7ª.Cura e libertação: Uma abordagem
bíblico-teológica //Resumo.
Por Vicente Artuso
No contexto bíblico, ser curado significa o pleno
restabelecimento da pessoa, resgate de sua dignidade de ser humana, superação
dos males, reintegração na comunidade e no serviço a ela. É algo que transcende
a vida presente e a projeta na vida eterna. Inspirados no cuidado de Jesus com
os doentes e endemoninhados, os cristãos encontram o sentido profundo para a
atenção aos doentes e à superação dos males.
Introdução
Sofrimento, abandono, doença, fome, violência,
dependência de drogas, mortes são uma realidade nas notícias diárias. O avanço
das ciências da saúde e da medicina, as políticas de prevenção de doenças
somadas a projetos com recursos bem aplicados têm melhorado as condições de
vida, o que é evidenciado com o aumento da longevidade e diminuição da taxa de
mortalidade infantil. [1] Mas o problema do mal – incluindo as doenças e
enfermidades – é mais complexo. Sua erradicação não depende somente de planos
eficientes mais localizados: o mal em grande parte subsiste num sistema
perverso de dominação que mantém os pobres reféns dos ricos e poderosos. É
necessário converter também os critérios de julgar, os valores que contam os
centros de interesse na sociedade de hoje (cf. Paulo VI, exortação Evangelii
Nuntiandi, n. 19), para que aconteça uma libertação integral do ser humano. Por
causa do mal disseminado em estruturas injustas, muitos inocentes padecem.
As consequências são as variadas formas de
sofrimento do povo, que se pergunta: “O que fizemos de errado para merecer
isso?” E quando não veem saídas, são comuns as pessoas assim se expressarem:
“Só por Deus mesmo para sair dessa situação”. Na Bíblia, a história do Jó
paciente reflete o conformismo nas palavras: “Recebemos de Deus os bens, não
deveríamos receber também os males?” (Jó 2,10). Jó é figura de tantas vítimas
de hoje, que não têm a quem recorrer. Muitos se refugiam na religião, esperando
uma cura miraculosa, buscam Jesus milagreiro e exorcista. Outros buscam explicação
da origem do mal num princípio negativo, que compete com as forças do bem. Com
isso, a responsabilidade do mal é descarregada sobre demônios ou espíritos do
mal. O povo sofredor é uma grande parcela da sociedade doente que clama por
socorro, saúde, libertação. Cura e libertação são temas correlatos. Vamos
refletir com base na história do povo na Bíblia. Será uma abordagem teológica
da temática. Na Bíblia, aparece o projeto de Deus no esforço do povo de se
organizar e assumir a vida comunitária na prática da justiça e misericórdia em
favor do oprimido, do órfão, da viúva, do pobre, privados de condições dignas
de vida.
Cura, libertação e salvação.
Há uma relação estreita entre cura e libertação,
salvação espiritual e saúde física. A salvação do ser humano em corpo e
espírito abrange a existência na sua totalidade. O próprio termo latino “salus”
significava originalmente saúde e salvação. Cristo é chamado o “Salvador”. E a
doutrina da salvação é chamada “soteriologia”. Muito antes de Cristo, o médico Asclépio
era chamado de “soter”, salvador (cf. SCHIAVO e DA SILVA, 2000, p. 13-14).
Entendemos que a saúde é bem-estar físico,
espiritual e social. Cura não se refere somente a libertação de doenças, mas a
promoção da vida, do bem-estar da pessoa, na sua integridade de corpo e
espírito. Diante do drama do sofrimento, não basta o conforto espiritual de uma
vida futura no céu sem dor. É necessário lutar com os meios disponíveis, para
promover a vida. No entanto, a cura é também proporcionar o bem-estar à pessoa
mesmo na proximidade da morte. Nesse estado, a pessoa aceita com serenidade os
limites da existência, os limites dos recursos da medicina, e sem drama se
entrega nas mãos de Deus. Para a pessoa de fé, a experiência do sofrimento a
conduz a um nível espiritual de aceitação de que a vida neste mundo é limitada.
