1-A
babá como trabalhadora doméstica
O
presente estudo exploratório sobre o caráter educativo do trabalho doméstico de
cuidado de crianças focaliza especificamente o processo de construção dos
corpos-identidades que se faz presente na interação entre a mulher babá e a
criança sob seus cuidados. Para tanto, reúne e coloca em diálogo estudos
produzidos nos campos da Educação, Psicologia, Sociologia e História. Tal
mapeamento visa contribuir para a desnaturalização da imagem estereotipada do
cuidado infantil enquanto tarefa feminina e para a valorização desse trabalho
formativo realizado em espaço doméstico. O panorama desenhado abre uma série de
questões a serem perscrutadas no sentido de elucidar o que está em jogo no
corpo a corpo desse encontro.
A história
de cada pessoa pode ser lida pelas marcas, visíveis e sutis, impressas no seu
corpo ao longo da vida. Além de traços como cicatrizes, rugas, sulcos na pele,
tatuagens, enfeites e vestimentas, sua singularidade se expressa nos modos de
se movimentar, falar, agir e se expressar. Em ambos os casos, a cultura, aqui
entendida enquanto campo de produção de significados, exerce um importante
papel. Consequentemente, se entendermos a educação como experiência de
socialização em determinado meio cultural, podemos atribuir-lhe a mesma
relevância no que diz respeito à constituição da corporeidade.
O
adulto envolvido no cuidado e na educação de crianças pequenas tem uma forma
singular de atuar em relação a elas, materializada em aspectos como o olhar,
tom de voz, postura que adota nas interações, gestualidade com que demonstra –
ou não – emoções e afetividade, se ri, se chora, como acolhe e nina, que
hábitos de alimentação e higiene valoriza, que cantos e parlendas entoa, que
histórias conta e de que maneiras o faz, se participa ou não de brincadeiras,
se traz marcas de sofrimento, marcas da maternidade, se foi moldada por
práticas corporais2… No âmbito do cuidado infantil profissional em espaço
doméstico, todas essas são maneiras pelas quais o corpo da babá, enquanto se
ocupa do corpo infantil, dá a ver inscrições deixadas pela trajetória de sua
existência. Ao mesmo tempo, novas inscrições lhe são acrescentadas em função do
lugar que ocupa na casa, dos signos de respeito demonstrados em sua presença,
dos espaços e recursos que lhe são destinados, das tarefas de que se ocupa, da
organização do tempo entre trabalho e descanso, da divisão entre o atendimento
das próprias necessidades e necessidades de outros e do acesso a confortos e
alimentos. Trata-se de um conjunto de marcas que revelam, a cada instante,
significados culturais que fazem desse corpo mais que um organismo biológico,
tornando-o palavra em um texto coletivo. Assim, o corpo que cuida e educa
também foi e é, continuamente, cuidado e educado. De Certeau (1990) caracteriza
o corpo como inscrição cultural, texto que se move. Por meio de uma escrita
exercida ao longo de toda a vida, os corpos, como páginas em branco, tornam-se
suportes para um sistema simbólico. É esse processo que faz das carnes,
efetivamente, corpos.
Com
base nessa percepção, foram analisados os trabalhos que abordam a dimensão
educativa do cuidado profissional de crianças em ambiente doméstico,
focalizando especificamente o processo de construção do corpo-identidade que se
faz presente na interação entre a mulher babá e a criança sob seus cuidados. A
opção por direcionar o olhar à educação que se desenrola fora da escola,
especialmente no trabalho de babás, busca responder à identificação de uma
lacuna importante no âmbito da pesquisa educacional. Uma consulta aos bancos de
dados revelou a quase inexistência de estudos sobre o caráter educativo desse
trabalho. Paradoxalmente, o termo babá apresenta ocorrência significativa nos
agradecimentos de teses e dissertações. Algumas cuidadoras são lembradas pelos
pesquisadores por terem feito parte de sua própria história, durante a
infância, outras por haverem estado com seus filhos durante a realização das
pesquisas. Entretanto, a tais mulheres ainda não foi outorgado plano de
destaque como tema de estudo no campo da educação.
A
escassez de conhecimentos sistematizados sobre o tema acusa a pouca relevância
atribuída às relações entre educador e criança no ambiente domiciliar. Tendo em
vista um tratamento responsável do tema, em primeiro lugar, é importante
salientar que reconhecer a função educativa do trabalho das babás, com base na
indissociabilidade entre cuidar e educar, não tem a intenção de aproximá-las do
status de professoras. Ao contrário, afirmar o papel dessas mulheres significa
ir contra as mesmas raízes que, apoiadas numa cultura misógina, alimentam a
perpetuação da desvalorização do professorado do segmento da Educação Infantil,
bem como de outras funções tradicionalmente associadas ao feminino. Assim,
seguindo na contramão das construções históricas que estão por trás do
desprestígio e da invisibilidade atribuídos a esta profissão ancestralmente
feminina, esperamos contribuir para sua valorização e (re)conhecimento.
Procedimentos
metodológicos
Com o
intuito de reunir e analisar conhecimentos produzidos sobre o trabalho
educacional exercido pelas babás realizamos um estudo exploratório nos moldes
propostos por Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (1998). Para tanto, adotamos a
pesquisa bibliográfica como procedimento. Segundo Lima e Mioto (2007), isso
implica um movimento de apreensão dos questionamentos e de interlocução crítica
com o material bibliográfico.
Serviram-nos
como fontes a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações, o Banco de
Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e
o Banco de Teses e Dissertações da Universidade de São Paulo, além dos bancos
eletrônicos SciELO, Google Scholar e Cairn. A pesquisa, desenvolvida durante o
segundo semestre de 2016 e primeiro de 2017, organizou-se ao redor da
palavra-chave “babá” presente nos títulos, resumos e palavras-chave, e de seus
correspondentes em inglês e francês (nanny, au pair, nounou, nourrice, garde
d’enfants), de modo a contemplar diferentes modalidades de cuidado infantil em
ambiente doméstico. Foram analisados trabalhos publicados entre 1995 e o
primeiro semestre de 2017. Em função da questão norteadora da pesquisa, não
foram incluídos nesta revisão da literatura os estudos que abordam o trabalho
doméstico de maneira genérica, sem distinção entre o cuidado da casa
(housekeeping) e o cuidado das crianças (childcare); tampouco aqueles que
abordam as profissões do cuidado de maneira ampla, sem enfoque nas
especificidades do cuidado de crianças que diferenciam esse tipo de care
daqueles voltados a pessoas idosas ou doentes, por exemplo. Deste modo, o
corpus da análise foi constituído por 23 documentos, entre os quais
encontram-se 10 artigos, 1 tese, 7 dissertações, 4 livros e 1 trabalho em anais
de congresso.
