sexta-feira, 24 de novembro de 2023

BABÁS ESTUDO... 1a. Parte

 

1-A babá como trabalhadora doméstica

O presente estudo exploratório sobre o caráter educativo do trabalho doméstico de cuidado de crianças focaliza especificamente o processo de construção dos corpos-identidades que se faz presente na interação entre a mulher babá e a criança sob seus cuidados. Para tanto, reúne e coloca em diálogo estudos produzidos nos campos da Educação, Psicologia, Sociologia e História. Tal mapeamento visa contribuir para a desnaturalização da imagem estereotipada do cuidado infantil enquanto tarefa feminina e para a valorização desse trabalho formativo realizado em espaço doméstico. O panorama desenhado abre uma série de questões a serem perscrutadas no sentido de elucidar o que está em jogo no corpo a corpo desse encontro.

 

A história de cada pessoa pode ser lida pelas marcas, visíveis e sutis, impressas no seu corpo ao longo da vida. Além de traços como cicatrizes, rugas, sulcos na pele, tatuagens, enfeites e vestimentas, sua singularidade se expressa nos modos de se movimentar, falar, agir e se expressar. Em ambos os casos, a cultura, aqui entendida enquanto campo de produção de significados, exerce um importante papel. Consequentemente, se entendermos a educação como experiência de socialização em determinado meio cultural, podemos atribuir-lhe a mesma relevância no que diz respeito à constituição da corporeidade.

 

O adulto envolvido no cuidado e na educação de crianças pequenas tem uma forma singular de atuar em relação a elas, materializada em aspectos como o olhar, tom de voz, postura que adota nas interações, gestualidade com que demonstra – ou não – emoções e afetividade, se ri, se chora, como acolhe e nina, que hábitos de alimentação e higiene valoriza, que cantos e parlendas entoa, que histórias conta e de que maneiras o faz, se participa ou não de brincadeiras, se traz marcas de sofrimento, marcas da maternidade, se foi moldada por práticas corporais2… No âmbito do cuidado infantil profissional em espaço doméstico, todas essas são maneiras pelas quais o corpo da babá, enquanto se ocupa do corpo infantil, dá a ver inscrições deixadas pela trajetória de sua existência. Ao mesmo tempo, novas inscrições lhe são acrescentadas em função do lugar que ocupa na casa, dos signos de respeito demonstrados em sua presença, dos espaços e recursos que lhe são destinados, das tarefas de que se ocupa, da organização do tempo entre trabalho e descanso, da divisão entre o atendimento das próprias necessidades e necessidades de outros e do acesso a confortos e alimentos. Trata-se de um conjunto de marcas que revelam, a cada instante, significados culturais que fazem desse corpo mais que um organismo biológico, tornando-o palavra em um texto coletivo. Assim, o corpo que cuida e educa também foi e é, continuamente, cuidado e educado. De Certeau (1990) caracteriza o corpo como inscrição cultural, texto que se move. Por meio de uma escrita exercida ao longo de toda a vida, os corpos, como páginas em branco, tornam-se suportes para um sistema simbólico. É esse processo que faz das carnes, efetivamente, corpos.

 

Com base nessa percepção, foram analisados os trabalhos que abordam a dimensão educativa do cuidado profissional de crianças em ambiente doméstico, focalizando especificamente o processo de construção do corpo-identidade que se faz presente na interação entre a mulher babá e a criança sob seus cuidados. A opção por direcionar o olhar à educação que se desenrola fora da escola, especialmente no trabalho de babás, busca responder à identificação de uma lacuna importante no âmbito da pesquisa educacional. Uma consulta aos bancos de dados revelou a quase inexistência de estudos sobre o caráter educativo desse trabalho. Paradoxalmente, o termo babá apresenta ocorrência significativa nos agradecimentos de teses e dissertações. Algumas cuidadoras são lembradas pelos pesquisadores por terem feito parte de sua própria história, durante a infância, outras por haverem estado com seus filhos durante a realização das pesquisas. Entretanto, a tais mulheres ainda não foi outorgado plano de destaque como tema de estudo no campo da educação.

 

A escassez de conhecimentos sistematizados sobre o tema acusa a pouca relevância atribuída às relações entre educador e criança no ambiente domiciliar. Tendo em vista um tratamento responsável do tema, em primeiro lugar, é importante salientar que reconhecer a função educativa do trabalho das babás, com base na indissociabilidade entre cuidar e educar, não tem a intenção de aproximá-las do status de professoras. Ao contrário, afirmar o papel dessas mulheres significa ir contra as mesmas raízes que, apoiadas numa cultura misógina, alimentam a perpetuação da desvalorização do professorado do segmento da Educação Infantil, bem como de outras funções tradicionalmente associadas ao feminino. Assim, seguindo na contramão das construções históricas que estão por trás do desprestígio e da invisibilidade atribuídos a esta profissão ancestralmente feminina, esperamos contribuir para sua valorização e (re)conhecimento.

 

Procedimentos metodológicos

Com o intuito de reunir e analisar conhecimentos produzidos sobre o trabalho educacional exercido pelas babás realizamos um estudo exploratório nos moldes propostos por Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (1998). Para tanto, adotamos a pesquisa bibliográfica como procedimento. Segundo Lima e Mioto (2007), isso implica um movimento de apreensão dos questionamentos e de interlocução crítica com o material bibliográfico.

 

Serviram-nos como fontes a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações, o Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Banco de Teses e Dissertações da Universidade de São Paulo, além dos bancos eletrônicos SciELO, Google Scholar e Cairn. A pesquisa, desenvolvida durante o segundo semestre de 2016 e primeiro de 2017, organizou-se ao redor da palavra-chave “babá” presente nos títulos, resumos e palavras-chave, e de seus correspondentes em inglês e francês (nanny, au pair, nounou, nourrice, garde d’enfants), de modo a contemplar diferentes modalidades de cuidado infantil em ambiente doméstico. Foram analisados trabalhos publicados entre 1995 e o primeiro semestre de 2017. Em função da questão norteadora da pesquisa, não foram incluídos nesta revisão da literatura os estudos que abordam o trabalho doméstico de maneira genérica, sem distinção entre o cuidado da casa (housekeeping) e o cuidado das crianças (childcare); tampouco aqueles que abordam as profissões do cuidado de maneira ampla, sem enfoque nas especificidades do cuidado de crianças que diferenciam esse tipo de care daqueles voltados a pessoas idosas ou doentes, por exemplo. Deste modo, o corpus da análise foi constituído por 23 documentos, entre os quais encontram-se 10 artigos, 1 tese, 7 dissertações, 4 livros e 1 trabalho em anais de congresso.

