A BABÁ
DE LIMA BARRETO
Nos 100
anos da morte do escritor, uma reflexão sobre a pouca representação literária
de uma das maiores classes laboral brasileira: a trabalhadora doméstica.
TEXTO
MARIANA FILGUEIRAS
Entre
os contos que foram encontrados nos manuscritos de Lima Barreto depois da sua
morte, em 1922, há um especial. Intitulado Babá, discorre sobre a morte
solitária de uma velha trabalhadora doméstica, uma mulher negra centenária. O
narrador é um funcionário interino de um hospital onde ela é internada, um
médico ou enfermeiro, não fica claro. Tão logo percebe a sua entrada na
instituição, o personagem se interessa pelo seu martírio e tenta se aproximar
dela.
Era de
ver a sua cabecinha pequena empastada de cabelos brancos, tecidos como uma rama
de algodão, alvejando tristemente no fundo negro de seu rosto, encavado,
chupado, esteriçado, onde dois olhinhos castanhos quase sem brilho passeavam
languidamente, dolorosamente 1.
Ela
estava muito fraca, mas contou ao interino sem nome que se chamava Quirina, era
natural de Moçambique, e que tinha sido escravizada em São Gonçalo, no Rio de
Janeiro, quando chegou ao Brasil. Essa é uma primeira observação importante:
ela tem nome, ao contrário do narrador. Na história literária brasileira,
sempre foi comum que personagens subalternizadas – como as diaristas, babás,
lavadeiras, mucamas, amas e cozinheiras – não tivessem nome ou que sequer
falassem. A título de exemplo, em sete peças teatrais de Nelson Rodrigues que
têm empregadas domésticas como personagens, apenas três têm nome: Hortência (de
Anjo Negro); Helenice (de AntiNelson Rodrigues) e Nazaré (de Toda nudez será
castigada). E nenhuma tem mais do que duas falas. Outras até falam, como a
lavadeira de A serpente, mas não tem nome. Em comum, todas são referidas a
partir de suas características físicas animalizadas – o dramaturgo
recorrentemente descrevia as criadas dos seus textos pelas “ventas triunfais” –
e estão sempre escaladas como coro, escada ou figuração, reforçando
estereótipos da mulher negra servil, objetificada sexualmente e alívio cômico
das cenas em que aparece apenas para servir um cafezinho ou dar alguma deixa.
O
narrador de Lima Barreto dá nome à sua personagem e quer ouvir a sua história.
Quirina conta que chegou a conhecer Dom João VI enquanto trabalhava nas casas
dos seus senhores, tinha tido muitos filhos, “de várias cores”, mas que foram
tirados dela, espalhados pelo Brasil para servir de mão de obra escravizada ou
barata. Deles, não tinha qualquer notícia. Sempre viveu apartada da própria
família, dando seu leite aos filhos dos patrões, não aos seus. À altura da
internação, vivia “encostada numa velha senhora, viúva de seu último senhor”.
Fora parar no hospital para morrer sozinha.
(...)
não me saía da imaginação aquela figura doida, cheia de sofrimento e de
resignação, que, durante um longo prazo de seu século fornecera aos que lhe
cercavam ternura, amor e trabalho e que agora, como um esquife vivo, já sem
memória e quase sem viver, vinha morrer sem uma lágrima, sem um ai de alguém 2.
O conto
não tem data certa, mas foi escrito entre 1904, ano encontrado nas costas do
rascunho, e 1922, data da morte de Lima Barreto, fato que completa 100 anos
neste novembro de 2022. Originalmente se chamava Quirina, mas teve o título
original riscado pelo autor, sobre o qual estava escrito um novo: Babá. O
ofício parece ter pesado mais do que o nome da personagem na hora de batizar o
conto. Talvez porque o trabalho já tivesse, há muito, soterrado a identidade da
personagem. Ou talvez porque Lima quisesse usar a história de Quirina para
representar toda uma classe de trabalhadoras domésticas que se espalhava no
país pós-abolição. As babás.
O termo
babá – assim como as palavras cafuné, bunda, moleque ou fubá – vem do
quimbundo, língua da família banta falada em Angola. Significa “ama”, ou
“ama-seca”, a mulher que cria o bebê de outra. A palavra foi incorporada ao
português brasileiro já no século XVI, de acordo com o dicionário etimológico
de Antônio Geraldo Cunha.
