Conselho
Regional de Enfermagem da Bahia
Trabalhadoras
negras sustentam a enfermagem brasileira
Contra
toda imagem embranquecida construída, maioria de enfermeiras, técnicas e
auxiliares de enfermagem negras resiste contra a Covid.
No
contexto da maior crise sanitária mundial diversos são os problemas enfrentados
pelos cidadãos brasileiros decorrentes do manejo desastroso da pandemia no
país, dos limites impostos, desigualmente, à vida da população em isolamento
social, e ainda as dificuldades enfrentadas pelas equipes de saúde no
desenvolvimento do seu trabalho.
No que
se refere diretamente ao trabalho da enfermagem há reconhecimento de que o
nosso país alcançou o maior índice de contaminação e mortalidade no âmbito
mundial. Nesse poço turbulento de eventos quero problematizar as iniquidades
raciais no acesso e ocupação dos postos de trabalho da enfermagem brasileira.
A
Enfermagem constitui o maior contingente de profissionais dentro do Sistema
Único de Saúde (SUS).
É
responsável por cerca de 60% das ações assistenciais desenvolvidas. Segundo os
dados da pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Enfermagem divulgado em
2017, que levantou dados sobre enfermeiras, técnicas e auxiliares de
enfermagem, do total de profissionais pesquisados, 53% são Negras, 42% Brancas,
1,9% Amarelas e 0,6% Indígenas.
Quando
confrontamos o quantitativo de profissionais e sua distribuição por raça e
escolaridade constata-se que 57,4% são trabalhadoras negras no nível médio, sob
o comando de 57,9% de Enfermeiras Brancas. Os dados relativos à formação
exacerbam ainda mais as desigualdades: 72% das auxiliares e técnicas
qualificaram-se em instituições privadas; 43,8% na modalidade curso noturno e
28,5% concluíram cursos de graduação, certamente particulares. Esses resultados
reproduzem a realidade dos serviços de saúde no país há muito tempo.
Do
ponto de vista histórico há reconhecimento que no Brasil colonial coube às
mulheres pretas e pardas as práticas de cuidados e curas. Intensa foi a
participação delas como parteiras, amas de leite, negras domésticas, babás,
mães pretas, isto é, mulheres que cuidavam de enfermos, velhos e crianças,
mesmo que para tanto devessem abandonar os seus próprios filhos. Contudo, o
processo de profissionalização iniciado por volta de 1860 lhes negou o espaço
de atuação.
O
ingresso na Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública em
1923, posteriormente batizada de Escola de Enfermeiras D. Anna Nery “passou a
depender não só da posse do diploma do curso normal, como de um pré-requisito
não formalizado: ser de raça branca”. A enfermagem brasileira
institucionalizada nasceu sob o escudo do ‘branqueamento’. A imagem da
“enfermeira padrão” cristalizou a identidade profissional via elitização e
branqueamento, sinônimo de respeito social.
A
ENFEMEIRA SOTEROPOLITANA JAQUELINE DOS SANTOS FOI UMA DAS 100 MIL MORTES PELA
COVID-19. DEIXA SAUDADES NA FAMÍLIA E NOS COLEGAS DE PROFISSÃO.
Para
parcela significativa da produção científica da área prevalece a compreensão de
que esse perfil decorre da divisão social e técnica do trabalho, organização
que identificou a enfermagem moderna e consolidou-se no parcelamento das ações
assistenciais segundo a formação educacional, atribuindo-se o cuidado direto às
profissionais de nível médio e o planejamento, gerenciamento, supervisão e
ensino às universitárias. A população negra permaneceu apartada da prestação de
cuidados até meados de 1930, quando a expansão dos serviços de saúde pelo
governo de Getúlio Vargas absorveu contingentes de trabalhadores,
possibilitando a ascensão de grupos sociais subalternizados.
Nas
décadas de 1960 e 70, a proliferação de cursos profissionalizantes, voltados
para as ‘populações mais pobres’ consolidou essa dinâmica de relações na área,
naturalizando a ocupação de maioria negra nos postos de nível médio. Numa outra
perspectiva de análise compreendemos essa ‘desigualdade de oportunidades’ como
materialização do “sistema de opressão interligado”, expressa pelo racismo
sistemático da sociedade brasileira’, tanto na sua concepção estrutural, quanto
na institucional de forma a reproduzir padrões, normas, relações de poder que
mantém privilégios de um grupo social, invisibilizando outro(s), além de lhe(s)
dificultar ou impedir a mobilidade social. Essas são expressões das
intersecções de gênero, raça e classe.
Diante
disso, reconhecemos como injusta a invisibilidade das mulheres negras na
identidade profissional da área, assim como a coexistência de salários
aviltantes, condições precárias de trabalho, extensa e intensamente
negligenciadas, implicando no número absurdo de adoecimento e mortes, que não
foram sequer nomeadas nem homenageadas. Lamentavelmente esse é o cenário que a
enfermagem brasileira atua profissionalmente, ano em que a Organização Mundial
da Saúde em conjunto com o Conselho Internacional de Enfermeiros decreta 2020
como o ano da enfermeira e da parteira, a fim de destacar os impactos do
trabalho.
Estamos
em construção de projetos sociais que de fato reconheçam a contribuição dos
grupos sociais que compõe a sociedade brasileira e que respondam às
necessidades dos sujeitos na sua condição de humanos. Conclamamos a todos os
envolvidos a se posicionarem sobre os caminhos possíveis para atribuir à
enfermagem brasileira o seu “real padrão”, tanto no aspecto imagético quanto no
efetivo quadro de profissionais, contemplado por todos os grupos étnicos que
construíram a verdadeira história sanitária do país e que efetivamente suportam
o sistema de saúde brasileiro.
Que
sejam reverenciadas as histórias das Marias, Luizas, Isabel, Regina, Conceição…
Texto
de ALVA HELENA DE ALMEIDA, enfa. Mestre em Saúde Pública, Doutora em Ciências.
Ativista pelo SUS público, de qualidade e SEM RACISMO. Integrante da Soweto
Organização Negra.
Fonte: Carta Capital
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