Como cristão, quem buscou viver na graça de Deus e na comunhão com Cristo
também crê que morrer é estar com Cristo e participar da vida plena na
ressurreição (cf. 1Ts 4,14; Cl 3,3-4; Fl 1,20-21). Nesse sentido, a cura é uma
experiência de bem-estar espiritual diante da morte. Busca-se viver com
qualidade de vida e também enfrentar com coragem e serenidade o momento
derradeiro como coroamento da vida. Isso é também libertação.
Em relação à libertação, encontram-se na Bíblia
principalmente os verbos: livrar, salvar, curar, resgatar, redimir, tirar de… A
cura, em geral, é interpretada como ação libertadora de Deus. Ele traz a
salvação. O próprio nome “Jesus” no Novo Testamento significa que ele salvará o
seu povo dos seus pecados (Mt 1,21). Tomemos o conceito mais conhecido na
teologia, o termo “redenção”. Ele se origina dos verbos hebraicos gahal e
padah. O verbo gahal foi traduzido pela Bíblia Grega (Setenta) 90 vezes como
“resgatar”, 45 vezes como “pôr em liberdade”, 41 vezes como “libertar” e também
“salvar”. O verbo gahal nunca foi traduzido com o sentido de libertar com
pagamento de resgate. Deus é o sujeito que resgata e salva gratuitamente. Ele
tirou o povo do Egito por sua iniciativa. Deus se apresenta no livro do Êxodo
como Senhor e Libertador: “Eu sou o Senhor teu Deus que te fez sair da terra do
Egito, da casa da escravidão” (Ex 20,2). A libertação é parte essencial do
projeto de Deus. O povo passou por experiência de escravidão, doença, fome, derrotas.
Muitas vezes faltaram com o compromisso assumido de seguir a lei de Deus, não
fizeram a sua parte. Mesmo assim, o Senhor estava ao seu lado para exortar à
fidelidade. O resultado da cura é o “Schalom”, termo que indica uma situação de
paz, integridade, plenitude. No Novo Testamento, Jesus dedicou parte de sua
vida ao cuidado da saúde. Seu programa era anunciar a boa notícia aos pobres,
dar vista aos cegos, libertar os presos, devolver a audição aos surdos, curar
os paralíticos, purificar os leprosos, ressuscitar mortos (cf. Mt 11,5; Lc
4,18-19; 7,21-22). Sua missão incluía também libertar as pessoas do domínio do
diabo (cf. At 10,38). Enfim, a missão de Jesus era anunciar o ano da graça do
Senhor (cf. Lc 4,18), os tempos sonhados pelo povo com o estabelecimento do
reinado de Deus.
Relatos de cura no Antigo Testamento
No Antigo Testamento, a cura é sempre atribuída à
intervenção de Deus, Senhor da vida e da morte. A doença era vista muitas vezes
como castigo de Deus pelo pecado. No anúncio da libertação futura, a cura e a
saúde seriam restituídas com a eliminação do pecado, causa dos males (cf. Is
33,24; Sl 40,5). No entanto, “a partir do exílio por influência babilônica,
toma força a personificação de certos seres inimigos de Deus, e assim se difunde
a crença de que anjos maus e demônios também eram causadores da dor, doença e
morte” (CHAPA, “Exorcistas”, in AGUIRRE, 2009, p. 121). Na Bíblia, a cura dos
males vem de Deus, considerado o médico supremo. Por esse motivo, o recurso aos
médicos era visto quase como ofensa a Deus. O rei Asa é admoestado porque “nem
mesmo na doença procurou o Senhor, recorrendo só aos médicos” (2Cr 16,12) (cf.
VENDRAME, “Curas”, in Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saúde, 1999,
p. 275). Na verdade, havia certos tabus que impediam o avanço da medicina. Por
exemplo, a proibição de tocar em cadáveres impedia a autópsia e a descoberta
das causas das doenças (Nm 5,2; 6,6; 19,11-16). A aversão pelo sangue derramado
(Gn 9,3-4; Lv 19,26) impedia qualquer experimento em matéria de cirurgia. A lei
da pureza legal marginalizava os doentes de pele, chamados leprosos (Lv 13-14)
(SCHIAVO e DA SILVA, 2000, p. 43). Depois do exílio, abre-se o caminho para a
ciência médica e para uma medicina alternativa. Porém não à margem do poder de
Deus. O médico deve ser honrado (Eclo 38,1), mas é do Altíssimo que vem a cura:
ele deu a ciência aos homens (Eclo 38,2.6), como também ao farmacêutico que
prepara as misturas (Eclo 38,7) (VENDRAME, idem, p. 275).