 

Observou-se que, embora ainda timidamente, o universo das babás vem paulatinamente ganhando espaço na literatura científica nacional e estrangeira, principalmente com enfoques direcionados às relações de trabalho engendradas pela profissionalização dos afazeres domésticos e nos estudos de gênero a eles associados. O conjunto de materiais encontrados nos levou a organizar sua divisão em três agrupamentos. No primeiro, reunimos pesquisas que oferecem um panorama geral sobre o papel histórico e social dessas trabalhadoras. Em seguida, trazemos a literatura que versa sobre a temática das babás, lendo em seus corpos os signos identitários de gênero, raça e classe. Por último, enveredamos pelos estudos que se debruçaram sobre a problemática do papel das cuidadoras na educação das crianças.

 

A babá como trabalhadora doméstica

No campo das Ciências Sociais, as babás são tematizadas em muitas das numerosas pesquisas que se debruçam, de modo mais amplo, sobre o trabalho doméstico. Tais contribuições vêm há muito explicitando a contradição que se instala quando as casas são locais de trabalho e os locais de trabalho são casas: se, por um lado, o trabalho doméstico foi e é essencial para o desenvolvimento das sociedades industrializadas, por outro, permanece invisível e subvalorizado (Blackett, 2004; McClintock, 1995). Na coletânea organizada por Fauve-Chamoux (2004), com o propósito de compreender a atual globalização do trabalho doméstico, pesquisadores discorrem sobre tais atores sociais e evidenciam sua marginalização ao caracterizá-los, ao longo da história, a partir de dados como origem e local de trabalho, gênero, grupo étnico, motivação, relações com a própria família e com a família dos empregadores, além de seus direitos e deveres previstos legalmente. Majoritariamente desempenhado por mulheres, tal espécie de trabalho foi fundamental para o desenvolvimento socioeconômico e para o processo de urbanização da sociedade ocidental contemporânea. Seguindo o modelo (masculino) de atribuição de sentido à existência, nas sociedades contemporâneas é crescente o número de mulheres que organizam suas vidas em torno das fórmulas “construir uma carreira” e “buscar sucesso profissional”, assumindo o imperativo nelas contido de dedicar parte generosa do tempo à empreitada, principalmente nos anos em que se é considerada jovem (leia-se útil ao mercado de trabalho). O tempo e energia exigidos tornam necessária a atribuição das tarefas pertencentes à esfera familiar e doméstica a outras pessoas. Com efeito, o mundo do trabalho rejeita e desvaloriza as experiências cuja gestão, na sociedade pré-industrial, cabia à mulher no interior da família – como o nascimento, a criação das crianças, a manutenção da casa, a nutrição, o cuidado na doença e a morte. A recusa às antigas funções da esposa tradicional fez erigir, desse modo, uma nova indústria do cuidado.

 

Para Hochschild (2004), a dinâmica global do trabalho doméstico organiza-se em torno de uma nova riqueza, menos tangível, porém não menos preciosa que aquela extraída das colônias no passado. Contrariando previsões que anteviam seu fim, essa modalidade de emprego só vem crescendo ao redor do mundo, sendo que uma das marcas desse movimento de globalização é o fenômeno das mulheres provenientes de países pobres trabalhando em casas de família dos países desenvolvidos. Em escala mundial, observa-se o fluxo de mulheres imigrantes que deixam para trás suas próprias casas, famílias e filhos. Com o dinheiro que recebem, sustentam-nos à distância. O trabalho doméstico de cuidado das crianças promove, desse modo, uma espécie de deslocamento afetivo: o amor e a atenção que essas mulheres teriam a oferecer aos próprios filhos são dirigidos às crianças sob seus cuidados, filhos de outras mulheres.

 

Analogamente ao processo de extração de recursos naturais do sul que possibilitou o enriquecimento dos países do norte, o amor é o novo ouro. Considerando os inúmeros casos em que as mulheres que prestam esse serviço também são mães, Hochschild descreve uma operação mundial de transplante de afetos. Muitas famílias contentam-se em constatar, felizes, o laço afetivo existente entre seu filho e a babá, sem se dar conta do alijamento que isso causa, afastando a babá de suas próprias crianças. Sob o mesmo véu que cria o fetiche da mercadoria, descrito por Marx, o amor feminino, nova mercadoria materializada no trabalho doméstico do cuidado, tem seu histórico e as condições humanas de sua produção ocultos aos olhos do consumidor. Seguindo seu raciocínio, podemos dizer que, da mesma maneira que ocorria no período colonial, tal conjuntura encontra-se reproduzida, em pequena escala, até mesmo nos países do Terceiro Mundo. Nesse caso, porém, não se trata de um trânsito entre territórios nacionais, mas entre estratos da sociedade.

 

No estudo intitulado “Você vai me servir”: desigualdade, proximidade e agência nos dois lados do Equador”, Harris (2007) apresenta uma etnografia comparativa das relações entre empregadas domésticas e seus empregadores no Brasil e nos Estados Unidos. Ao traçar uma tipologia dos arranjos de trabalho, o pesquisador observa, no Brasil, a atividade de babá amalgamada às demais funções domésticas. Muitas das chamadas diaristas limpam a casa, cozinham e cuidam das crianças. Ele verifica que a expressão “quase da família” é bastante utilizada para exprimir a relação estabelecida, numa tentativa de suavizar os inúmeros marcadores de diferença que permeiam o dia a dia nessa espécie de convívio profissional. Nos Estados Unidos, por sua vez, ele sublinha a tendência à especialização nas diferentes atribuições domésticas, sendo mais nitidamente demarcada a fronteira entre faxineiras e babás. O autor salienta a tentativa de racionalização do trabalho nesse país, que encontra sua expressão máxima nas empresas especializadas. Por meio delas, os empregados tornam-se praticamente invisíveis, sendo o trabalho marcado, tanto quanto possível, pela impessoalidade. A babá especializada, com seus conhecimentos sobre primeiros-socorros, além dos meios e importância de envolver a criança em brincadeiras de faz de conta, trabalha em horários bem definidos, e suas atribuições domésticas se restringem a lavar as roupas e louças da própria criança, bem como arrumar apenas os cômodos a ela destinados.

