quarta-feira, 29 de novembro de 2023

BABÁS... 8a.Parte

 

A BABÁ DE LIMA BARRETO

Nos 100 anos da morte do escritor, uma reflexão sobre a pouca representação literária de uma das maiores classes laboral brasileira: a trabalhadora doméstica.

TEXTO MARIANA FILGUEIRAS

 

Entre os contos que foram encontrados nos manuscritos de Lima Barreto depois da sua morte, em 1922, há um especial. Intitulado Babá, discorre sobre a morte solitária de uma velha trabalhadora doméstica, uma mulher negra centenária. O narrador é um funcionário interino de um hospital onde ela é internada, um médico ou enfermeiro, não fica claro. Tão logo percebe a sua entrada na instituição, o personagem se interessa pelo seu martírio e tenta se aproximar dela.

 

Era de ver a sua cabecinha pequena empastada de cabelos brancos, tecidos como uma rama de algodão, alvejando tristemente no fundo negro de seu rosto, encavado, chupado, esteriçado, onde dois olhinhos castanhos quase sem brilho passeavam languidamente, dolorosamente 1.

 

Ela estava muito fraca, mas contou ao interino sem nome que se chamava Quirina, era natural de Moçambique, e que tinha sido escravizada em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, quando chegou ao Brasil. Essa é uma primeira observação importante: ela tem nome, ao contrário do narrador. Na história literária brasileira, sempre foi comum que personagens subalternizadas – como as diaristas, babás, lavadeiras, mucamas, amas e cozinheiras – não tivessem nome ou que sequer falassem. A título de exemplo, em sete peças teatrais de Nelson Rodrigues que têm empregadas domésticas como personagens, apenas três têm nome: Hortência (de Anjo Negro); Helenice (de AntiNelson Rodrigues) e Nazaré (de Toda nudez será castigada). E nenhuma tem mais do que duas falas. Outras até falam, como a lavadeira de A serpente, mas não tem nome. Em comum, todas são referidas a partir de suas características físicas animalizadas – o dramaturgo recorrentemente descrevia as criadas dos seus textos pelas “ventas triunfais” – e estão sempre escaladas como coro, escada ou figuração, reforçando estereótipos da mulher negra servil, objetificada sexualmente e alívio cômico das cenas em que aparece apenas para servir um cafezinho ou dar alguma deixa.

 

O narrador de Lima Barreto dá nome à sua personagem e quer ouvir a sua história. Quirina conta que chegou a conhecer Dom João VI enquanto trabalhava nas casas dos seus senhores, tinha tido muitos filhos, “de várias cores”, mas que foram tirados dela, espalhados pelo Brasil para servir de mão de obra escravizada ou barata. Deles, não tinha qualquer notícia. Sempre viveu apartada da própria família, dando seu leite aos filhos dos patrões, não aos seus. À altura da internação, vivia “encostada numa velha senhora, viúva de seu último senhor”. Fora parar no hospital para morrer sozinha.

 

(...) não me saía da imaginação aquela figura doida, cheia de sofrimento e de resignação, que, durante um longo prazo de seu século fornecera aos que lhe cercavam ternura, amor e trabalho e que agora, como um esquife vivo, já sem memória e quase sem viver, vinha morrer sem uma lágrima, sem um ai de alguém 2.

 

O conto não tem data certa, mas foi escrito entre 1904, ano encontrado nas costas do rascunho, e 1922, data da morte de Lima Barreto, fato que completa 100 anos neste novembro de 2022. Originalmente se chamava Quirina, mas teve o título original riscado pelo autor, sobre o qual estava escrito um novo: Babá. O ofício parece ter pesado mais do que o nome da personagem na hora de batizar o conto. Talvez porque o trabalho já tivesse, há muito, soterrado a identidade da personagem. Ou talvez porque Lima quisesse usar a história de Quirina para representar toda uma classe de trabalhadoras domésticas que se espalhava no país pós-abolição. As babás.

 

O termo babá – assim como as palavras cafuné, bunda, moleque ou fubá – vem do quimbundo, língua da família banta falada em Angola. Significa “ama”, ou “ama-seca”, a mulher que cria o bebê de outra. A palavra foi incorporada ao português brasileiro já no século XVI, de acordo com o dicionário etimológico de Antônio Geraldo Cunha.