Ser
babá no Brasil do século XIX e início do século XX era exercer um ofício
intimamente ligado à escravidão. Cuidar das crianças alheias era uma das muitas
funções das criadas de servir, como eram chamadas as mulheres africanas
escravizadas e trazidas ao Brasil, como Quirina, aquelas que trabalhavam no
espaço íntimo dos seus senhores, lavando, passando, cozinhando, limpando,
amamentando seus filhos – e sendo exploradas sexualmente. Como observou a
historiadora Lorena Telles em estudo sobre as mulheres negras e o trabalho
doméstico em São Paulo 3,
Refletir
acerca da escravidão e das relações de gênero na história do Brasil requer
considerar as experiências de mulheres africanas e sua descendentes nos mundos
do trabalho, em particular o local da escravidão doméstica (...). A condição de
gênero das cativas domésticas, em particular amas de leite e mucamas designadas
escravas de porta adentro as expôs a práticas específicas de dominação e
violência, envolvendo ataques sexuais, formas de vigilância e, para as amas de
leite, restrições ao exercício da maternidade 4.
Depois
de conhecer Quirina, o narrador de Lima fica com “olhos ao teto, parados e
presos, a fumar nervosamente, sonhando com a ventura dos bons, dos mesquinhos e
dos oprimidos”. A história da mulher o perturba seriamente, a ponto de tirar-lhe
o sono. É quando o funcionário tem uma espécie de surto, uma epifania do corpo,
que o faz levantar do seu leito e ir até a enfermaria de Quirina no meio da
noite. Encontra seu corpo magro enrolado nos lençóis como uma múmia, “aquele
fardel de carnes magras, de peles enrugadas, coladas aos ossos, embrulhada no
linho dos lençóis, me pareceu ser o cadáver embalsamado de uma antiga rainha da
Núbia” 5. E, como se estivesse tendo ou presenciando um delírio, a mulher
subitamente se levanta, põe-se de pé sobre o leito, e quando vai anunciar algo,
o conto termina. Não se sabe se por estilo ou por estar inacabado, sua última
frase é assim: “(...) foi solenemente dizendo em frase que não lhe era isso que
ouvi:” 6.
É
bastante simbólico que um conto que tenha como protagonista uma babá preta
termine sem ouvir o que ela diz antes de morrer. Que ela tenha a fala
interditada até pelo acaso. Que seja um conto inacabado, como se inacabada
fosse a história de todas as descendentes das Quirinas que existiram e das que
foram fabuladas. Como se outro final ainda tivesse a esperá-las. Nunca foi
comum, nem entre escritores pretos como Lima Barreto, que a mulher escravizada
fosse protagonista dos contos, novelas e romances. É possível contar nos dedos
as vezes em que nossa história literária deixou no centro o personagem que é o
cerne do nosso maior trauma social: o sujeito negro escravizado. Um exemplo é o
romance Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis; outro é o poema Navio
negreiro (1880), de Castro Alves; e, outro, o conto A escrava, também de Maria
Firmina dos Reis. Muito por isso, e também por ter sido a primeira mulher
romancista no país, a escritora maranhense será a próxima homenageada da Festa
Literária Internacional de Parati (Flip), que ocorre este mês. Estaria a personagem
subalternizada finalmente ganhando outros finais nessa grande ficção que é a
história da nossa literatura?
A
história de Lima Barreto é também uma história de escravidão e de luta por
liberdade no Brasil. Sua mãe era filha de uma escrava alforriada, Geraldina
Leocádia, e neta da escrava Maria da Conceição, que servia aos senhores Pereira
de Carvalho, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. A
biografia do autor escrita pela historiadora Lilia Schwarcz nos conta que “Lima
embaralha propositadamente tudo: seus personagens e sua própria realidade. As
passagens, ainda que alusivas, são fundamentais para entender rastros das
histórias da mãe do escritor (…). Na falta de dados, ele ficcionais” 7.
É assim
com a descrição de Engrácia, a mãe da personagem Clara, protagonista do romance
Clara dos Anjos. Engrácia foi criada por uma escrava chamada… Babá. É assim
também com a mãe de Marco Aurélio, personagem do romance Marco Aurélio seus
irmãos, que foi criada entre escravos por um chefe de milícias em São Gonçalo.
E assim também acontece com a personagem Quirina, do conto Babá. Todas as três
personagens evocam semelhanças com as histórias da sua avó e da sua mãe. Nada
aqui é coincidência. É como se Lima Barreto usasse a ficção para reconstruir
sua origem, indica Lilia. “Juntando tantos registros, nota-se que a descrição
das três personagens parece uma biografia por associação” 8, defende ela.