 

No entanto, Romero (2013) demonstra que as barreiras teóricas entre o trabalho de limpeza doméstica e o de cuidado das crianças são borradas na realidade diária, uma vez que são bastante difundidas práticas que vão na contramão dessa tendência. Assim, aproximando-se do modelo multitarefa mais comumente adotado no Brasil, nos EUA, as babás acumulam funções como limpar a casa, cozinhar, fazer compras, lavar e passar a roupa, cuidar das crianças, levá-las e buscá-las em diferentes atividades etc. Logo, o caso da babá especializada é apenas a ponta ideal de um largo espectro. De maneira geral, o emprego doméstico encontra-se em posição extremamente baixa no ranking de profissões. Diferentemente das posições melhor remuneradas e prestigiadas, caracteriza-se pela ausência de uma clara definição de funções e pela falta de reconhecimento das habilidades, expertise e experiência exigidos. Diante disso, Romero (2013) o distingue entre duas categorias, ocupação-ponte ou ocupação-gueto, definidas em função do papel que desempenha na vida de quem o executa. É concebido como uma ponte quando se trata de uma ocupação transitória, tendo em vista a inserção em um emprego mais bem remunerado, como ocorre com estudantes – imigrantes ou não – que trabalham temporariamente como babás enquanto terminam determinada etapa de seus estudos. Porém, quando a mulher encontra barreiras para entrar em outros setores da economia mais bem remunerados, o serviço doméstico tem o papel de uma ocupação-gueto, um trabalho sem perspectivas de crescimento e sem horizontes de desenvolvimento humano. Como gueto, trata-se de uma região social ocupada por uma minoria, vítima de pressões e discriminação. De maneira geral, se, por um lado, o trabalho doméstico exige pouca qualificação, por outro, demanda um trabalho braçal pesado, aliado a intenso investimento emocional, que inclui a exigência do que Harris (2007) chamou de “afeto de servidão”. Sua condição opressora decorre, em grande medida, da maneira pela qual o trabalho que era próprio das mães, na sociedade pré-industrial, foi modificado para incorporar-se aos novos ditames da sociedade contemporânea. Com sua transformação em trabalho assalariado, as demandas físicas viram-se aumentadas, enquanto seu aspecto criativo foi drasticamente eliminado (Romero, 2013). O protagonismo, a autoria, o poder de decisão, a inventividade e a inovação são algumas das habilidades excluídas do escopo requerido para o exercício da função.

 

Como as babás exercem seu trabalho na intimidade das casas dos empregadores, escondidas no espaço privado dos lares, pouco se sabe sobre quem são essas mulheres, quanto recebem e como são tratadas. Tal invisibilidade favorece panoramas como os dos Estados Unidos e da Europa, onde imigrantes irregulares representam grande parte dessa mão de obra, que atua à margem de benefícios ou proteções legais (Ibos, 2012; Romero, 2013; Williams, Tobío, & Gavanas, 2009; Wrigley, 1995). Sem agências governamentais para regulamentar ou mesmo contabilizar3 seu trabalho, as babás e seus empregadores se organizam informalmente, na total ausência de direitos. Colocando em pauta a exploração do trabalho doméstico na realidade brasileira, Harris (2007) sublinha dizeres do senso comum, tais como “no Brasil, ou você tem empregada ou você é empregada”. Frases como essa colocam a condição de manter uma empregada doméstica como um sinal diacrítico que distancia da pobreza (Brites, 2007). Ao mesmo tempo, expressam uma espécie de véu que impede o reconhecimento da humanidade do outro. Uma vez que tanto a babá quanto a empregadora são mães, questiona-se o que a primeira faz com os próprios filhos para cuidar dos rebentos de sua patroa. Harris (2007) constata que, de olhos fechados para tal indagação, o empregador deriva do pagamento do salário uma sensação de cumprimento das responsabilidades éticas e morais, esquivando-se de refletir sobre as possíveis relações entre suas necessidades financeiras, familiares e emocionais e o poder aquisitivo de sua remuneração, aliado a suas condições de trabalho – caracterizadas, muitas vezes, por jornada extensa, moradia no emprego em pequenos quartos etc. Já Silveira (2011) traz o relato de uma babá que, não encontrando outra solução, certo dia teve que deixar seu filho sozinho, sentado na calçada, à espera de uma vizinha para cuidar dele, enquanto rumou para a casa onde trabalhava.

 

No contato forçosamente íntimo entre babá e empregadora, unidas pela atmosfera tão carregada culturalmente e afetivamente que é a criação dos filhos, algumas diferenças ganham visibilidade, como cor da pele, olhos e cabelos, enquanto outras podem escapar a um olhar superficial, sem por isso perder importância, como visão de mundo e história de vida precedente. Posicionamentos, conflitos e acomodações tendem a obedecer a tácitas demarcações de lugar, variáveis em uma ampla gama. Em seu estudo sobre o cuidado profissional de crianças no ambiente doméstico, Wrigley (1995) apresenta uma coletânea de relatos de experiência que atesta grande variedade nos relacionamentos. A autora apresenta, a partir do ponto de vista das babás, casos que vão desde uma mulher salvadorenha que chegou a ser agredida fisicamente por sua patroa, e outra, guatemalteca, que falou com satisfação sobre o período de 17 anos vivido com sua própria família junto de seus empregadores. Todavia, perceber a existência de arranjos mais harmônicos ou humanizados não significa tornar-se indiferente às inúmeras questões conflituosas subjacentes. Em pesquisa sobre as relações que se dão, na capital francesa, entre babás marfinenses e suas patroas, Ibos (2012) caracteriza tal encontro como a convergência de dois mundos que, não fosse pela realidade do trabalho doméstico, permaneceriam absolutamente apartados por uma distância intransponível, o universo das classes privilegiadas parisienses e o das famílias marfinenses. Enquanto para as famílias do primeiro caso, o domicílio é um refúgio confortável, para as mulheres que viajaram rumo à França com o objetivo de enviar recursos para seus familiares em terra natal, trata-se de local de trabalho. A autora aponta a cegueira aparente dos empregadores, que não demonstram interesse por saber quem é a mulher que empregam, qual é a sua história, além de não estabelecerem relações entre sua presença em seu lar e a situação do mundo contemporâneo. Em outras palavras, operam uma despolitização da relação que possuem com a babá, deixando de percebê-la como expressão tangível de fatores mais amplos, como os fluxos de migração internacional, o trabalho precário e as heranças da história colonial recente.