As curas individuais são poucas. As mais famosas
são a cura da lepra de Naamã (2Rs 5,1-27), a cura de uma enfermidade mortal de
Ezequias (2Rs 20,1-11; Is 38,1-22), a cura de Jeroboão (1Rs 12,26-13,10), de
Miriam, irmã de Moisés (Nm 12,11-15), de Nabucodonosor (Dn 4,1-34). Há muitos
salmos de súplica por cura de doença (Sl 6; 22; 38; 39; 88; 102; 143), mas
também de ação de graças pela cura (Sl 30).
2.1. A cura de Naamã: uma nova vida na fé (2Rs
5,1-27)
Trata-se de um relato de cura da lepra com
intervenção do profeta Eliseu. Observemos os efeitos da cura: além da
restituição da saúde física, houve uma transformação na vida daquele homem,
comenta Olivier Artus (Curar e salvar no Antigo Testamento, in MICHEL e PIERRE,
2007, p. 46). Por duas vezes o relato utiliza o substantivo “servo” para expressar
essa mudança. De um lado, percebe-se a arrogância de Naamã, que se admirava do
fato de Eliseu não vir a seu encontro e enviar um mensageiro (2Rs 5,11). Após a
cura, a arrogância dá lugar à reverência para com o profeta, e Naamã fala como
“servo” do profeta: “Por favor, aceita este presente do teu servo” (2Rs 5,15).
Naamã, no início do relato, é apresentado pelo rei de Aram (Síria) como “seu
servo”, depois Naamã designa-se a si mesmo como servo de Eliseu, em 2Rs
5,15.18. Definido em 2Rs 5,1 como chefe do exército do rei de Aram, a partir de
2Rs 5,15 Naamã encontra nova identidade fundada na fé no Deus de Israel: “Agora
sei que não há Deus em toda a terra a não ser em Israel”. As observações acerca
do personagem Naamã mostram que a cura não constitui o núcleo da transformação:
ela se torna possível por sua conversão, que o faz adotar uma atitude de servo
com relação a Eliseu, homem de Deus. A cura é sinal de uma transformação
interna.
2.2. A cura de Ezequias: Deus escutou sua oração
(2Rs 20,1-11)
Ezequias, rei de Judá, é atingido por uma doença
mortal. O profeta Isaías lhe anuncia que morrerá em breve. Ezequias cai em
prantos e, em sua oração, expressa que sempre foi fiel e praticou o que era
agradável aos olhos de Deus. Logo em seguida Isaías é enviado a transmitir a
boa-nova ao rei: “O Senhor escutou a prece e viu suas lágrimas!” Com uma
aplicação de espécie de pasta de figos sobre a úlcera, Ezequias é curado e vive
mais 17 anos. Temos a súplica em prantos que é ouvida por Deus. Vemos nas
palavras de Ezequias que ele foi fiel e fez o que era agradável a Deus (cf. 2Rs
20,3). Pela concepção da teologia da retribuição, Deus recompensa os bons e
castiga os malvados. Ezequias é curado, pois reivindicou os seus méritos na
oração. Como não havia explicação para a causa da doença, o mal era atribuído a
um possível castigo de Deus. E a cura só poderia vir de Deus. Ele fere e cura a
ferida (cf. Dt 32,39)! Porém essa cura acontece com intervenção humana,
mediante a aplicação de uma pasta de figos. Uma teologia mais desenvolvida da
cura e libertação na Bíblia valoriza a intervenção humana e os remédios para a
cura, no caso as plantas úteis como alimento e remédio (cf. Gn 1,30; Ez 47,12).