 

Ser babá no Brasil do século XIX e início do século XX era exercer um ofício intimamente ligado à escravidão. Cuidar das crianças alheias era uma das muitas funções das criadas de servir, como eram chamadas as mulheres africanas escravizadas e trazidas ao Brasil, como Quirina, aquelas que trabalhavam no espaço íntimo dos seus senhores, lavando, passando, cozinhando, limpando, amamentando seus filhos – e sendo exploradas sexualmente. Como observou a historiadora Lorena Telles em estudo sobre as mulheres negras e o trabalho doméstico em São Paulo 3,

 

Refletir acerca da escravidão e das relações de gênero na história do Brasil requer considerar as experiências de mulheres africanas e sua descendentes nos mundos do trabalho, em particular o local da escravidão doméstica (...). A condição de gênero das cativas domésticas, em particular amas de leite e mucamas designadas escravas de porta adentro as expôs a práticas específicas de dominação e violência, envolvendo ataques sexuais, formas de vigilância e, para as amas de leite, restrições ao exercício da maternidade 4.

 

Depois de conhecer Quirina, o narrador de Lima fica com “olhos ao teto, parados e presos, a fumar nervosamente, sonhando com a ventura dos bons, dos mesquinhos e dos oprimidos”. A história da mulher o perturba seriamente, a ponto de tirar-lhe o sono. É quando o funcionário tem uma espécie de surto, uma epifania do corpo, que o faz levantar do seu leito e ir até a enfermaria de Quirina no meio da noite. Encontra seu corpo magro enrolado nos lençóis como uma múmia, “aquele fardel de carnes magras, de peles enrugadas, coladas aos ossos, embrulhada no linho dos lençóis, me pareceu ser o cadáver embalsamado de uma antiga rainha da Núbia” 5. E, como se estivesse tendo ou presenciando um delírio, a mulher subitamente se levanta, põe-se de pé sobre o leito, e quando vai anunciar algo, o conto termina. Não se sabe se por estilo ou por estar inacabado, sua última frase é assim: “(...) foi solenemente dizendo em frase que não lhe era isso que ouvi:” 6.

 

É bastante simbólico que um conto que tenha como protagonista uma babá preta termine sem ouvir o que ela diz antes de morrer. Que ela tenha a fala interditada até pelo acaso. Que seja um conto inacabado, como se inacabada fosse a história de todas as descendentes das Quirinas que existiram e das que foram fabuladas. Como se outro final ainda tivesse a esperá-las. Nunca foi comum, nem entre escritores pretos como Lima Barreto, que a mulher escravizada fosse protagonista dos contos, novelas e romances. É possível contar nos dedos as vezes em que nossa história literária deixou no centro o personagem que é o cerne do nosso maior trauma social: o sujeito negro escravizado. Um exemplo é o romance Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis; outro é o poema Navio negreiro (1880), de Castro Alves; e, outro, o conto A escrava, também de Maria Firmina dos Reis. Muito por isso, e também por ter sido a primeira mulher romancista no país, a escritora maranhense será a próxima homenageada da Festa Literária Internacional de Parati (Flip), que ocorre este mês. Estaria a personagem subalternizada finalmente ganhando outros finais nessa grande ficção que é a história da nossa literatura?

 

A história de Lima Barreto é também uma história de escravidão e de luta por liberdade no Brasil. Sua mãe era filha de uma escrava alforriada, Geraldina Leocádia, e neta da escrava Maria da Conceição, que servia aos senhores Pereira de Carvalho, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. A biografia do autor escrita pela historiadora Lilia Schwarcz nos conta que “Lima embaralha propositadamente tudo: seus personagens e sua própria realidade. As passagens, ainda que alusivas, são fundamentais para entender rastros das histórias da mãe do escritor (…). Na falta de dados, ele ficcionais” 7.

 

É assim com a descrição de Engrácia, a mãe da personagem Clara, protagonista do romance Clara dos Anjos. Engrácia foi criada por uma escrava chamada… Babá. É assim também com a mãe de Marco Aurélio, personagem do romance Marco Aurélio seus irmãos, que foi criada entre escravos por um chefe de milícias em São Gonçalo. E assim também acontece com a personagem Quirina, do conto Babá. Todas as três personagens evocam semelhanças com as histórias da sua avó e da sua mãe. Nada aqui é coincidência. É como se Lima Barreto usasse a ficção para reconstruir sua origem, indica Lilia. “Juntando tantos registros, nota-se que a descrição das três personagens parece uma biografia por associação” 8, defende ela.