 

A diversidade das relações existentes entre babás e mães é contemplada por Silveira (2011) em seu estudo etnográfico com uma rede de babás do Rio de Janeiro. A expressão “como se fosse da família”, frequentemente utilizada para caracterizar o lugar da babá nas casas em que trabalha, carrega os paradoxos subjacentes à relação entre babás e empregadoras. A autora nos lembra que a fórmula “como se fosse”, ao mesmo tempo que aproxima duas realidades, afirma que não são a mesma coisa. Igualmente, a relação entre as duas mulheres, tendo a criança como epicentro, oscila entre estranhamento e familiaridade, sendo marcada simultaneamente por intimidade e distância social. Ao investigar a participação das babás nas dinâmicas familiares, Silveira nota a existência de ambiguidades afetivas (proximidade-distanciamento, igualdade-hierarquia, autoridade-servilismo, fidelidade-traição), as quais interpreta a partir do entrecruzamento dos conceitos de afetividade, intimidade, trabalho e dinheiro. Ela observa um convívio permeado por negociações entre camadas sociais distintas, cujo encontro é propiciado pelo trabalho e pelos afetos. Para a pesquisadora, estes são os dois polos que marcam tais relações, ora reforçando, ora velando antagonismos de classe, de gênero – incluindo relações intragênero, as quais, por vezes, incluem também a figura da avó e/ou da babá folguista –, de categorias de status baseadas em posição socioeconômica, cor e idade. Por outro lado, Silveira borra as fronteiras entre afetividade e profissionalismo quando lembra que ambos podem ser vividos de maneiras distintas. Do ponto de vista da mãe, por exemplo, constatar um vínculo significativo entre babá e criança pode ir de motivo de ciúmes a garantia de que se trata de uma boa profissional. No que toca ao profissionalismo, enquanto uma mãe entrevistada reclama que a babá só pensa em dinheiro, uma das babás ouvidas se queixa de que a mãe não valoriza financeiramente o amor que ela sente pelos seus filhos, nem a relação de confiança que possui com a família. Assim, o estudo traz para o interior do espaço doméstico categorias que comumente se quer afastar como se fossem poluir, de algum modo, a imaculada atmosfera das relações familiares, a saber, dinheiro e carreira. O laço afetivo com a criança acaba por configurar-se como “sentimento que se insere no processo de trabalho das babás” (p. 23). Trata-se, portanto, de uma ousada análise acerca da interface presente na profissão da babá entre sentimentos e remunerações (que, para além do salário, incluem trocas de presentes e de favores).

 

Quanto à visão dos empregadores, Wrigley (1995) observa, como ponto comum no discurso de seus entrevistados, que a principal motivação para a contratação de uma babá é a de garantir que os filhos recebam atenção individualizada, diferentemente do cuidado coletivo dispensado nas creches e escolas. Tais famílias acreditam que, já que a babá é sua empregada, terão maior ingerência sobre o tipo de cuidado que será dispensado à criança. Paradoxalmente, número significativo de famílias demostra preferência por contratar mulheres pouco qualificadas e vindas de países pobres (Romero, 2013; wrigley, 1995). A condição de fragilidade aparece associada à intenção de maximizar o controle sobre elas. Permite, igualmente, aglutinar funções ligadas ao cuidado da casa e da criança, já que uma mão de obra especializada não comportaria semelhante acúmulo de funções. Favorece, ainda, a ampliação do controle para demais esferas da vida da empregada. O sentimento de isolamento é recorrente na experiência de babás, principalmente aquelas que moram no emprego (Romero, 2013). Ademais de dificultar a procura de outros empregos, o isolamento é visto como uma das principais raízes do estabelecimento de um forte vínculo afetivo com as crianças. Quanto menos instruídas são essas mulheres, sem contatos no país, sem opções de emprego e de vida, mais facilmente são submetidas e controladas. Tal posição é ilustrada pelas palavras da responsável por uma agência de babás estadunidense, sobre a dificuldade encontrada para empregar uma mulher norte-americana com excelentes qualificações: “Se alguém é seu semelhante, você não consegue dizer ‘Lave a louça, lave a roupa!’ É terrível dizer isso, mas talvez [os empregadores] pensem que essas outras mulheres estão abaixo deles” (wrigley, 1995, p. 5, tradução nossa).

 

O controle desse modo alcançado pelos empregadores também encontra seus limites e cobra seu preço. Para os pais, é fácil ver o quanto a casa está limpa, mas como podem saber quanta atenção – e que qualidade de atenção – foi dada à criança? Como a aparência física é visível e costuma ser muito valorizada por famílias com essa mentalidade, grande número dos relatos coletados por Wrigley (1995) mostra cuidadoras que se dedicam principalmente à higiene da criança, escovando seus cabelos, limpando-a e vestindo-a com roupas limpas. O peso dado a esse aspecto ocorre em detrimento da atividade infantil, que consequentemente é restringida para manter a criança bem arrumada. Romero (2013) expõe outro resultado nefasto dessa espécie de relação marcadamente desigual, cujo malefício, novamente, retorna como um bumerangue. Em tais circunstâncias, as babás obtêm menos respeito por parte das crianças e encontram dificuldades para exercer autoridade na definição de limites e atividades. Por conseguinte, terminam por atuar como serventes, correndo para atender as vontades e demandas de seus pequenos patrões. Acreditando oferecer o melhor a seus filhos, essas famílias, em realidade, logram abandoná-los à tirania dos próprios desejos e, simultaneamente, reproduzem e validam relações de desrespeito e exploração. O fenômeno da preferência pela baixa qualificação também é bastante comum no Brasil. Em contraste, existem famílias mais preocupadas com a riqueza de experiências e qualidade das interações proporcionadas às crianças. Seria este, por exemplo, o caso daquelas que optam por contratar estudantes como au pair, uma modalidade de guarda de crianças cercada pelo discurso de intercâmbio cultural, unido à intenção de evitar reproduzir desigualdades socioeconômicas na intimidade de suas casas. Uma das entrevistadas que se enquadra nesse caso justifica sua opção com a declaração de que não suportaria que a filha fosse educada “para pensar que existem pessoas a quem pode se dirigir com superioridade” (Wrigley, 1995, p. 48, tradução nossa).

