Os 50 e tantos anos em que Regina Duarte atuou como
atriz foram fundamentais para que ela fizesse o melhor discurso de posse já
presenciado em Brasília. Um espetáculo que merecia ingresso pago. Uma
obra-prima desde o vocativo até a frase final, passando pelas ligações naturais
de um parágrafo a outro. Ela não deixou de lado o que efetivamente interessava,
mas também não caiu desnecessariamente no tecnicismo inadequado para um evento
dessa natureza.
Sobre interpretar, disse Johnny Depp: "Em
qualquer atuação existe certa quantidade de si mesmo nelas. Tem de haver, caso
contrário não é só atuação. É mentir". O desempenho de Regina é uma prova
da correção desse conceito. Foi tão competente que chegou a representar a si
própria, com toda naturalidade. Um show que mereceu ser aplaudido por todos,
independentemente de preferências ideológicas.
Sua sinceridade ao dizer que chegou a se sentir
insegura para aceitar o convite, mas que reuniu forças por causa do espírito
patriótico foi comovente. Aproveitou esse momento em que desarmou a plateia
para dizer que montou um time competente, e que vai poder contar com gente que
sabe tudo de cultura na secretaria. Lembrou que o convite que recebeu falava em
"confiança", falava em "porteira fechada", "carta
branca". Ou seja, vou nessa, mas com a autoridade que me foi concedida.
Essas condições foram importantes na sua decisão.
Revelou que sabe da falta de recursos para pôr em
prática tudo o que deseja, mas, assim como conseguiu empreender sem dinheiro na
época do teatro amador, também estava disposta a passar o chapéu. E, para não
parecer prepotente, de forma genial, fez a autogozação: "Huuuuu, hooo,
não, não, ela já está passando do ponto, ela já está se perdendo". Riu,
para demonstrar que era ironia e reafirmou que acredita ser possível fazer mais
com o que possuem. E ao falar que poderia passar o chapéu, dirigiu um olhar de
cumplicidade para o ministro responsável pelas chaves do cofre.
Como não poderia deixar de ser, aproveitou para
resgatar a brincadeira sobre namoro, noivado e proclamas. Só que de maneira
habilidosa associou essas fases com a sua história de mais de 50 anos atuando
no Brasil. Afinal, todos se lembram de que ela foi a "namoradinha do
Brasil". Após cada momento de comunicação espirituosa fechava um pouco o
semblante, para demonstrar bastante seriedade, e dizia, por exemplo: "e
assim a gente segura melhor as barras, as ondas de adversidades".
O conceito
de cultura
Associou cultura à vida dos brasileiros que habitam
o território nacional em todas as suas dimensões. Ressaltou que: "A
cultura é um direito de todos. Uma ponte que nos leva à conquista de um
sentimento de pertencimento, que pode se chamar também, com certeza:
felicidade". Seu conceito de cultura dá todas as pistas do que ela
pretende empreender à frente da secretaria:
"Cultura é uma argamassa feita de hábitos,
comportamentos, rituais e costumes, que se autogerem, se autofertilizam no seio
do povo. Cultura é feito de um caldo de cantos, danças, brincadeiras de roda,
papagaio, pipa no céu de anil, palavrão, tatuagem. Arroz com feijão, farofa com
mandioca, ovo frito, bife, pastel de vento, pão de queijo, caipirinha, culto,
missa das dez, lavagem das escadarias da igreja do Bonfim, desafio repentista,
forró, fooorróó! Huuumm! E aquele pum, produzido com talco do palhaço do circo,
que já fez a risadona feliz de tantas crianças?"
Em seguida, além do grito de gol do nosso time do
coração, foi incluindo o que quase sempre entendemos por cultura. Falou da
música, dos musicais, do teatro, do cinema. Comentou que nesse tempero há muita
coisa boa, e outras não tão boas assim. Mas que tudo faz parte da cultura.
O ponto alto
do discurso
O ponto alto de seu discurso foi o de comparar os
brasileiros como sendo as mãos de um só corpo, um corpo-nação. "Esse corpo
que tem mãos pra plantar, pra colher. Mãos pra sobreviver. Mãos inclusive
independentes, pois cada qual é livre pra reagir, pra agir ao seu bel prazer,
de acordo com as suas individualidades. Mas não podemos nos esquecer de que são
mãos de um só corpo, pátria. Que na hora da adversidade sabem que para
construir uma vida melhor, pra se proteger do mal tempo, pra preparar o futuro
de filhos e netos são mãos que sabem que é preciso se unir, trabalhar em conjunto.
São mãos que se dão. E que se preciso, em oração."
Foi assim esse evento. Talvez um dos espetáculos
mais importantes na vida de Regina Duarte. Com certeza, ela nunca enfrentou um
desafio carregado de tanta responsabilidade. Demonstrou que é competente, que
está pronta, e que leva para o governo um pouco mais de frescor, uma leveza que
poderá tornar essa vida política mais interessante de ser vivida.
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