Observou-se
que, embora ainda timidamente, o universo das babás vem paulatinamente ganhando
espaço na literatura científica nacional e estrangeira, principalmente com
enfoques direcionados às relações de trabalho engendradas pela
profissionalização dos afazeres domésticos e nos estudos de gênero a eles
associados. O conjunto de materiais encontrados nos levou a organizar sua
divisão em três agrupamentos. No primeiro, reunimos pesquisas que oferecem um
panorama geral sobre o papel histórico e social dessas trabalhadoras. Em
seguida, trazemos a literatura que versa sobre a temática das babás, lendo em
seus corpos os signos identitários de gênero, raça e classe. Por último,
enveredamos pelos estudos que se debruçaram sobre a problemática do papel das
cuidadoras na educação das crianças.
A babá
como trabalhadora doméstica
No
campo das Ciências Sociais, as babás são tematizadas em muitas das numerosas
pesquisas que se debruçam, de modo mais amplo, sobre o trabalho doméstico. Tais
contribuições vêm há muito explicitando a contradição que se instala quando as
casas são locais de trabalho e os locais de trabalho são casas: se, por um
lado, o trabalho doméstico foi e é essencial para o desenvolvimento das
sociedades industrializadas, por outro, permanece invisível e subvalorizado
(Blackett, 2004; McClintock, 1995). Na coletânea organizada por Fauve-Chamoux
(2004), com o propósito de compreender a atual globalização do trabalho
doméstico, pesquisadores discorrem sobre tais atores sociais e evidenciam sua
marginalização ao caracterizá-los, ao longo da história, a partir de dados como
origem e local de trabalho, gênero, grupo étnico, motivação, relações com a
própria família e com a família dos empregadores, além de seus direitos e
deveres previstos legalmente. Majoritariamente desempenhado por mulheres, tal espécie
de trabalho foi fundamental para o desenvolvimento socioeconômico e para o
processo de urbanização da sociedade ocidental contemporânea. Seguindo o modelo
(masculino) de atribuição de sentido à existência, nas sociedades
contemporâneas é crescente o número de mulheres que organizam suas vidas em
torno das fórmulas “construir uma carreira” e “buscar sucesso profissional”,
assumindo o imperativo nelas contido de dedicar parte generosa do tempo à
empreitada, principalmente nos anos em que se é considerada jovem (leia-se útil
ao mercado de trabalho). O tempo e energia exigidos tornam necessária a
atribuição das tarefas pertencentes à esfera familiar e doméstica a outras
pessoas. Com efeito, o mundo do trabalho rejeita e desvaloriza as experiências
cuja gestão, na sociedade pré-industrial, cabia à mulher no interior da família
– como o nascimento, a criação das crianças, a manutenção da casa, a nutrição,
o cuidado na doença e a morte. A recusa às antigas funções da esposa
tradicional fez erigir, desse modo, uma nova indústria do cuidado.
Para
Hochschild (2004), a dinâmica global do trabalho doméstico organiza-se em torno
de uma nova riqueza, menos tangível, porém não menos preciosa que aquela
extraída das colônias no passado. Contrariando previsões que anteviam seu fim,
essa modalidade de emprego só vem crescendo ao redor do mundo, sendo que uma
das marcas desse movimento de globalização é o fenômeno das mulheres
provenientes de países pobres trabalhando em casas de família dos países
desenvolvidos. Em escala mundial, observa-se o fluxo de mulheres imigrantes que
deixam para trás suas próprias casas, famílias e filhos. Com o dinheiro que
recebem, sustentam-nos à distância. O trabalho doméstico de cuidado das
crianças promove, desse modo, uma espécie de deslocamento afetivo: o amor e a
atenção que essas mulheres teriam a oferecer aos próprios filhos são dirigidos
às crianças sob seus cuidados, filhos de outras mulheres.
Analogamente
ao processo de extração de recursos naturais do sul que possibilitou o enriquecimento
dos países do norte, o amor é o novo ouro. Considerando os inúmeros casos em
que as mulheres que prestam esse serviço também são mães, Hochschild descreve
uma operação mundial de transplante de afetos. Muitas famílias contentam-se em
constatar, felizes, o laço afetivo existente entre seu filho e a babá, sem se
dar conta do alijamento que isso causa, afastando a babá de suas próprias
crianças. Sob o mesmo véu que cria o fetiche da mercadoria, descrito por Marx,
o amor feminino, nova mercadoria materializada no trabalho doméstico do
cuidado, tem seu histórico e as condições humanas de sua produção ocultos aos
olhos do consumidor. Seguindo seu raciocínio, podemos dizer que, da mesma
maneira que ocorria no período colonial, tal conjuntura encontra-se reproduzida,
em pequena escala, até mesmo nos países do Terceiro Mundo. Nesse caso, porém,
não se trata de um trânsito entre territórios nacionais, mas entre estratos da
sociedade.
No
estudo intitulado “Você vai me servir”: desigualdade, proximidade e agência nos
dois lados do Equador”, Harris (2007) apresenta uma etnografia comparativa das
relações entre empregadas domésticas e seus empregadores no Brasil e nos
Estados Unidos. Ao traçar uma tipologia dos arranjos de trabalho, o pesquisador
observa, no Brasil, a atividade de babá amalgamada às demais funções
domésticas. Muitas das chamadas diaristas limpam a casa, cozinham e cuidam das
crianças. Ele verifica que a expressão “quase da família” é bastante utilizada
para exprimir a relação estabelecida, numa tentativa de suavizar os inúmeros
marcadores de diferença que permeiam o dia a dia nessa espécie de convívio
profissional. Nos Estados Unidos, por sua vez, ele sublinha a tendência à
especialização nas diferentes atribuições domésticas, sendo mais nitidamente
demarcada a fronteira entre faxineiras e babás. O autor salienta a tentativa de
racionalização do trabalho nesse país, que encontra sua expressão máxima nas
empresas especializadas. Por meio delas, os empregados tornam-se praticamente
invisíveis, sendo o trabalho marcado, tanto quanto possível, pela
impessoalidade. A babá especializada, com seus conhecimentos sobre
primeiros-socorros, além dos meios e importância de envolver a criança em
brincadeiras de faz de conta, trabalha em horários bem definidos, e suas
atribuições domésticas se restringem a lavar as roupas e louças da própria
criança, bem como arrumar apenas os cômodos a ela destinados.