 

Para compreender o processo de construção dos corpos colocado em marcha a partir do encontro entre criança e babá, é fundamental olhar mais detidamente para as relações de diferenças e pertencimentos, latentes no contexto da educação informal em casas de família. Tal olhar nos convida a ver o corpo da babá como suporte material de marcas identitárias. Ao fato de ser uma ocupação marcadamente feminina, tanto do ponto de vista de sua composição numérica como dos significados femininos ligados ao cuidado de crianças, somam-se outros marcadores de pertencimento, como lugar de origem, classe social, nível de escolaridade, etnia, religião, idade. Nessa direção, alguns estudos que se dedicaram a pensar sobre o trabalho doméstico do cuidado de crianças iluminam os signos identitários inscritos no plano da corporeidade.

 

O corpo da babá como suporte de marcas identitárias

Vulto embaçado no lusco-fusco do ambiente doméstico, o corpo feminino que cuida dos rebentos de outros carrega, simultaneamente, inscrições de pertencimento e diferença. Evidentemente, o exercício da maternagem não escapa a conflitos. Segato (2006) defende a existência de uma continuidade histórica entre o contemporâneo trabalho sub-remunerado das babás e o antigo trabalho não pago das escravas. Essa autora traz importantes elementos para reflexão acerca do corpo da babá ao analisar a prática da maternidade transferida na história brasileira e seu impacto sobre a mentalidade nacional, com ênfase na questão racial. Ela descreve o processo pelo qual o território, a princípio indiferenciado, do corpo materno-infantil vai dando espaço para a oposição e diferenciação identitária, relacionando-o ao movimento coletivo de negação da ancestralidade negra.

 

O corpo da babá, assim como o corpo materno legítimo, representa para a criança pequena, num primeiro momento, parte dela mesma, extensão de sua própria existência. Num segundo momento, quando já se esboça uma separação entre Eu e o Outro, esse corpo passa a ser sua posse. Deixa de ser Eu para tornar-se Meu. É evidente que o sentimento de propriedade sobre o corpo materno não deriva da relação escravo-senhor, já que também existe em relação ao corpo da mãe biológica. Escravidão e maternidade, nesse sentido, se aproximam pela coisificação do corpo materno. Mas a primeira ganha novos contornos quando concebe um corpo destituído de humanidade. No passado, a humanidade da mulher cuidadora era encoberta por sua posse como escrava. Atualmente, o é por força de um contrato de trabalho. Considerando a existência de um laço de sedução na relação com a cuidadora, fortalecido ainda numa fase em que a impossibilidade de separar Eu e o Outro faz com que os dois corpos estejam fundidos em um só, para Segato (2006)

 

uma criança amamentada ou simplesmente cuidada por uma ama de pele mais obscura, uma ama com raízes na escravidão, terá incorporada esta imagem como própria. Uma criança branca, portanto, será também negra, por impregnação da origem fusional com um corpo materno percebido como parte do território próprio (p. 15).

 

A ligação pelo seio, do passado, aparece nos dias atuais como ligação pelo colo e mamadeira. Segato (2006) fala dessa ligação como parentesco, reforçando os significados da amamentação que extrapolam a dimensão biológica. A antiga presença da mãe preta atualiza-se, nos dias de hoje, na forma de mãe seca polivalente, a que se convencionou chamar de babá. A história da presença de nutrizes, amas de leite, amas secas e babás nos lares brasileiros conta que foi acompanhando as tendências ditadas pela Europa (Daudet, 2008), somente quando, na segunda metade do século XIX, o discurso higienista passou a apontar as amas de leite como potenciais transmissoras de doenças, fossem biológicas ou morais, que a prática das amas secas começou a se difundir. As associações entre herança pelo sangue e pelo leite fundamentavam a preocupação dos higienistas contra a prática das amas de leite negras. Em paralelo, ganharam força expressões como “mãe tem uma só”, bem como as enunciações, carregadas de ódio, que pediam o fim da escravidão como único meio de acabar com a influência perniciosa dos negros na intimidade dos lares de famílias brancas. Pelo leite, mulheres negras estariam transmitindo costumes, hábitos e linguagem viciados. Tais ideias foram formuladas em palavras de rejeição às mães de criação negras, provavelmente proferidas “por homens que na infância foram embalados junto a seios como os delas” (Segato, 2006, p. 5), fundidos com seu corpo feminino de raízes na escravidão. Mais tarde, para se separar, o corpo desgarrado da mãe não reconhecida precisará de uma agressividade proporcional ao apego que antes existia. Diante desse quadro, Segato defende que, ao invés de ter promovido a emergência de uma cultura plurirracial, o convívio inter-racial íntimo entre criança e ama presente na história do Brasil reforçou, por meio de um mesmo gesto psíquico, racismo e misoginia.

 

É certo que o movimento de recusa à herança considerada ilegítima não apaga, entretanto, a memória cultural, composta por crenças, histórias, ritmos e músicas, receitas e cuidados com o corpo, transmitida na experiência da relação íntima entre amas e crianças (Deiab, 2005). Essa herança subsiste à tentativa de seu apagamento na memória nacional, que se materializa em expressões como o progressivo desaparecimento dos corpos das amas nos registros fotográficos do período final do Brasil colonial. Analisando os negativos de um estúdio fotográfico ativo durante os anos de 1860 a 1880, Deiab nota a retirada gradual das amas negras do enquadramento dos retratos. O modelo europeu, referência para os fotógrafos brasileiros, ditava que os bebês fossem fotografados com o rosto colado ao da mãe, de modo que esta pudesse sustentá-lo imóvel durante o tempo de exposição necessário. Porém, por conta de os pequenos serem mais próximos e acostumados à mãe preta que à biológica, era aquela, e não esta, que figurava junto a eles, ao centro e em primeiro plano nos retratos iniciais. Mesmo as crianças maiores aparecem, em inúmeras fotos, no colo de sua mãe preta. Então, exibir a posse de escravas negras saudáveis e bem vestidas junto aos filhos era signo de status social. Acompanhando a disseminação dos discursos higienistas e abolicionistas, esse passa a ser um elemento questionado e condenado, observado nas fotos do final do período escravista que tentam esconder a mulher negra. Antes de sumir completamente das imagens, porém, sua presença ainda acena como um rastro: um vulto, uma mão, um punho. A linguagem imagética desses registros testemunha uma tentativa de apagamento dos traços da existência dessas mulheres.