 

O conto Babá é potente por evocar muitas possibilidades: pode ser a história da própria avó de Lima, pode ser um spin off de Clara dos Anjos ou de Marco Aurélio e seus irmãos. Pode não ser nada disso, quem sabe seja só a imaginação do autor numa das vezes em que esteve internado em hospício observando os muitos tipos do local. Pode ser tudo junto. As charadas biográficas não importam tanto quanto o legado do conto: ao deixar a subjetividade de Quirina como ponto focal do texto, Lima Barreto inscreve uma personagem estrutural na formação social brasileira também na nossa história literária.

 

É o que quero destacar aqui: Lima Barreto é uma figura crucial para a literatura brasileira por fazer uma literatura “do povo, sobre o povo e para o povo”, como atestava seu fã incondicional, o escritor João Antônio (1931-1996), mas especialmente pela forma como faz isso. Sem rasgos de heroicidade, paternalismos, populismos, panfletos. Por devotar às Quirinas um interesse real, ele naturalmente as desloca ao centro da narrativa. As Quirinas existiram e existem; sofreram e sofrem; sonharam e sonham. As Quirinas deliram. E Lima, por meio dos seus narradores, as alcança. Porque ele também fica com “os olhos ao teto, parados e presos” quando as investiga. Lima sempre soube que, ainda que essas vozes não sejam ouvidas, nomeadas, figuradas, esmiuçadas e fabuladas, o silenciamento que experimentam não as faz evanescer. E se ninguém quis fazer, ele estava lá.

 

“A literatura do nosso tempo vem sendo isso nas suas maiores manifestações, e possa ela realizar, pela virtude da forma, não mais a tal beleza perfeita da falecida Grécia, não mais a exaltação do amor que nunca esteve a perecer; mas a comunhão dos homens de todas as raças e classes, fazendo que todos se compreendam, na infinita dor de serem homens, e se entendam sob o açoite da vida, para maior glória e perfeição da humanidade”, escreveu o Lima no texto-manifesto Amplius, publicado em 1916.

 

Cem anos depois da morte de Lima Barreto, cá estamos nós para analisar como esse exercício ainda é raro. Apesar de ser uma das maiores classes laborais brasileiras, e do mundo 9, a trabalhadora doméstica ainda é pouquíssimo investigada nos nossos contos e romances contemporâneos. São cerca de 6,2 milhões de pessoas que trabalham dentro da casa de outras pessoas, de acordo com o IBGE 10: cuidadores de idosos, cozinheiras, babás, jardineiros, faxineiras, lavadeiras. E principalmente aquela que faz um pouco de tudo isso dentro de casa, sem atribuição bem definida, e que historicamente ganhou a alcunha de “empregada doméstica”, de maioria feminina, negra e idosa. São um batalhão de subjetividades que pouco interessam aos que escrevem. O mais comum é que a personagem apareça sob algum dos estereótipos reservados aos negros na literatura brasileira: o do criado fiel e subserviente, o da mulher sensual, o do criminoso.

 

De acordo com a pesquisadora Sonia Roncador, que analisou a aparição da personagem em livros ao longo do século XX, a inserção da trabalhadora doméstica na ficção remonta ao Romantismo, na figura das “mucamas”, mulheres escravizadas ou recém-libertas, ainda em condições muito semelhantes à escravidão. O mais comum é que apareçam como personagens portadoras de vícios morais, doenças contagiosas, alvos do discurso higienista do pós-abolição.

 

Se, ao longo do século XIX, eram vistas como um indicador social de riqueza e posses da aristocracia, no início do século XX, passaram a ser vistas como um entrave ao projeto higienista. As personagens eram o próprio contraste do que se almejava: a modernização do espaço doméstico pela dona de casa, imbuída de missão maternal e civilizatória, que administraria o lar exemplarmente e controlava as criadas invejosas, sensuais e contaminadas pelo ambiente fétido dos cortiços em que viviam.

 

A doméstica foi discursivamente apropriada como signo de alteridade por excelência, servindo como contraponto às senhoras aristocratas e burguesas no discurso hegemônico de contestação das transgressões sociais e raciais e de formação das identidades nacional, racial e de gênero 11.