No
entanto, Romero (2013) demonstra que as barreiras teóricas entre o trabalho de
limpeza doméstica e o de cuidado das crianças são borradas na realidade diária,
uma vez que são bastante difundidas práticas que vão na contramão dessa
tendência. Assim, aproximando-se do modelo multitarefa mais comumente adotado
no Brasil, nos EUA, as babás acumulam funções como limpar a casa, cozinhar,
fazer compras, lavar e passar a roupa, cuidar das crianças, levá-las e
buscá-las em diferentes atividades etc. Logo, o caso da babá especializada é
apenas a ponta ideal de um largo espectro. De maneira geral, o emprego
doméstico encontra-se em posição extremamente baixa no ranking de profissões.
Diferentemente das posições melhor remuneradas e prestigiadas, caracteriza-se
pela ausência de uma clara definição de funções e pela falta de reconhecimento
das habilidades, expertise e experiência exigidos. Diante disso, Romero (2013)
o distingue entre duas categorias, ocupação-ponte ou ocupação-gueto, definidas
em função do papel que desempenha na vida de quem o executa. É concebido como
uma ponte quando se trata de uma ocupação transitória, tendo em vista a
inserção em um emprego mais bem remunerado, como ocorre com estudantes –
imigrantes ou não – que trabalham temporariamente como babás enquanto terminam
determinada etapa de seus estudos. Porém, quando a mulher encontra barreiras
para entrar em outros setores da economia mais bem remunerados, o serviço
doméstico tem o papel de uma ocupação-gueto, um trabalho sem perspectivas de
crescimento e sem horizontes de desenvolvimento humano. Como gueto, trata-se de
uma região social ocupada por uma minoria, vítima de pressões e discriminação.
De maneira geral, se, por um lado, o trabalho doméstico exige pouca
qualificação, por outro, demanda um trabalho braçal pesado, aliado a intenso
investimento emocional, que inclui a exigência do que Harris (2007) chamou de
“afeto de servidão”. Sua condição opressora decorre, em grande medida, da
maneira pela qual o trabalho que era próprio das mães, na sociedade
pré-industrial, foi modificado para incorporar-se aos novos ditames da
sociedade contemporânea. Com sua transformação em trabalho assalariado, as
demandas físicas viram-se aumentadas, enquanto seu aspecto criativo foi
drasticamente eliminado (Romero, 2013). O protagonismo, a autoria, o poder de
decisão, a inventividade e a inovação são algumas das habilidades excluídas do
escopo requerido para o exercício da função.
Como as
babás exercem seu trabalho na intimidade das casas dos empregadores, escondidas
no espaço privado dos lares, pouco se sabe sobre quem são essas mulheres,
quanto recebem e como são tratadas. Tal invisibilidade favorece panoramas como
os dos Estados Unidos e da Europa, onde imigrantes irregulares representam
grande parte dessa mão de obra, que atua à margem de benefícios ou proteções
legais (Ibos, 2012; Romero, 2013; Williams, Tobío, & Gavanas, 2009;
Wrigley, 1995). Sem agências governamentais para regulamentar ou mesmo
contabilizar3 seu trabalho, as babás e seus empregadores se organizam
informalmente, na total ausência de direitos. Colocando em pauta a exploração
do trabalho doméstico na realidade brasileira, Harris (2007) sublinha dizeres
do senso comum, tais como “no Brasil, ou você tem empregada ou você é
empregada”. Frases como essa colocam a condição de manter uma empregada
doméstica como um sinal diacrítico que distancia da pobreza (Brites, 2007). Ao
mesmo tempo, expressam uma espécie de véu que impede o reconhecimento da
humanidade do outro. Uma vez que tanto a babá quanto a empregadora são mães,
questiona-se o que a primeira faz com os próprios filhos para cuidar dos
rebentos de sua patroa. Harris (2007) constata que, de olhos fechados para tal
indagação, o empregador deriva do pagamento do salário uma sensação de
cumprimento das responsabilidades éticas e morais, esquivando-se de refletir
sobre as possíveis relações entre suas necessidades financeiras, familiares e
emocionais e o poder aquisitivo de sua remuneração, aliado a suas condições de
trabalho – caracterizadas, muitas vezes, por jornada extensa, moradia no
emprego em pequenos quartos etc. Já Silveira (2011) traz o relato de uma babá
que, não encontrando outra solução, certo dia teve que deixar seu filho
sozinho, sentado na calçada, à espera de uma vizinha para cuidar dele, enquanto
rumou para a casa onde trabalhava.
No
contato forçosamente íntimo entre babá e empregadora, unidas pela atmosfera tão
carregada culturalmente e afetivamente que é a criação dos filhos, algumas
diferenças ganham visibilidade, como cor da pele, olhos e cabelos, enquanto
outras podem escapar a um olhar superficial, sem por isso perder importância,
como visão de mundo e história de vida precedente. Posicionamentos, conflitos e
acomodações tendem a obedecer a tácitas demarcações de lugar, variáveis em uma
ampla gama. Em seu estudo sobre o cuidado profissional de crianças no ambiente
doméstico, Wrigley (1995) apresenta uma coletânea de relatos de experiência que
atesta grande variedade nos relacionamentos. A autora apresenta, a partir do
ponto de vista das babás, casos que vão desde uma mulher salvadorenha que
chegou a ser agredida fisicamente por sua patroa, e outra, guatemalteca, que
falou com satisfação sobre o período de 17 anos vivido com sua própria família
junto de seus empregadores. Todavia, perceber a existência de arranjos mais
harmônicos ou humanizados não significa tornar-se indiferente às inúmeras
questões conflituosas subjacentes. Em pesquisa sobre as relações que se dão, na
capital francesa, entre babás marfinenses e suas patroas, Ibos (2012)
caracteriza tal encontro como a convergência de dois mundos que, não fosse pela
realidade do trabalho doméstico, permaneceriam absolutamente apartados por uma
distância intransponível, o universo das classes privilegiadas parisienses e o
das famílias marfinenses. Enquanto para as famílias do primeiro caso, o
domicílio é um refúgio confortável, para as mulheres que viajaram rumo à França
com o objetivo de enviar recursos para seus familiares em terra natal, trata-se
de local de trabalho. A autora aponta a cegueira aparente dos empregadores, que
não demonstram interesse por saber quem é a mulher que empregam, qual é a sua
história, além de não estabelecerem relações entre sua presença em seu lar e a
situação do mundo contemporâneo. Em outras palavras, operam uma despolitização
da relação que possuem com a babá, deixando de percebê-la como expressão
tangível de fatores mais amplos, como os fluxos de migração internacional, o
trabalho precário e as heranças da história colonial recente.