 

O componente de violência não se limita a um tempo pregresso, já que, como continuidade histórica, se faz presente na própria forma com que se dá, nos dias atuais, a inserção da cuidadora no seio da família (Brites, 2007; Romero, 2013; Williams, Tobío, & Gavanas, 2009). O contexto familiar constrói para a criança um ambiente de socialização que reproduz e reforça os mesmos valores que fundamentam as condições pelas quais essa mulher é inserida na casa. A partir de uma pesquisa etnográfica, Brites (2007) considera o emprego de mulheres de classes baixas em casas de famílias das camadas médias brasileiras como instrumento de uma didática da distância social. A presença dessas trabalhadoras sub-remuneradas constrói para as crianças um ambiente de socialização fundado em hierarquias de classe, gênero, etnia e raça. Configurando uma ambiguidade afetiva, a inegável existência de laços afetivos entre babá e criança não impede que existam claras demarcações hierárquicas que delimitam as posições de chefe e subalterno. Espaços da casa como o quarto e o banheiro de empregada materializam fronteiras intransponíveis. Romero (2013) também denuncia o papel que o emprego de mulheres imigrantes mal remuneradas como domésticas desempenha na reprodução social da cultura “do privilégio na infância de futuros patrões e patroas” (p. 191, tradução nossa). Ela mostra como, intencionando proporcionar às crianças uma boa colocação social, opera-se desde cedo sua introdução num universo onde cada qual ocupa lugar bem definido.

 

No que se refere à categoria de gênero, especificamente, o estudo desenvolvido por Ibos (2012) mostra que, na distribuição de papeis entre homem e mulher, dentro do casal de empregadores, ainda é a segunda que se ocupa de selecionar, orientar e acompanhar o trabalho da babá. Embora a lógica social aproxime babá e patroa ao ligar ambas à área do cuidado, diferencia-as prontamente pela alteridade que distancia patrões e empregadores. Alteridade expressa, no caso do universo sobre o qual a pesquisadora se debruçou, na distinção entre franceses e migrantes. Seguindo na mesma direção, Romero (2013) denuncia que a presença da babá nas casas de família faz com que o lugar da mulher seja definido com base numa contradição. É o emprego de mulheres – mal pagas, exercendo um ofício desvalorizado socialmente e, muitas vezes, vivendo no emprego – que possibilita a emancipação da patroa ou, dito de outro modo, a opressão de gênero sobre uma mulher funciona como condição para que outra possa escapar dessa mesma opressão (Romero, 2013). Na corrida competitiva por colocação social, a busca de proporcionar aos filhos melhores oportunidades passa por oferecer o cuidado contínuo que está fora do alcance de uma mãe que trabalha fora. Mas esta é apenas a justificativa mais superficial, pois, como expõe Romero, o fato de tal cuidado ser desempenhado por uma mulher de origem social distinta da de seus patrões, trabalhando num emprego sub-remunerado, funciona como meio extremamente eficaz de socialização das crianças nos chamados sistemas de privilégio, inerentes à boa colocação almejada. Estas rapidamente aprendem a ser consumidoras de cuidado. Em vez de cuidar, aprendem a existir num espaço em que o trabalho braçal de alguém está disponível para atender suas vontades e necessidades, aprendem, enfim, a tratar determinadas pessoas como meios, no lugar de exercer o respeito mútuo e valorizar o ser humano como finalidade em si.

 

A identificação passa pela diferenciação. A partir do material coletado em entrevistas com homens do Rio de Janeiro que se autodeclaram brancos, Corossacz (2014) analisa casos em que a afirmação de branquitude se dá em relação às lembranças infantis com uma babá negra. Os entrevistados narram sua experiência de construção identitária como homens brancos fazendo referência a momentos da própria biografia. Todos lembram da babá como alguém afetivamente importante durante a infância, com quem viviam uma relação de intimidade e afeto. Guardam dela uma imagem de mulher que cuida e dá carinho. Porém, as narrativas biográficas apresentadas descrevem um mundo em que os negros ocupam exclusivamente posições subordinadas, como babás, faxineiras, jardineiros, entregadores e serventes. Assim, ainda que se lembrem de haver estabelecido vínculos afetivos com negros, nenhum dos entrevistados fala de experiências de igualdade social. Os negros aparecem, nos relatos, como referência de lugar social mais baixo, menos valorizado e, ao mesmo tempo, como contraponto para sua identificação como brancos.

 

Com base nessas narrativas biográficas, Corossacz também mostra a combinação entre intimidade e desigualdade como um dos ingredientes do racismo brasileiro. Avançando na reflexão, ela expõe como as categorias identitárias de branquitude e masculinidade funcionam como ponto de referência, a partir do qual se definem e nomeiam os demais grupos, considerados diferentes. As narrativas desses homens têm em comum, como ponto central, a definição de si mesmos como brancos por diferenciação em relação a um outro – no caso, uma outra: uma mulher, negra e pobre. Ao exibirem a percepção da própria branquitude como algo normal, associam normalidade e neutralidade às categorias dominantes relativas a gênero, cor, raça e classe nas quais se inserem – homem branco de classe média-alta. A coincidência dessas memórias infantis, referentes a eventos vividos no Rio de Janeiro dos anos 1950, com a história dos lares do Brasil colonial atesta um processo histórico de mútua constituição entre as categorias de identidade que, isoladas, perderiam seu sentido. Só cabe afirmar-se de uma cor ou outra em um contexto em que, primeiramente, são reconhecidas cores de pele diferentes e, em adição, esta é considerada como um fator importante na definição de pertencimento, em detrimento de outras características possíveis.

 

Em sua dissertação de mestrado, Vieira (2014) aborda o corpo da babá como espaço em que são vivenciadas e ressignificadas as relações sociais atravessadas por marcadores de raça, gênero e classe. Ela mostra, de maneira sensível, como fatores históricos, políticos e sociais associados ao trabalho doméstico de crianças se materializam em corpos femininos e suas histórias individuais. Assim, as heranças da escravidão, as extensas jornadas de trabalho e os baixos salários se traduzem em dores e cansaços dos quais o corpo reclama cotidianamente, em apagamento do sujeito que se vê reduzido a um utilitário, ao mesmo tempo objeto de trabalho e de objetificação sexual. Esse mesmo corpo, objeto e abjeto, se constitui também de pronunciada dimensão afetiva. Os relatos coletados pela pesquisadora contam sobre os fortes vínculos que as profissionais estabelecem ao cuidar da infância de filhos de outras mulheres. Vieira (2014) nos lembra que

 

são as babás que carregam ao colo, alimentam o crescimento, estimulam a percepção, ensinam as primeiras palavras, sentam ao chão para brincar, ninam os sonhos, dançam junto e doam seus carinhos a uma grande parte das crianças brasileiras. Ao estarem só – a babá e a criança – é o corpo-afeto que predomina. Enquanto estão as/os patroas/patrões conjuntamente, são as outras dimensões – corpo-objeto e corpo-abjeto – que emergem de modo mais forte (p. 135).