O conto
Babá é potente por evocar muitas possibilidades: pode ser a história da própria
avó de Lima, pode ser um spin off de Clara dos Anjos ou de Marco Aurélio e seus
irmãos. Pode não ser nada disso, quem sabe seja só a imaginação do autor numa
das vezes em que esteve internado em hospício observando os muitos tipos do
local. Pode ser tudo junto. As charadas biográficas não importam tanto quanto o
legado do conto: ao deixar a subjetividade de Quirina como ponto focal do
texto, Lima Barreto inscreve uma personagem estrutural na formação social
brasileira também na nossa história literária.
É o que
quero destacar aqui: Lima Barreto é uma figura crucial para a literatura
brasileira por fazer uma literatura “do povo, sobre o povo e para o povo”, como
atestava seu fã incondicional, o escritor João Antônio (1931-1996), mas
especialmente pela forma como faz isso. Sem rasgos de heroicidade,
paternalismos, populismos, panfletos. Por devotar às Quirinas um interesse
real, ele naturalmente as desloca ao centro da narrativa. As Quirinas existiram
e existem; sofreram e sofrem; sonharam e sonham. As Quirinas deliram. E Lima,
por meio dos seus narradores, as alcança. Porque ele também fica com “os olhos
ao teto, parados e presos” quando as investiga. Lima sempre soube que, ainda
que essas vozes não sejam ouvidas, nomeadas, figuradas, esmiuçadas e fabuladas,
o silenciamento que experimentam não as faz evanescer. E se ninguém quis fazer,
ele estava lá.
“A
literatura do nosso tempo vem sendo isso nas suas maiores manifestações, e
possa ela realizar, pela virtude da forma, não mais a tal beleza perfeita da
falecida Grécia, não mais a exaltação do amor que nunca esteve a perecer; mas a
comunhão dos homens de todas as raças e classes, fazendo que todos se
compreendam, na infinita dor de serem homens, e se entendam sob o açoite da
vida, para maior glória e perfeição da humanidade”, escreveu o Lima no
texto-manifesto Amplius, publicado em 1916.
Cem
anos depois da morte de Lima Barreto, cá estamos nós para analisar como esse
exercício ainda é raro. Apesar de ser uma das maiores classes laborais
brasileiras, e do mundo 9, a trabalhadora doméstica ainda é pouquíssimo
investigada nos nossos contos e romances contemporâneos. São cerca de 6,2
milhões de pessoas que trabalham dentro da casa de outras pessoas, de acordo
com o IBGE 10: cuidadores de idosos, cozinheiras, babás, jardineiros,
faxineiras, lavadeiras. E principalmente aquela que faz um pouco de tudo isso
dentro de casa, sem atribuição bem definida, e que historicamente ganhou a alcunha
de “empregada doméstica”, de maioria feminina, negra e idosa. São um batalhão
de subjetividades que pouco interessam aos que escrevem. O mais comum é que a
personagem apareça sob algum dos estereótipos reservados aos negros na
literatura brasileira: o do criado fiel e subserviente, o da mulher sensual, o
do criminoso.
De
acordo com a pesquisadora Sonia Roncador, que analisou a aparição da personagem
em livros ao longo do século XX, a inserção da trabalhadora doméstica na ficção
remonta ao Romantismo, na figura das “mucamas”, mulheres escravizadas ou
recém-libertas, ainda em condições muito semelhantes à escravidão. O mais comum
é que apareçam como personagens portadoras de vícios morais, doenças
contagiosas, alvos do discurso higienista do pós-abolição.
Se, ao
longo do século XIX, eram vistas como um indicador social de riqueza e posses
da aristocracia, no início do século XX, passaram a ser vistas como um entrave
ao projeto higienista. As personagens eram o próprio contraste do que se
almejava: a modernização do espaço doméstico pela dona de casa, imbuída de
missão maternal e civilizatória, que administraria o lar exemplarmente e
controlava as criadas invejosas, sensuais e contaminadas pelo ambiente fétido
dos cortiços em que viviam.
A
doméstica foi discursivamente apropriada como signo de alteridade por
excelência, servindo como contraponto às senhoras aristocratas e burguesas no
discurso hegemônico de contestação das transgressões sociais e raciais e de
formação das identidades nacional, racial e de gênero 11.