A
diversidade das relações existentes entre babás e mães é contemplada por
Silveira (2011) em seu estudo etnográfico com uma rede de babás do Rio de
Janeiro. A expressão “como se fosse da família”, frequentemente utilizada para
caracterizar o lugar da babá nas casas em que trabalha, carrega os paradoxos
subjacentes à relação entre babás e empregadoras. A autora nos lembra que a
fórmula “como se fosse”, ao mesmo tempo que aproxima duas realidades, afirma
que não são a mesma coisa. Igualmente, a relação entre as duas mulheres, tendo
a criança como epicentro, oscila entre estranhamento e familiaridade, sendo
marcada simultaneamente por intimidade e distância social. Ao investigar a
participação das babás nas dinâmicas familiares, Silveira nota a existência de
ambiguidades afetivas (proximidade-distanciamento, igualdade-hierarquia,
autoridade-servilismo, fidelidade-traição), as quais interpreta a partir do
entrecruzamento dos conceitos de afetividade, intimidade, trabalho e dinheiro.
Ela observa um convívio permeado por negociações entre camadas sociais
distintas, cujo encontro é propiciado pelo trabalho e pelos afetos. Para a
pesquisadora, estes são os dois polos que marcam tais relações, ora reforçando,
ora velando antagonismos de classe, de gênero – incluindo relações intragênero,
as quais, por vezes, incluem também a figura da avó e/ou da babá folguista –,
de categorias de status baseadas em posição socioeconômica, cor e idade. Por
outro lado, Silveira borra as fronteiras entre afetividade e profissionalismo
quando lembra que ambos podem ser vividos de maneiras distintas. Do ponto de
vista da mãe, por exemplo, constatar um vínculo significativo entre babá e
criança pode ir de motivo de ciúmes a garantia de que se trata de uma boa
profissional. No que toca ao profissionalismo, enquanto uma mãe entrevistada
reclama que a babá só pensa em dinheiro, uma das babás ouvidas se queixa de que
a mãe não valoriza financeiramente o amor que ela sente pelos seus filhos, nem
a relação de confiança que possui com a família. Assim, o estudo traz para o
interior do espaço doméstico categorias que comumente se quer afastar como se
fossem poluir, de algum modo, a imaculada atmosfera das relações familiares, a
saber, dinheiro e carreira. O laço afetivo com a criança acaba por
configurar-se como “sentimento que se insere no processo de trabalho das babás”
(p. 23). Trata-se, portanto, de uma ousada análise acerca da interface presente
na profissão da babá entre sentimentos e remunerações (que, para além do
salário, incluem trocas de presentes e de favores).
Quanto
à visão dos empregadores, Wrigley (1995) observa, como ponto comum no discurso
de seus entrevistados, que a principal motivação para a contratação de uma babá
é a de garantir que os filhos recebam atenção individualizada, diferentemente
do cuidado coletivo dispensado nas creches e escolas. Tais famílias acreditam
que, já que a babá é sua empregada, terão maior ingerência sobre o tipo de
cuidado que será dispensado à criança. Paradoxalmente, número significativo de
famílias demostra preferência por contratar mulheres pouco qualificadas e
vindas de países pobres (Romero, 2013; wrigley, 1995). A condição de
fragilidade aparece associada à intenção de maximizar o controle sobre elas.
Permite, igualmente, aglutinar funções ligadas ao cuidado da casa e da criança,
já que uma mão de obra especializada não comportaria semelhante acúmulo de
funções. Favorece, ainda, a ampliação do controle para demais esferas da vida
da empregada. O sentimento de isolamento é recorrente na experiência de babás,
principalmente aquelas que moram no emprego (Romero, 2013). Ademais de
dificultar a procura de outros empregos, o isolamento é visto como uma das
principais raízes do estabelecimento de um forte vínculo afetivo com as
crianças. Quanto menos instruídas são essas mulheres, sem contatos no país, sem
opções de emprego e de vida, mais facilmente são submetidas e controladas. Tal
posição é ilustrada pelas palavras da responsável por uma agência de babás
estadunidense, sobre a dificuldade encontrada para empregar uma mulher norte-americana
com excelentes qualificações: “Se alguém é seu semelhante, você não consegue
dizer ‘Lave a louça, lave a roupa!’ É terrível dizer isso, mas talvez [os
empregadores] pensem que essas outras mulheres estão abaixo deles” (wrigley,
1995, p. 5, tradução nossa).
O
controle desse modo alcançado pelos empregadores também encontra seus limites e
cobra seu preço. Para os pais, é fácil ver o quanto a casa está limpa, mas como
podem saber quanta atenção – e que qualidade de atenção – foi dada à criança? Como
a aparência física é visível e costuma ser muito valorizada por famílias com
essa mentalidade, grande número dos relatos coletados por Wrigley (1995) mostra
cuidadoras que se dedicam principalmente à higiene da criança, escovando seus
cabelos, limpando-a e vestindo-a com roupas limpas. O peso dado a esse aspecto
ocorre em detrimento da atividade infantil, que consequentemente é restringida
para manter a criança bem arrumada. Romero (2013) expõe outro resultado nefasto
dessa espécie de relação marcadamente desigual, cujo malefício, novamente,
retorna como um bumerangue. Em tais circunstâncias, as babás obtêm menos
respeito por parte das crianças e encontram dificuldades para exercer
autoridade na definição de limites e atividades. Por conseguinte, terminam por
atuar como serventes, correndo para atender as vontades e demandas de seus
pequenos patrões. Acreditando oferecer o melhor a seus filhos, essas famílias,
em realidade, logram abandoná-los à tirania dos próprios desejos e,
simultaneamente, reproduzem e validam relações de desrespeito e exploração. O
fenômeno da preferência pela baixa qualificação também é bastante comum no
Brasil. Em contraste, existem famílias mais preocupadas com a riqueza de
experiências e qualidade das interações proporcionadas às crianças. Seria este,
por exemplo, o caso daquelas que optam por contratar estudantes como au pair,
uma modalidade de guarda de crianças cercada pelo discurso de intercâmbio
cultural, unido à intenção de evitar reproduzir desigualdades socioeconômicas na
intimidade de suas casas. Uma das entrevistadas que se enquadra nesse caso
justifica sua opção com a declaração de que não suportaria que a filha fosse
educada “para pensar que existem pessoas a quem pode se dirigir com
superioridade” (Wrigley, 1995, p. 48, tradução nossa).