 

O conjunto de estudos até aqui compilado reforça a imperatividade da indagação sobre a dimensão corpórea da identidade de mulheres babás, bem como do papel educativo por elas desempenhado a partir das relações estabelecidas nas casas de família em que atuam. As contribuições oferecidas assinalam, sobretudo, a existência de uma função formativa não declarada, fundada na incorporação mesma de uma trabalhadora no seio da família. Função oculta, pois confinada ao plano do não dito e das aprendizagens colocadas em curso por meio da inserção das crianças – e seus corpos infantis – num ambiente regulado por princípios organizadores compartilhados. Nesses casos, mais do que uma ação formativa exercida pela babá, podemos falar de uma educação corporal que se põe em marcha através dela, derivada dos efeitos de diferenciação que sofre e das categorias identitárias que atravessam sua corporeidade. Nas pesquisas evocadas até aqui, a babá aparece, portanto, mormente como elemento passivo num contexto formativo, permanecendo ainda pouco estudado seu papel ativo na educação de crianças.

 

A babá como educadora

Praticamente inexplorada, a temática foi, até o momento, abordada de maneira periférica nos campos da psicologia e da educação. A pesquisa realizada por Baltazar (2011), intitulada Vida de babá, explora o conceito de persona profissional, com base na teoria junguiana. Seu enfoque culmina na defesa da criação de espaços que visem a qualificação profissional das babás e, ao mesmo tempo, seu desenvolvimento psicológico. A principal contribuição desse estudo reside no olhar sobre a função de educar exercida pela babá, juntamente com as funções de cuidar e acompanhar. Para Baltazar, tal profissional realiza suas atribuições a partir do encontro entre o próprio repertório, como bagagem de suas experiências pessoais, e o repertório da família para a qual trabalha, com seus valores e modos de ser. Diante das consonâncias e divergências dessa justaposição, lidar com elas configura-se como um desafio da profissão.

 

Fanti (2006), por sua vez, coloca em foco a relação educativa entre babá e criança a partir de uma análise da mediação semiótica estabelecida entre ambas. Ela interessa-se especificamente pelas formas de mediação colocadas em ação em momentos de alimentação e brincadeira, sempre em ambiente doméstico. Fanti problematiza a qualidade das mediações, discutindo a questão da deficiência na formação profissional desse segmento. Em sua análise, observa maior presença de influências da família no tocante à alimentação da criança. Tanto no discurso das mães como no das babás, tal atividade recebe atribuição de maior importância que a brincadeira, sendo, por isso, alvo de mais orientações por parte das empregadoras. É no brincar que a babá exerce uma ação baseada em seus próprios valores culturais. Tal estudo denuncia a persistência de uma visão dicotômica entre cuidar e educar nas representações sobre o trabalho das babás, presente, inclusive, na própria concepção que essas mulheres têm de sua atividade profissional, atribuindo a si somente o cuidado e acreditando ser a tarefa de educar uma exclusividade dos pais.

 

Finalmente, na pesquisa educacional, as babás são mencionadas em trabalhos dedicados ao universo escolar, figurando no segundo plano de expressivo número de estudos sobre a Educação Infantil. Elas são apresentadas ora como um dos atores envolvidos no processo de adaptação da criança à creche (Elmôr, 2009), ora como exemplos ilustrativos da deficiência na formação de educadores da primeira infância (Mindal, 2004), mas também como opção de cuidado dos filhos inacessível para a maior parte das mães (Martins & Guelfi, 2005). A denominação “babá” é frequentemente utilizada, ainda, como contraponto ao status de professora, como se a valorização desta dependesse da depreciação daquela (Massucato, 2012).

 

O caráter educativo do trabalho de babás propriamente dito é sinalizado superficialmente por Melchiori & Alves (2001) em uma investigação sobre o discurso de educadoras de uma creche a respeito do temperamento dos bebês, com vistas a conhecer o sistema de crenças que orienta sua atuação profissional. As educadoras entrevistadas atribuem grande peso ao ambiente em sua explicação sobre o desenvolvimento dos bebês, muitas vezes mencionando a babá como um dos agentes influenciadores nesse processo. Salientam unicamente seu caráter negativo, pois, na crença das educadoras ouvidas, as babás seriam responsáveis por “prejudicar os bebês pelo excesso de cuidados dispensados a eles, tornando-os assim mais manhosos” (p. 291). Nesse sentido, as babás são colocadas junto às avós como agentes de influências puramente negativas. Nas falas estudadas, as educadoras buscam autoafirmar-se a partir da diferenciação em relação a ambas, quando enfatizam “somos profissionais” (p. 291), implicitamente dizendo que babás não o são. A junção das babás e avós nessa concepção reforça o não reconhecimento das primeiras como profissionais e o desprestígio dessa ocupação feminina. Assim, as educadoras agem como se a valorização de seu status profissional dependesse da diminuição de outras funções tradicionalmente femininas de cuidado de crianças, como a das cuidadoras domésticas. O mesmo acontece com as mães, percebidas, em quase metade dos casos, como relapsas e ausentes em relação aos filhos e à sua vida na creche. Melchiori e Alves apontam dois possíveis fatores que estariam por trás de tais queixas. De um lado, sinalizam a persistência de uma concepção ainda tradicional do que seria o papel da mãe, incompatível com os novos ditames das sociedades ocidentais contemporâneas. Por outro, supõem uma tentativa de autocompensação, por parte das profissionais, diante da falta de reconhecimento e de valorização social de seu trabalho.