Em
meados do século XX, essa estratégia de ressaltar o contraste com a patroa se
mantém, mas de forma enviesada, menos explícita, talvez condicionada por certa
culpa burguesa – a exemplo do que faz Clarice Lispector em A paixão segundo
G.H. No romance, a empregada demitida, Janair, assume tal centralidade na
trama, que praticamente impede a protagonista, G.H., de atingir o suposto
encontro consigo mesma que marca a narrativa. A personagem Janair é manejada
pela autora de forma a marcar o contraste com a patroa:
A
lembrança da empregada ausente me coagia. Quis lembrar-me de seu rosto, e
admirada não consegui – de tal modo ela acabara de me excluir de minha própria
casa, como se me tivesse fechado a porta e me tivesse deixado remota em relação
a minha moradia. A lembrança de sua cara fugia-me, devia ser um lapso
temporário 12.
A
partir dos anos 1980, quando a chamada literatura de testemunho toma fôlego 13,
começam a surgir livros com relatos testemunhais de empregadas domésticas no
Brasil – ainda assim, sempre atrelados a um compilador, geralmente um
avalizador intelectual, que reúne os textos e o edita. Alguns exemplos: Só a
gente que vive é que sabe: depoimento de uma doméstica, de Lenira Carvalho
(1982); Ai de vós! Diário de uma doméstica (1983); Testemunha de uma vida, de
Rosalina Ferreira Basseti (1987).
É dessa
época também o romance memorialista Becos da memória, de Conceição Evaristo 14,
em que as lavadeiras são personagens centrais na obra, bem como a doméstica
Ditinha. Escrito em 1987, só foi publicado em 2006. Vale lembrar que a autora
foi, ela mesma, uma trabalhadora doméstica.
Em
meados de 2010, começam a surgir romances tendo a personagem mais em evidência.
Talvez resultado dos efeitos da PEC das Domésticas, de 2013 – projeto de emenda
constitucional do governo Dilma Rousseff (PT) que garantiu direitos
trabalhistas à classe, não sem muita grita das elites –, somado aos efeitos
positivos da Lei de Cotas, que já vinha, desde 2012, garantindo acesso à
educação superior à população negra; e ainda com o fortalecimento dos
movimentos feministas, feministas negros, e do próprio movimento negro. O que
se observa como efeito é que a trabalhadora doméstica passa a experimentar
novas mediações literárias.
Em O
marechal de costas, de José Luiz Passos (2015), a cozinheira surge como
narradora de uma trama que reescreve o movimento republicano brasileiro. No
mesmo ano, vale lembrar, faz sucesso o filme Que horas ela volta? (2015), de
Anna Muylaert, em que a trabalhadora doméstica nordestina, em evidente
contraponto com a patroa branca, inverte o conflito da trama a seu favor. Nos
romances Com armas sonolentas, de Carola Saavedra (2019), e Suíte Tóquio, de
Giovana Madalosso (2020), a empregada e a babá, respectivamente, são as
protagonistas. No recém-lançado Solitária, de Eliana Alves Cruz (2022), mãe e
filha, também protagonistas da trama, trabalham como domésticas em uma casa. O
espaço em que vivem, atravessado pelo sentimento que nutrem – e que dá título à
obra – é o que ainda as aproxima da Quirina de Lima Barreto.
Lima
foi um escritor antirracista. Notou o racismo no futebol, no Carnaval, no
feminismo branco. Tinha um profundo interesse por crimes cometidos contra
mulheres. Lima criticou o eurocentrismo, defendeu a reforma agrária, foi
nacionalista, registrou a linguagem oral dos brasileiros, criticou a imprensa
liberal e a política de conchavos, foi modernista antes dos modernistas.
É
importante ressaltar que o antirracismo que sustentava todo esse modo de
existir estava arraigado sobretudo na estrutura da sua ficção, a exemplo do que
faz em Babá. Conto que a gente lê 100 anos depois da sua morte como se tivesse
sido escrito no mês passado em uma dessas cidades onde patrões ainda são
flagrados escravizando Quirinas, Madalenas, Mirtes. Sua denúncia não está
apenas em um modo de ser ou pensar, mas na maneira muito sua de usar a ficção
para dar centralidade à subjetividade negra na história literária brasileira. É
fabulando que o escritor torna uma questão coletiva. E perene.
MARIANA
FILGUEIRAS, jornalista, roteirista e doutoranda em Literatura Brasileira pela
Universidade Federal Fluminense (UFF). Sua tese é sobre a presença da
personagem da trabalhadora doméstica na literatura contemporânea.
KARINA
FREITAS, designer, ilustradora e especialista em Projetos Digitais.
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