Para
compreender o processo de construção dos corpos colocado em marcha a partir do
encontro entre criança e babá, é fundamental olhar mais detidamente para as
relações de diferenças e pertencimentos, latentes no contexto da educação informal
em casas de família. Tal olhar nos convida a ver o corpo da babá como suporte
material de marcas identitárias. Ao fato de ser uma ocupação marcadamente
feminina, tanto do ponto de vista de sua composição numérica como dos
significados femininos ligados ao cuidado de crianças, somam-se outros
marcadores de pertencimento, como lugar de origem, classe social, nível de
escolaridade, etnia, religião, idade. Nessa direção, alguns estudos que se
dedicaram a pensar sobre o trabalho doméstico do cuidado de crianças iluminam
os signos identitários inscritos no plano da corporeidade.
O corpo
da babá como suporte de marcas identitárias
Vulto
embaçado no lusco-fusco do ambiente doméstico, o corpo feminino que cuida dos
rebentos de outros carrega, simultaneamente, inscrições de pertencimento e
diferença. Evidentemente, o exercício da maternagem não escapa a conflitos.
Segato (2006) defende a existência de uma continuidade histórica entre o
contemporâneo trabalho sub-remunerado das babás e o antigo trabalho não pago
das escravas. Essa autora traz importantes elementos para reflexão acerca do
corpo da babá ao analisar a prática da maternidade transferida na história
brasileira e seu impacto sobre a mentalidade nacional, com ênfase na questão
racial. Ela descreve o processo pelo qual o território, a princípio
indiferenciado, do corpo materno-infantil vai dando espaço para a oposição e
diferenciação identitária, relacionando-o ao movimento coletivo de negação da
ancestralidade negra.
O corpo
da babá, assim como o corpo materno legítimo, representa para a criança
pequena, num primeiro momento, parte dela mesma, extensão de sua própria
existência. Num segundo momento, quando já se esboça uma separação entre Eu e o
Outro, esse corpo passa a ser sua posse. Deixa de ser Eu para tornar-se Meu. É
evidente que o sentimento de propriedade sobre o corpo materno não deriva da
relação escravo-senhor, já que também existe em relação ao corpo da mãe
biológica. Escravidão e maternidade, nesse sentido, se aproximam pela
coisificação do corpo materno. Mas a primeira ganha novos contornos quando
concebe um corpo destituído de humanidade. No passado, a humanidade da mulher
cuidadora era encoberta por sua posse como escrava. Atualmente, o é por força
de um contrato de trabalho. Considerando a existência de um laço de sedução na
relação com a cuidadora, fortalecido ainda numa fase em que a impossibilidade
de separar Eu e o Outro faz com que os dois corpos estejam fundidos em um só,
para Segato (2006)
uma
criança amamentada ou simplesmente cuidada por uma ama de pele mais obscura,
uma ama com raízes na escravidão, terá incorporada esta imagem como própria.
Uma criança branca, portanto, será também negra, por impregnação da origem
fusional com um corpo materno percebido como parte do território próprio (p.
15).
A
ligação pelo seio, do passado, aparece nos dias atuais como ligação pelo colo e
mamadeira. Segato (2006) fala dessa ligação como parentesco, reforçando os
significados da amamentação que extrapolam a dimensão biológica. A antiga
presença da mãe preta atualiza-se, nos dias de hoje, na forma de mãe seca
polivalente, a que se convencionou chamar de babá. A história da presença de
nutrizes, amas de leite, amas secas e babás nos lares brasileiros conta que foi
acompanhando as tendências ditadas pela Europa (Daudet, 2008), somente quando,
na segunda metade do século XIX, o discurso higienista passou a apontar as amas
de leite como potenciais transmissoras de doenças, fossem biológicas ou morais,
que a prática das amas secas começou a se difundir. As associações entre
herança pelo sangue e pelo leite fundamentavam a preocupação dos higienistas
contra a prática das amas de leite negras. Em paralelo, ganharam força
expressões como “mãe tem uma só”, bem como as enunciações, carregadas de ódio,
que pediam o fim da escravidão como único meio de acabar com a influência
perniciosa dos negros na intimidade dos lares de famílias brancas. Pelo leite,
mulheres negras estariam transmitindo costumes, hábitos e linguagem viciados.
Tais ideias foram formuladas em palavras de rejeição às mães de criação negras,
provavelmente proferidas “por homens que na infância foram embalados junto a
seios como os delas” (Segato, 2006, p. 5), fundidos com seu corpo feminino de
raízes na escravidão. Mais tarde, para se separar, o corpo desgarrado da mãe
não reconhecida precisará de uma agressividade proporcional ao apego que antes
existia. Diante desse quadro, Segato defende que, ao invés de ter promovido a
emergência de uma cultura plurirracial, o convívio inter-racial íntimo entre
criança e ama presente na história do Brasil reforçou, por meio de um mesmo
gesto psíquico, racismo e misoginia.
É certo
que o movimento de recusa à herança considerada ilegítima não apaga,
entretanto, a memória cultural, composta por crenças, histórias, ritmos e
músicas, receitas e cuidados com o corpo, transmitida na experiência da relação
íntima entre amas e crianças (Deiab, 2005). Essa herança subsiste à tentativa
de seu apagamento na memória nacional, que se materializa em expressões como o
progressivo desaparecimento dos corpos das amas nos registros fotográficos do
período final do Brasil colonial. Analisando os negativos de um estúdio
fotográfico ativo durante os anos de 1860 a 1880, Deiab nota a retirada gradual
das amas negras do enquadramento dos retratos. O modelo europeu, referência
para os fotógrafos brasileiros, ditava que os bebês fossem fotografados com o
rosto colado ao da mãe, de modo que esta pudesse sustentá-lo imóvel durante o
tempo de exposição necessário. Porém, por conta de os pequenos serem mais
próximos e acostumados à mãe preta que à biológica, era aquela, e não esta, que
figurava junto a eles, ao centro e em primeiro plano nos retratos iniciais.
Mesmo as crianças maiores aparecem, em inúmeras fotos, no colo de sua mãe
preta. Então, exibir a posse de escravas negras saudáveis e bem vestidas junto
aos filhos era signo de status social. Acompanhando a disseminação dos
discursos higienistas e abolicionistas, esse passa a ser um elemento
questionado e condenado, observado nas fotos do final do período escravista que
tentam esconder a mulher negra. Antes de sumir completamente das imagens,
porém, sua presença ainda acena como um rastro: um vulto, uma mão, um punho. A
linguagem imagética desses registros testemunha uma tentativa de apagamento dos
traços da existência dessas mulheres.