 

Enquanto os estudos sobre educação informal se detêm exaustivamente sobre o papel das mães, deixando de lado outros atores, Sampaio (2008) examina o papel exercido pelas babás na formação moral das crianças. Ela denuncia a escassez de conhecimentos sistematizados sobre o tema e, sem questionar a centralidade da mãe na educação dos filhos, defende a importância da influência de outros agentes envolvidos no processo, em especial as babás. Brites (2007) oferece importantes elementos para embasar essa colocação ao mostrar que, diferentemente dos empregadores, as crianças não são impermeáveis ao repertório cultural das empregadas domésticas. A quantidade de tempo de convívio e a qualidade das interações possibilitam que a criança dialogue com a babá, lhe faça perguntas, ouça histórias contadas por ela, escute as músicas que ela ouve enquanto trabalha. Nesse contexto, as babás assumem, conscientemente ou não, o papel de transmissoras de saberes e valores. A preocupação dos empregadores costuma desconsiderar esse aspecto, resumindo-se à capacidade da babá de oferecer os cuidados básicos de alimentação, higiene e segurança (Sampaio, 2008). Assim, é comum que os empregadores idealizem uma cisão: contratam alguém para realizar tarefas ligadas ao cuidar, esperando que o educar, no âmbito doméstico, será incumbência exclusiva da família.

 

Ao reconhecer o papel das babás na formação moral das crianças, Sampaio se depara com a necessidade imperativa de uma formação profissional de qualidade. Ela nota que o exercício ativo de uma função educativa, entretanto, vai de encontro a estigmas associados ao trabalho doméstico. Do mesmo modo que as demais profissões domésticas, a atividade da babá é marcada por imagens negativas, frequentemente internalizadas pelas próprias trabalhadoras. É comum que as babás enxerguem seu trabalho como um ofício que não exige competências específicas, podendo ser desempenhado por qualquer mulher. Muitas das entrevistadas desqualificam o próprio trabalho e afirmam sentir vergonha de exercê-lo (Sampaio, 2008), chegando a preferir a informalidade para não “sujar” sua carteira de trabalho. A crença de que o cuidado e educação de crianças pequenas seria uma tarefa para a qual as mulheres estariam naturalmente habilitadas contribui para essa visão e dificulta o reconhecimento da importância de treinamento profissional específico. Ademais, a profissão, no Brasil, é regida pelas mesmas leis que regulamentam o trabalho doméstico em geral, incluindo cozinheiro(a), governanta, vigia, motorista particular, lavadeira, faxineiro(a), jardineiro(a), acompanhante de idosos, entre outros, sem considerar suas especificidades. Diante de tal precarização do trabalho das babás, Sampaio defende a necessidade de sua profissionalização por meio de adequada regulamentação, observação de condições adequadas de trabalho, sindicalização e oferecimento de formação profissional específica, adequada às particularidades desse campo de trabalho. Mais uma vez, sobrepujar a cisão entre cuidar e educar é apontado pela autora como desafio central na constituição dessa formação, de modo a favorecer que sejam superadas as rotinas empobrecidas de cuidados realizados de forma mecânica.

 

Considerações finais

“Onde está a babá?”, brada Segato (2006) no início de seu levantamento sobre o tópico na literatura acadêmica brasileira, após constatar que, quando muito, babás são citadas como parte de listas e enumerações, sem qualquer análise subsequente. Ela observa que, no concernente a essas profissionais, foram deixados de lado aspectos de sua subjetividade, de sua inserção social, bem como de seu papel a partir da perspectiva das crianças ou mesmo das mulheres, suas empregadoras, que lhes delegam parte de suas funções maternas. A essa indagação gradativamente unem-se outras vozes, também engajadas em elucidar tais tópicos no campo das humanidades. Diante da ausência de estudos sobre o tema no âmbito da educação4 no período de tempo analisado, as reflexões reunidas e articuladas neste artigo oferecem contribuições para que se consolidem as bases de um enfoque educacional sobre a relação formativa que se coloca em marcha no cuidado doméstico de crianças.

 

O panorama de conhecimentos desenhado reforça a importância de investigações sobre a temática no campo educacional, ao mesmo tempo em que oferece subsídios provenientes de outros campos das humanidades. Tais contribuições indicam caminhos a serem percorridos para a compreensão da formação de corpos-identidades que tem lugar no interior das casas, no espaço naturalizado do ambiente doméstico, onde se dá o encontro de corpos plasmados por histórias de vida particulares, posições e status delimitados, marcas de pertencimento cultural, étnico e religioso. Ao mesmo tempo que realça a relevância do tema, a marcante ausência das babás no horizonte específico das ciências da educação nos leva a indagar sobre as razões por trás desse silêncio. A visão sociológica e histórica apresentada no primeiro agrupamento enseja justamente a identificação das raízes da atual invisibilidade e do descaso relacionados ao trabalho feito por mulheres no interior das casas. Falar sobre babás implica, necessariamente, abordar temas sobre os quais ainda paira um silêncio tácito, como a condição feminina, as relações de raça e etnia e a desvalorização do trabalho no ambiente doméstico em oposição àquele realizado em espaço público, decorrente do movimento de industrialização fundante da sociedade contemporânea.

 

No segundo agrupamento, os trabalhos que abordam mais profundamente as questões de identidade entremeadas no corpo revelam os processos educativos que acontecem por meio da babá, mas ainda sem que ela exerça papel ativo. Desse modo, evidenciam um conjunto de conceitos, ideias e valores implícitos que, como conteúdos ocultos, participam da educação das crianças, ainda que não de maneira declarada ou abertamente desejada. Por fim, no terceiro agrupamento, procuramos mostrar de que modo a babá aparece como agente educadora. As investigações em Educação e Psicologia apresentadas figuram apenas os primeiros passos de estudos exploratórios sobre um universo que demanda atenção, diante das amplas perspectivas abertas. No tocante às babás, são ainda numerosas as questões a perscrutar. Entre elas: quem são essas mulheres e que bagagem trazem no exercício do cuidado das crianças a elas confiadas? Qual seu papel na formação cognitiva, emocional e corporal dos meninos e meninas? Que relações se estabelecem entre adulto e criança nesse encontro? De que maneira o ambiente doméstico e a relação com os adultos empregadores influenciam o desenvolvimento de seu trabalho com as crianças?

 

Enfim, desenvolver um enfoque sobre o papel ativo das babás como educadoras da infância não significa reforçar clichês que cercam as categorias identitárias de mulheres, migrantes, trabalhadoras domésticas, tampouco contribuir para sua vitimização. Ao contrário, o panorama da produção científica acerca do tema aponta para a necessidade do empreendimento de estudos sobre as babás que nos permitam conhecer suas histórias, seus saberes, seus recursos, suas resistências, suas ousadias, suas estratégias de adaptação e de resolução de problemas, sua capacidade de redesenhar projetos e reorientar percursos, sua habilidade e criatividade empregadas na educação de crianças. Desse modo, delineiam-se novas pistas para os estudos na área.

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