2.3. Salmo de ação de graças de um doente curado
(Sl 30)
O salmista exalta o Senhor porque o tirou do scheol
(30,2). “Eu te exalto, Senhor, porque me livraste”. O verbo hebraico dalah
(30,2), que significa tirar para fora, é usado quando se fala de tirar água do
fundo do poço com um balde. É traduzido também como “livrar”. A imagem é forte,
pois o salmista reconhece que o Senhor o tirou fora da situação de crise, de
morte iminente de quem estava descendo ao fundo do poço. Sua vida estava em
fase terminal, descendo à região dos mortos. Ele gritou e o Senhor o curou
(30,3). A invocação de cura de doença indica que ele está consciente de que sua
doença não é apenas arbítrio de Deus, mas também pode ser resposta a sua
atitude de presunção (30,7). Nesse sentido, a cura inclui também o perdão dos
pecados e a reintegração na comunidade dos justos. A seguir, o salmista conta o
passado antes da doença, lembrando sua segurança e prosperidade: “Eu dizia na
minha prosperidade, jamais serei abalado” (30,7). Quando tudo vai bem,
facilmente as pessoas se esquecem de Deus, mas quando vêm crise e ameaça, a
reação é imediata: “A ti, Senhor, clamo, imploro graça, ó Deus, meu salvador”
(30,9). “Escuta, Senhor, tem piedade de mim, ajuda-me” (30,11). A cura
aconteceu no aspecto físico. O Senhor impede a morte, a descida ao scheol. Porém
acontece também a cura em âmbito espiritual. O salmista é curado de sua
presunção e falsa segurança. Torna-se humilde e agradecido. Reconhece que o
Senhor restitui a vida. A doença foi interpretada como uma advertência no
momento da ira divina para corrigir. A cura espiritual aparece na capacidade de
transformar os conflitos da vida em fonte de espiritualidade, dando novo
significado à existência.
Cura e libertação na prática de Jesus
Se a medicina moderna, com todos os recursos, não
consegue a cura de tantas doenças, podemos imaginar como era 02 mil anos atrás.
Grande parte da população era doente e o índice de mortalidade era alto. Isso
explica por que grande parte do evangelho relata o ministério de Jesus curando
doentes de toda espécie. Os gestos milagrosos de Jesus são conhecidos como
“gestos poderosos”, “sinais” ou “obras” de Deus. São sinais de que o Reino de
Deus chegou na prática libertadora de Jesus (Mt 12,28; Lc 11,20). Jesus curou
quatro cegos, quatro paralíticos, um leproso, outros dez leprosos de uma vez,
exorcizou cinco endemoninhados, curou a distância a filha da Cananeia e o
empregado do oficial romano, devolveu a fala a um surdo-mudo, baixou a febre da
sogra de Pedro, curou uma mulher com hemorragia, colocou a orelha de um
soldado, além de realizar diversas curas em massa (SCHIAVO e DA SILVA, 2000, p.
17). Quanto aos tipos de milagres, os evangelhos falam de curas e de
libertações de possessões do demônio ou exorcismos. Nem sempre é clara a
distinção entre as duas formas de intervenção curativa de Jesus. Isso porque
algumas doenças físicas ou psicofísicas – surdez, mutismo, epilepsia – eram
atribuídas à presença e ação dos espíritos maus (Mt 12,22; Lc 11,14).
Analisemos alguns relatos para mostrar a dimensão da cura e seu significado na
prática de Jesus.
3.1. A sogra de Pedro pôs-se a servi-los (Mc
1,29-31)
É o relato de cura mais breve. Jesus vai ao
encontro dos doentes, junto com seus discípulos. Ele é o terapeuta da família,
pois visita às casas do povo. Não se sabe a causa da doença da sogra de Pedro.
Jesus, sem dizer uma palavra, apenas “tomou-a pela mão e a fez levantar-se” (Mc
1,31), e a febre a deixou. O resultado da cura: a sogra de Pedro voltou a fazer
o que sempre fazia, “pôs-se a servi-los”. Mais uma vez aparece a humanidade de
Jesus. A cura vai acontecer na solidariedade e compaixão com os doentes. No
relato paralelo de Lc 4,38-39, Jesus cura fazendo uma espécie de exorcismo:
“esconjurou a febre”. Muitos acreditavam que a febre vinha dos espíritos do
mal. O importante foi o resultado da visita de Jesus em vista da cura.