O
componente de violência não se limita a um tempo pregresso, já que, como
continuidade histórica, se faz presente na própria forma com que se dá, nos
dias atuais, a inserção da cuidadora no seio da família (Brites, 2007; Romero,
2013; Williams, Tobío, & Gavanas, 2009). O contexto familiar constrói para
a criança um ambiente de socialização que reproduz e reforça os mesmos valores
que fundamentam as condições pelas quais essa mulher é inserida na casa. A partir
de uma pesquisa etnográfica, Brites (2007) considera o emprego de mulheres de
classes baixas em casas de famílias das camadas médias brasileiras como
instrumento de uma didática da distância social. A presença dessas
trabalhadoras sub-remuneradas constrói para as crianças um ambiente de
socialização fundado em hierarquias de classe, gênero, etnia e raça.
Configurando uma ambiguidade afetiva, a inegável existência de laços afetivos
entre babá e criança não impede que existam claras demarcações hierárquicas que
delimitam as posições de chefe e subalterno. Espaços da casa como o quarto e o
banheiro de empregada materializam fronteiras intransponíveis. Romero (2013)
também denuncia o papel que o emprego de mulheres imigrantes mal remuneradas
como domésticas desempenha na reprodução social da cultura “do privilégio na
infância de futuros patrões e patroas” (p. 191, tradução nossa). Ela mostra
como, intencionando proporcionar às crianças uma boa colocação social, opera-se
desde cedo sua introdução num universo onde cada qual ocupa lugar bem definido.
No que
se refere à categoria de gênero, especificamente, o estudo desenvolvido por
Ibos (2012) mostra que, na distribuição de papeis entre homem e mulher, dentro
do casal de empregadores, ainda é a segunda que se ocupa de selecionar,
orientar e acompanhar o trabalho da babá. Embora a lógica social aproxime babá
e patroa ao ligar ambas à área do cuidado, diferencia-as prontamente pela
alteridade que distancia patrões e empregadores. Alteridade expressa, no caso
do universo sobre o qual a pesquisadora se debruçou, na distinção entre
franceses e migrantes. Seguindo na mesma direção, Romero (2013) denuncia que a
presença da babá nas casas de família faz com que o lugar da mulher seja
definido com base numa contradição. É o emprego de mulheres – mal pagas,
exercendo um ofício desvalorizado socialmente e, muitas vezes, vivendo no
emprego – que possibilita a emancipação da patroa ou, dito de outro modo, a
opressão de gênero sobre uma mulher funciona como condição para que outra possa
escapar dessa mesma opressão (Romero, 2013). Na corrida competitiva por
colocação social, a busca de proporcionar aos filhos melhores oportunidades
passa por oferecer o cuidado contínuo que está fora do alcance de uma mãe que
trabalha fora. Mas esta é apenas a justificativa mais superficial, pois, como
expõe Romero, o fato de tal cuidado ser desempenhado por uma mulher de origem
social distinta da de seus patrões, trabalhando num emprego sub-remunerado,
funciona como meio extremamente eficaz de socialização das crianças nos
chamados sistemas de privilégio, inerentes à boa colocação almejada. Estas
rapidamente aprendem a ser consumidoras de cuidado. Em vez de cuidar, aprendem
a existir num espaço em que o trabalho braçal de alguém está disponível para
atender suas vontades e necessidades, aprendem, enfim, a tratar determinadas
pessoas como meios, no lugar de exercer o respeito mútuo e valorizar o ser
humano como finalidade em si.
A
identificação passa pela diferenciação. A partir do material coletado em
entrevistas com homens do Rio de Janeiro que se autodeclaram brancos, Corossacz
(2014) analisa casos em que a afirmação de branquitude se dá em relação às
lembranças infantis com uma babá negra. Os entrevistados narram sua experiência
de construção identitária como homens brancos fazendo referência a momentos da
própria biografia. Todos lembram da babá como alguém afetivamente importante
durante a infância, com quem viviam uma relação de intimidade e afeto. Guardam
dela uma imagem de mulher que cuida e dá carinho. Porém, as narrativas
biográficas apresentadas descrevem um mundo em que os negros ocupam
exclusivamente posições subordinadas, como babás, faxineiras, jardineiros,
entregadores e serventes. Assim, ainda que se lembrem de haver estabelecido
vínculos afetivos com negros, nenhum dos entrevistados fala de experiências de
igualdade social. Os negros aparecem, nos relatos, como referência de lugar
social mais baixo, menos valorizado e, ao mesmo tempo, como contraponto para
sua identificação como brancos.
Com
base nessas narrativas biográficas, Corossacz também mostra a combinação entre
intimidade e desigualdade como um dos ingredientes do racismo brasileiro.
Avançando na reflexão, ela expõe como as categorias identitárias de branquitude
e masculinidade funcionam como ponto de referência, a partir do qual se definem
e nomeiam os demais grupos, considerados diferentes. As narrativas desses
homens têm em comum, como ponto central, a definição de si mesmos como brancos
por diferenciação em relação a um outro – no caso, uma outra: uma mulher, negra
e pobre. Ao exibirem a percepção da própria branquitude como algo normal,
associam normalidade e neutralidade às categorias dominantes relativas a
gênero, cor, raça e classe nas quais se inserem – homem branco de classe
média-alta. A coincidência dessas memórias infantis, referentes a eventos
vividos no Rio de Janeiro dos anos 1950, com a história dos lares do Brasil
colonial atesta um processo histórico de mútua constituição entre as categorias
de identidade que, isoladas, perderiam seu sentido. Só cabe afirmar-se de uma
cor ou outra em um contexto em que, primeiramente, são reconhecidas cores de
pele diferentes e, em adição, esta é considerada como um fator importante na
definição de pertencimento, em detrimento de outras características possíveis.
Em sua
dissertação de mestrado, Vieira (2014) aborda o corpo da babá como espaço em
que são vivenciadas e ressignificadas as relações sociais atravessadas por
marcadores de raça, gênero e classe. Ela mostra, de maneira sensível, como
fatores históricos, políticos e sociais associados ao trabalho doméstico de
crianças se materializam em corpos femininos e suas histórias individuais.
Assim, as heranças da escravidão, as extensas jornadas de trabalho e os baixos
salários se traduzem em dores e cansaços dos quais o corpo reclama
cotidianamente, em apagamento do sujeito que se vê reduzido a um utilitário, ao
mesmo tempo objeto de trabalho e de objetificação sexual. Esse mesmo corpo,
objeto e abjeto, se constitui também de pronunciada dimensão afetiva. Os
relatos coletados pela pesquisadora contam sobre os fortes vínculos que as
profissionais estabelecem ao cuidar da infância de filhos de outras mulheres. Vieira
(2014) nos lembra que
são as
babás que carregam ao colo, alimentam o crescimento, estimulam a percepção,
ensinam as primeiras palavras, sentam ao chão para brincar, ninam os sonhos,
dançam junto e doam seus carinhos a uma grande parte das crianças brasileiras.