 

Em meados do século XX, essa estratégia de ressaltar o contraste com a patroa se mantém, mas de forma enviesada, menos explícita, talvez condicionada por certa culpa burguesa – a exemplo do que faz Clarice Lispector em A paixão segundo G.H. No romance, a empregada demitida, Janair, assume tal centralidade na trama, que praticamente impede a protagonista, G.H., de atingir o suposto encontro consigo mesma que marca a narrativa. A personagem Janair é manejada pela autora de forma a marcar o contraste com a patroa:

 

A lembrança da empregada ausente me coagia. Quis lembrar-me de seu rosto, e admirada não consegui – de tal modo ela acabara de me excluir de minha própria casa, como se me tivesse fechado a porta e me tivesse deixado remota em relação a minha moradia. A lembrança de sua cara fugia-me, devia ser um lapso temporário 12.

 

A partir dos anos 1980, quando a chamada literatura de testemunho toma fôlego 13, começam a surgir livros com relatos testemunhais de empregadas domésticas no Brasil – ainda assim, sempre atrelados a um compilador, geralmente um avalizador intelectual, que reúne os textos e o edita. Alguns exemplos: Só a gente que vive é que sabe: depoimento de uma doméstica, de Lenira Carvalho (1982); Ai de vós! Diário de uma doméstica (1983); Testemunha de uma vida, de Rosalina Ferreira Basseti (1987).

 

É dessa época também o romance memorialista Becos da memória, de Conceição Evaristo 14, em que as lavadeiras são personagens centrais na obra, bem como a doméstica Ditinha. Escrito em 1987, só foi publicado em 2006. Vale lembrar que a autora foi, ela mesma, uma trabalhadora doméstica.

 

Em meados de 2010, começam a surgir romances tendo a personagem mais em evidência. Talvez resultado dos efeitos da PEC das Domésticas, de 2013 – projeto de emenda constitucional do governo Dilma Rousseff (PT) que garantiu direitos trabalhistas à classe, não sem muita grita das elites –, somado aos efeitos positivos da Lei de Cotas, que já vinha, desde 2012, garantindo acesso à educação superior à população negra; e ainda com o fortalecimento dos movimentos feministas, feministas negros, e do próprio movimento negro. O que se observa como efeito é que a trabalhadora doméstica passa a experimentar novas mediações literárias.

 

Em O marechal de costas, de José Luiz Passos (2015), a cozinheira surge como narradora de uma trama que reescreve o movimento republicano brasileiro. No mesmo ano, vale lembrar, faz sucesso o filme Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert, em que a trabalhadora doméstica nordestina, em evidente contraponto com a patroa branca, inverte o conflito da trama a seu favor. Nos romances Com armas sonolentas, de Carola Saavedra (2019), e Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso (2020), a empregada e a babá, respectivamente, são as protagonistas. No recém-lançado Solitária, de Eliana Alves Cruz (2022), mãe e filha, também protagonistas da trama, trabalham como domésticas em uma casa. O espaço em que vivem, atravessado pelo sentimento que nutrem – e que dá título à obra – é o que ainda as aproxima da Quirina de Lima Barreto.

 

Lima foi um escritor antirracista. Notou o racismo no futebol, no Carnaval, no feminismo branco. Tinha um profundo interesse por crimes cometidos contra mulheres. Lima criticou o eurocentrismo, defendeu a reforma agrária, foi nacionalista, registrou a linguagem oral dos brasileiros, criticou a imprensa liberal e a política de conchavos, foi modernista antes dos modernistas.

 

É importante ressaltar que o antirracismo que sustentava todo esse modo de existir estava arraigado sobretudo na estrutura da sua ficção, a exemplo do que faz em Babá. Conto que a gente lê 100 anos depois da sua morte como se tivesse sido escrito no mês passado em uma dessas cidades onde patrões ainda são flagrados escravizando Quirinas, Madalenas, Mirtes. Sua denúncia não está apenas em um modo de ser ou pensar, mas na maneira muito sua de usar a ficção para dar centralidade à subjetividade negra na história literária brasileira. É fabulando que o escritor torna uma questão coletiva. E perene.

 

MARIANA FILGUEIRAS, jornalista, roteirista e doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Sua tese é sobre a presença da personagem da trabalhadora doméstica na literatura contemporânea.

KARINA FREITAS, designer, ilustradora e especialista em Projetos Digitais.

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