3.2. O leproso tocado por Jesus e integrado na
sociedade (Mc 1,40-45)
O relato apresenta o leproso que foi até Jesus e
implorou-lhe a cura, pondo-se de joelhos (cf. Mc 1,40). Marcos relata que Jesus
foi movido por compaixão (cf. Mc 1,41). Jesus foi tocado pela situação
dramática daquele homem e se compadeceu, “tocou-o” e o curou. Jesus rompe o
preconceito segundo o qual tocar uma pessoa com aquela enfermidade fazia impuro
quem a tocasse. Ele é movido de compaixão, aproxima-se e assim revela a face de
Deus compadecido pelos doentes. Jesus vai à contramão dos costumes da época e
resgata a dignidade da pessoa. Ele acolhe, ouve a súplica e toca. Aconteceu uma
cura e libertação da pessoa doente, sua dignidade foi resgatada. Como reação,
aquele que antes era leproso e vivia excluído, longe da comunidade, não pode
guardar silêncio. Ele sai e proclama a boa notícia por toda parte. Fica clara a
inclusão do curado na comunidade, mediante a prática de Jesus em favor dos
excluídos. Fica claro também que a fé do doente coopera no processo da cura com
o toque e as palavras de Jesus “quero, fica purificado”.
3.3. O que era paralítico saiu carregando o leito
(Mc 2,1-12)
Como na narrativa da cura do leproso que veio até
Jesus (cf. Mc 1,40), aqui muitos vão até Jesus “em casa”. Ocasião em que trazem
um paralítico no leito (cf. Mc 2,3). O cenário é a casa apinhada de pessoas, de
sorte que ninguém podia entrar. O relato é dramático pelo fato de descobrirem o
telhado para introduzir o paralítico com seu leito! O doente nada diz, mas
Jesus, vendo a fé daqueles que carregavam o doente, fala: “Filho, os teus
pecados estão perdoados” (Mc 12,5). Há uma introdução do tema do perdão dos
pecados associado à cura (cf. Mc 2,5b-10a). Jesus ordena: “Para que saibais que
o Filho do homem tem o poder de perdoar pecados na terra, eu te ordeno,
levanta-te” (Mc 2,10b-11). O resultado é imediato: o paralítico se levantou e
saiu diante de todos carregando seu leito (Mc 2,12). O mesmo que entrou com
dificuldade, sendo carregado, agora sai carregando a própria cama. A libertação
é integral com o perdão dos pecados e a recuperação do enfermo. O pecado,
segundo a concepção judaica da época, estava ligado à enfermidade (GNILKA,
1986, p. 116). Realmente o mal, os pecados bloqueiam as pessoas, paralisam. O
perdão solta os laços, as cadeias, liberta a pessoa para caminhar com as
próprias pernas. A prática de Jesus ligada à sua grande compaixão revela a nova
face de Deus, humana, como um Pai. Ele chama o paralítico de “filho”. A cura
conta com a fé e a solidariedade da comunidade, representada naqueles que
carregavam o paralítico.
3.4. O que era endemoninhado se tornou missionário
(Mc 5,1-20)
Trata-se do caso do endemoninhado de Gerasa. Do
extremo da situação de exclusão, sofrimento e violência, o homem é curado e
aparece “vestido, sentado e de são juízo”. Depois, é enviado a anunciar o que
Jesus fez por ele. O narrador descreve o fato num contexto de viagem. As
indicações de desembarque em Gerasa (cf. Mc 5,1) e subida no barco (cf. Mc
5,18) mostram a preocupação de situar o relato no contexto de missão. No final
do milagre, Jesus parte de volta (cf. Mc 5,18) e também o curado parte em
missão por ordem de Jesus. A ordem de marchar ou de ir para casa é típica da
conclusão de relatos de milagres (Mc 1,44; 2,11; 5,34; 8,29; 10,52). A
preocupação de ir aos outros lugares deriva do interesse do evangelista de
destacar a urgência da missão. Certas repetições parecem acentuar também a
necessidade de testemunhar o fato: por duas vezes, o endemoninhado vai a Jesus
(cf. Mc 5,2 e 5,6). Duas vezes é contado o que aconteceu ao endemoninhado e aos
porcos por meio dos pastores (cf. Mc 5,14) e daqueles que viram (cf. Mc 5,16).