Ao estarem só – a babá e a criança – é o corpo-afeto que predomina. Enquanto
estão as/os patroas/patrões conjuntamente, são as outras dimensões –
corpo-objeto e corpo-abjeto – que emergem de modo mais forte (p. 135).
O
conjunto de estudos até aqui compilado reforça a imperatividade da indagação
sobre a dimensão corpórea da identidade de mulheres babás, bem como do papel
educativo por elas desempenhado a partir das relações estabelecidas nas casas
de família em que atuam. As contribuições oferecidas assinalam, sobretudo, a
existência de uma função formativa não declarada, fundada na incorporação mesma
de uma trabalhadora no seio da família. Função oculta, pois confinada ao plano
do não dito e das aprendizagens colocadas em curso por meio da inserção das
crianças – e seus corpos infantis – num ambiente regulado por princípios
organizadores compartilhados. Nesses casos, mais do que uma ação formativa
exercida pela babá, podemos falar de uma educação corporal que se põe em marcha
através dela, derivada dos efeitos de diferenciação que sofre e das categorias
identitárias que atravessam sua corporeidade. Nas pesquisas evocadas até aqui,
a babá aparece, portanto, mormente como elemento passivo num contexto
formativo, permanecendo ainda pouco estudado seu papel ativo na educação de
crianças.
A babá
como educadora
Praticamente
inexplorada, a temática foi, até o momento, abordada de maneira periférica nos
campos da psicologia e da educação. A pesquisa realizada por Baltazar (2011),
intitulada Vida de babá, explora o conceito de persona profissional, com base
na teoria junguiana. Seu enfoque culmina na defesa da criação de espaços que
visem a qualificação profissional das babás e, ao mesmo tempo, seu
desenvolvimento psicológico. A principal contribuição desse estudo reside no
olhar sobre a função de educar exercida pela babá, juntamente com as funções de
cuidar e acompanhar. Para Baltazar, tal profissional realiza suas atribuições a
partir do encontro entre o próprio repertório, como bagagem de suas experiências
pessoais, e o repertório da família para a qual trabalha, com seus valores e
modos de ser. Diante das consonâncias e divergências dessa justaposição, lidar
com elas configura-se como um desafio da profissão.
Fanti
(2006), por sua vez, coloca em foco a relação educativa entre babá e criança a
partir de uma análise da mediação semiótica estabelecida entre ambas. Ela
interessa-se especificamente pelas formas de mediação colocadas em ação em
momentos de alimentação e brincadeira, sempre em ambiente doméstico. Fanti
problematiza a qualidade das mediações, discutindo a questão da deficiência na
formação profissional desse segmento. Em sua análise, observa maior presença de
influências da família no tocante à alimentação da criança. Tanto no discurso
das mães como no das babás, tal atividade recebe atribuição de maior
importância que a brincadeira, sendo, por isso, alvo de mais orientações por
parte das empregadoras. É no brincar que a babá exerce uma ação baseada em seus
próprios valores culturais. Tal estudo denuncia a persistência de uma visão
dicotômica entre cuidar e educar nas representações sobre o trabalho das babás,
presente, inclusive, na própria concepção que essas mulheres têm de sua
atividade profissional, atribuindo a si somente o cuidado e acreditando ser a
tarefa de educar uma exclusividade dos pais.
Finalmente,
na pesquisa educacional, as babás são mencionadas em trabalhos dedicados ao
universo escolar, figurando no segundo plano de expressivo número de estudos
sobre a Educação Infantil. Elas são apresentadas ora como um dos atores
envolvidos no processo de adaptação da criança à creche (Elmôr, 2009), ora como
exemplos ilustrativos da deficiência na formação de educadores da primeira
infância (Mindal, 2004), mas também como opção de cuidado dos filhos
inacessível para a maior parte das mães (Martins & Guelfi, 2005). A
denominação “babá” é frequentemente utilizada, ainda, como contraponto ao
status de professora, como se a valorização desta dependesse da depreciação
daquela (Massucato, 2012).
O caráter
educativo do trabalho de babás propriamente dito é sinalizado superficialmente
por Melchiori & Alves (2001) em uma investigação sobre o discurso de
educadoras de uma creche a respeito do temperamento dos bebês, com vistas a
conhecer o sistema de crenças que orienta sua atuação profissional. As
educadoras entrevistadas atribuem grande peso ao ambiente em sua explicação
sobre o desenvolvimento dos bebês, muitas vezes mencionando a babá como um dos
agentes influenciadores nesse processo. Salientam unicamente seu caráter
negativo, pois, na crença das educadoras ouvidas, as babás seriam responsáveis
por “prejudicar os bebês pelo excesso de cuidados dispensados a eles,
tornando-os assim mais manhosos” (p. 291). Nesse sentido, as babás são
colocadas junto às avós como agentes de influências puramente negativas. Nas
falas estudadas, as educadoras buscam autoafirmar-se a partir da diferenciação
em relação a ambas, quando enfatizam “somos profissionais” (p. 291),
implicitamente dizendo que babás não o são. A junção das babás e avós nessa
concepção reforça o não reconhecimento das primeiras como profissionais e o
desprestígio dessa ocupação feminina. Assim, as educadoras agem como se a
valorização de seu status profissional dependesse da diminuição de outras
funções tradicionalmente femininas de cuidado de crianças, como a das
cuidadoras domésticas. O mesmo acontece com as mães, percebidas, em quase
metade dos casos, como relapsas e ausentes em relação aos filhos e à sua vida
na creche. Melchiori e Alves apontam dois possíveis fatores que estariam por
trás de tais queixas. De um lado, sinalizam a persistência de uma concepção
ainda tradicional do que seria o papel da mãe, incompatível com os novos
ditames das sociedades ocidentais contemporâneas. Por outro, supõem uma tentativa
de autocompensação, por parte das profissionais, diante da falta de
reconhecimento e de valorização social de seu trabalho.
Enquanto
os estudos sobre educação informal se detêm exaustivamente sobre o papel das
mães, deixando de lado outros atores, Sampaio (2008) examina o papel exercido
pelas babás na formação moral das crianças. Ela denuncia a escassez de
conhecimentos sistematizados sobre o tema e, sem questionar a centralidade da
mãe na educação dos filhos, defende a importância da influência de outros
agentes envolvidos no processo, em especial as babás. Brites (2007) oferece
importantes elementos para embasar essa colocação ao mostrar que,
diferentemente dos empregadores, as crianças não são impermeáveis ao repertório
cultural das empregadas domésticas. A quantidade de tempo de convívio e a
qualidade das interações possibilitam que a criança dialogue com a babá, lhe
faça perguntas, ouça histórias contadas por ela, escute as músicas que ela ouve
enquanto trabalha. Nesse contexto, as babás assumem, conscientemente ou não, o
papel de transmissoras de saberes e valores. A preocupação dos empregadores
costuma desconsiderar esse aspecto, resumindo-se à capacidade da babá de
oferecer os cuidados básicos de alimentação, higiene e segurança (Sampaio, 2008).