O fato será testemunhado também pelo próprio curado, que anunciará aos seus o
milagre. O afogamento no mar dos porcos, associados à legião, indica a derrota
definitiva do poder do mal. (Porcos: sistema judaico da lei do puro e impuro
que excluía; legião: força organizada de destruição comandada pelo poder romano
na região da Decápole.)
O milagre mostra a rejeição da dominação política.
A simbologia das correntes, grilhões, algemas sugere o contexto de escravidão.
A narração indica a luta de Jesus, “o mais forte para amarrar o homem forte”
(Mc 3,27). Gerd Theissen tem também essa posição: “a opressão por um povo
dirigente estrangeiro às vezes aparece em código, como possessão por um
espírito estrangeiro”. No texto de Marcos, a menção dos 2 mil porcos que
despencaram mar adentro simboliza a libertação do povo da dominação das legiões
romanas no território da Decápole. A possessão dos demônios em sociedades
tradicionais muitas vezes também é reflexa de antagonismos de classe enraizados
na exploração econômica. A possessão pode ser ainda uma forma socialmente
aceitável de protesto indireto contra a opressão, ou mesmo fuga desta. A tensão
entre seu ódio aos opressores e a necessidade de reprimir esse ódio a fim de
evitar recriminações dos opressores leva o indivíduo a ficar louco… Ele se
retirava a um mundo interior onde pudesse resistir à dominação. Nesse sentido,
o endemoninhado representa a ansiedade coletiva diante do imperialismo.
Trata-se, segundo Franz Fanon, de colonização da mente, em que a angústia da
comunidade diante de sua subjugação é reprimida e, depois, se volta contra si
mesma. Isso parece ser suposto no relato de Marcos, quando diz que o homem
emprega violência contra si mesmo (cf. Mc 5,5). Segundo Carmen Bernabé Ubieta,
“as doenças de possessão são reflexo corporal de um conflito interno produzido
em grande medida pela defasagem entre os desejos e sentimentos internos e o que
as normas sociais impõem e permitem à pessoa. Nesse caso, por meio dos demônios
que gritam, a pessoa expressa indiretamente as queixas que tem contra o seu
ambiente (“A cura do endemoninhado de Gerasa”, in AGUIRRE, 2005, p. 113).
3.5. O cego Bartimeu tornado discípulo (Mc
10,46-52)
O relato situa-se no contexto da caminhada de Jesus
para Jerusalém, em que ele instrui os discípulos sobre a natureza da sua missão
messiânica, revela quem ele é e apresenta as exigências do seguimento. Aos
poucos, os discípulos vão compreender o que é ser discípulo, sua mente e seus
olhos vão se abrir. A intervenção de Jesus curando cegos antes de iniciar a
caminhada (cf. Mc 8,22-26) – e, no final da caminhada, já próximos a Jerusalém
(cf. Mc 10,52-56) – tem a ver com a cura da cegueira dos discípulos. A cura
significa a aquisição de nova visão, a mudança de paradigmas para entender o
projeto de Jesus. Certas particularidades do relato parecem querer apresentar o
modelo do discípulo. Vejamos.
É o único milagre no qual nos é dado o nome da
pessoa curada e também o único caso em que o curado segue Jesus. Ao seguir
Jesus, ele joga o manto e vai atrás. É instrutiva a comparação com a cura do
cego de Betsaida (Mc 8,22-26) e também a cura do surdo-mudo situado na Decápole
(Mc 7,31-37). No primeiro relato, Jesus é o protagonista de toda a ação, conduz
o cego pela mão para fora, faz barro com saliva, aplica no olho. No segundo
relato, na cura do cego Bartimeu, os dados se invertem. O doente é o sujeito da
maior parte das ações. É ele quem grita e pede: “Filho de Davi, Jesus, tem
compaixão de mim” (Mc 10,47). Ele deixa a capa, levanta-se, vai até Jesus (cf.
Mc 10,50). Há um diálogo e Jesus lhe pergunta: “Que queres que eu te faça?” O
cego responde: “Que eu possa ver novamente” (Mc 10,51). E o relato termina com
as palavras de Jesus: “Vai, a tua fé te salvou”. Porque foi salvo da cegueira,
ele seguia Jesus pelo caminho (Mc 10,52).
Conclusões síntese:
Cura e libertação na Bíblia é parte essencial do
plano de Deus. Os diversos relatos de cura, tanto no Antigo como no Novo
Testamento, são sinais de que o Senhor intervém na história e escuta a súplica
dos doentes. A história do povo da Bíblia, como também as de outros povos, com
suas histórias de curas, com seus meios terapêuticos, revelam a luta contra as
doenças na busca incessante de cura e bem-estar. Ser curado, especialmente nos
relatos que analisamos, significa o pleno restabelecimento da pessoa, o resgate
de sua dignidade de ser humano e sua reintegração no serviço à comunidade. Os
curados tanto proclamam o que aconteceu de bom em sua vida (cf. Mc 5,18-20)
como se engajam numa missão e serviço (cf. Mc 1,29-30; 1,43).
A cura e libertação abrangem a pessoa na sua
totalidade, pois saúde é bem-estar físico, psíquico, espiritual e social. A
cura e salvação da pessoa, no sentido cristão, são mais que o restabelecimento
da saúde física: operam na pessoa nova vida, novo sentido, que transcende a
vida presente e a projeta na vida eterna. Eis a vida plena de quem crê que
transcende a morte. Nesse sentido, para nós, cristãos, se nesta vida cremos que
Jesus morreu e ressuscitou, também com ele, na morte, ressuscitaremos para uma
vida nova (cf. Rm 6,5.8). A vida nova de ressuscitados já está presente
naqueles que vivem neste mundo na fé e na esperança. Paulo diz: “Vocês
ressuscitaram com Cristo, por isso busquem as coisas do alto” (Cl 3,1). Isso
não significa fuga do mundo, mas compromisso com o projeto de Deus de
transformar a vida presente mediante a libertação dos males e doenças. Assim
vai acontecendo a transfiguração do mundo, com a diminuição da dor, da doença,
do sofrimento.
Curas e libertações acontecem na aplicação dos
recursos modernos da medicina, e não apenas na crença de intervenção mágica de
milagreiros e exorcistas, como ocorria no primeiro século da era cristã. A fé
verdadeira se torna visível na ação e no planejamento. Deus atua na história,
na ação do médico e no efeito dos remédios. A graça da cura opera segundo a
natureza, seguindo a evolução cultural e científica da humanidade. Deus deu ao
ser humano inteligência para descobrir técnicas terapêuticas e novos remédios
para fazer frente ao desafio das enfermidades. Deus se revela hoje nos sinais
dos tempos. Vemos a intervenção dele no horizonte da teologia da criação.
Jesus curou muitos doentes das mais variadas
enfermidades e deu aos discípulos a missão de fazer o mesmo. Inspirados no
cuidado de Jesus com os doentes, os cristãos, especialmente os profissionais da
saúde, encontram o sentido profundo do cuidado e atenção aos doentes e do
exercício da medicina. A mística cristã do cuidado caracteriza-se pela
compaixão e pelo modo humano de tratar a pessoa doente.
A cura física é seguida também da cura espiritual,
que liberta a consciência do pecado. A cura espiritual inclui o perdão a si
próprio, mediante a aceitação da própria condição humana, e o perdão de Deus,
que torna a pessoa justa. A experiência da gratuidade divina que cura e liberta
transcende a cura física e produz na pessoa bem-estar e paz espiritual vindos
de Deus. Nesse nível a fé é fundamental, tanto para quem está doente como para
quem trata o doente. Na Igreja primitiva, o cuidado dos doentes era uma
preocupação pastoral que certamente seguia a prática dos discípulos de Jesus de
orar e ungir os doentes (cf. Mc 6,13). Esse cuidado, que torna presente o gesto
curador de Jesus, está na missão da Igreja.
REFLEXÃO:
https://youtu.be/6nt1jt7nywI
//Pr.Paulo Jr. // Crianças Cuidados //
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