Assim, é comum que os empregadores idealizem uma cisão: contratam alguém para
realizar tarefas ligadas ao cuidar, esperando que o educar, no âmbito
doméstico, será incumbência exclusiva da família.
Ao
reconhecer o papel das babás na formação moral das crianças, Sampaio se depara
com a necessidade imperativa de uma formação profissional de qualidade. Ela
nota que o exercício ativo de uma função educativa, entretanto, vai de encontro
a estigmas associados ao trabalho doméstico. Do mesmo modo que as demais
profissões domésticas, a atividade da babá é marcada por imagens negativas,
frequentemente internalizadas pelas próprias trabalhadoras. É comum que as
babás enxerguem seu trabalho como um ofício que não exige competências
específicas, podendo ser desempenhado por qualquer mulher. Muitas das
entrevistadas desqualificam o próprio trabalho e afirmam sentir vergonha de
exercê-lo (Sampaio, 2008), chegando a preferir a informalidade para não “sujar”
sua carteira de trabalho. A crença de que o cuidado e educação de crianças
pequenas seria uma tarefa para a qual as mulheres estariam naturalmente
habilitadas contribui para essa visão e dificulta o reconhecimento da
importância de treinamento profissional específico. Ademais, a profissão, no
Brasil, é regida pelas mesmas leis que regulamentam o trabalho doméstico em
geral, incluindo cozinheiro(a), governanta, vigia, motorista particular,
lavadeira, faxineiro(a), jardineiro(a), acompanhante de idosos, entre outros,
sem considerar suas especificidades. Diante de tal precarização do trabalho das
babás, Sampaio defende a necessidade de sua profissionalização por meio de
adequada regulamentação, observação de condições adequadas de trabalho,
sindicalização e oferecimento de formação profissional específica, adequada às
particularidades desse campo de trabalho. Mais uma vez, sobrepujar a cisão
entre cuidar e educar é apontado pela autora como desafio central na
constituição dessa formação, de modo a favorecer que sejam superadas as rotinas
empobrecidas de cuidados realizados de forma mecânica.
Considerações
finais
“Onde
está a babá?”, brada Segato (2006) no início de seu levantamento sobre o tópico
na literatura acadêmica brasileira, após constatar que, quando muito, babás são
citadas como parte de listas e enumerações, sem qualquer análise subsequente.
Ela observa que, no concernente a essas profissionais, foram deixados de lado
aspectos de sua subjetividade, de sua inserção social, bem como de seu papel a
partir da perspectiva das crianças ou mesmo das mulheres, suas empregadoras,
que lhes delegam parte de suas funções maternas. A essa indagação
gradativamente unem-se outras vozes, também engajadas em elucidar tais tópicos
no campo das humanidades. Diante da ausência de estudos sobre o tema no âmbito
da educação4 no período de tempo analisado, as reflexões reunidas e articuladas
neste artigo oferecem contribuições para que se consolidem as bases de um
enfoque educacional sobre a relação formativa que se coloca em marcha no
cuidado doméstico de crianças.
O
panorama de conhecimentos desenhado reforça a importância de investigações
sobre a temática no campo educacional, ao mesmo tempo em que oferece subsídios
provenientes de outros campos das humanidades. Tais contribuições indicam
caminhos a serem percorridos para a compreensão da formação de
corpos-identidades que tem lugar no interior das casas, no espaço naturalizado
do ambiente doméstico, onde se dá o encontro de corpos plasmados por histórias
de vida particulares, posições e status delimitados, marcas de pertencimento
cultural, étnico e religioso. Ao mesmo tempo que realça a relevância do tema, a
marcante ausência das babás no horizonte específico das ciências da educação
nos leva a indagar sobre as razões por trás desse silêncio. A visão sociológica
e histórica apresentada no primeiro agrupamento enseja justamente a
identificação das raízes da atual invisibilidade e do descaso relacionados ao
trabalho feito por mulheres no interior das casas. Falar sobre babás implica,
necessariamente, abordar temas sobre os quais ainda paira um silêncio tácito,
como a condição feminina, as relações de raça e etnia e a desvalorização do
trabalho no ambiente doméstico em oposição àquele realizado em espaço público,
decorrente do movimento de industrialização fundante da sociedade contemporânea.
No
segundo agrupamento, os trabalhos que abordam mais profundamente as questões de
identidade entremeadas no corpo revelam os processos educativos que acontecem
por meio da babá, mas ainda sem que ela exerça papel ativo. Desse modo,
evidenciam um conjunto de conceitos, ideias e valores implícitos que, como
conteúdos ocultos, participam da educação das crianças, ainda que não de
maneira declarada ou abertamente desejada. Por fim, no terceiro agrupamento,
procuramos mostrar de que modo a babá aparece como agente educadora. As
investigações em Educação e Psicologia apresentadas figuram apenas os primeiros
passos de estudos exploratórios sobre um universo que demanda atenção, diante
das amplas perspectivas abertas. No tocante às babás, são ainda numerosas as questões
a perscrutar. Entre elas: quem são essas mulheres e que bagagem trazem no
exercício do cuidado das crianças a elas confiadas? Qual seu papel na formação
cognitiva, emocional e corporal dos meninos e meninas? Que relações se
estabelecem entre adulto e criança nesse encontro? De que maneira o ambiente
doméstico e a relação com os adultos empregadores influenciam o desenvolvimento
de seu trabalho com as crianças?
Enfim,
desenvolver um enfoque sobre o papel ativo das babás como educadoras da
infância não significa reforçar clichês que cercam as categorias identitárias
de mulheres, migrantes, trabalhadoras domésticas, tampouco contribuir para sua
vitimização. Ao contrário, o panorama da produção científica acerca do tema
aponta para a necessidade do empreendimento de estudos sobre as babás que nos
permitam conhecer suas histórias, seus saberes, seus recursos, suas
resistências, suas ousadias, suas estratégias de adaptação e de resolução de
problemas, sua capacidade de redesenhar projetos e reorientar percursos, sua
habilidade e criatividade empregadas na educação de crianças. Desse modo,
delineiam-se novas pistas para os estudos na área.
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