sábado, 30 de setembro de 2023

MARIA... 5a.Parte

 

Lutero e Calvino diante de Maria, mãe de Deus?

 

Martinho Lutero e João Calvino são, sem dúvida, os maiores expoentes da reforma protestante, gerando dois grandes movimentos e tradições: Luteranismo e Calvinismo. Ambas as teologias divergem e, ao mesmo tempo, convergem em muitos pontos. Minha atrevida missão, neste artigo, será a de trazer luzes ao protoevangelho, contido lá no capítulo 3, versículo 15 do primeiro livro da Bíblia Sagrada: Gênesis.

 

Para os católicos romanos, este texto é um dos textos chaves para o dogma de Maria e as doutrinas de Mariologia. As doutrinas da imaculada Conceição são antigas e perpassam de Éfeso (3º Concílio) ao Vaticano II, cada formando parte do que hoje é o todo da Mariologia católica romana. Mas, foi o Concílio de Trento, que a isentou do pecado original, imunizando-a de toda culpa e pecado, inclusive afirmando a liceidade do culto de sua imagem, isto bem em meio a reforma protestante (1545 a 1563), considerado uma resposta à reforma, chamado, por muitos, como Concílio da Contrarreforma.

 

Entretanto, foi a Bula “Ineffabilis Deus”, que proclamou o dogma mariano, como recordado pelo Papa João Paulo II, em sua homília do 150º aniversário da definição dogmática: “Repetimo-las hoje com alegria fervorosa, na solenidade da Imaculada Conceição, recordando o dia 8 de Dezembro de 1854, quando o Beato Pio IX proclamou este admirável dogma da fé católica, precisamente nesta Basílica do Vaticano[1]”. A Ineffabilis Dei unifica a tradição das doutrinas marianas[2], afirmando:

 

Por tal motivo, ao explicar as palavras com que, desde as origens do mundo, Deus anunciou os remédios preparados pela sua misericórdia para a regeneração dos homens, confundiu a audácia da serpente enganadora e reergueu admiravelmente as esperanças do gênero humano, dizendo: “Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela”, eles ensinaram que, com esta divina profecia, foi clara e abertamente indicado o misericordiosíssimo Redentor do gênero humano, isto é, o Filho Unigênito de Deus, Jesus Cristo; foi designada sua beatíssima Mãe, a Virgem Maria; e, ao mesmo tempo, foi nitidamente expressa a inimizade de um e de outra contra o demônio.

 

Em conseqüência disto, assim como Cristo, Mediador entre Deus e os homens, assumindo a natureza humana destruiu o decreto de condenação que havia contra nós, cravando-o triunfalmente na Cruz, assim também a Santíssima Virgem, unida com Ele por um liame estreitíssimo e indissolvível, foi, conjuntamente com Ele e por meio d’Ele, a eterna inimiga da venenosa serpente, e esmagou-lhe a cabeça com seu pé virginal.

 

O teólogo católico Pe. Réginald Garrigou-Lagrange ensina que “na promessa do Gênesis é afirmada uma vitória completa sobre o demônio: esta te esmagará a cabeça; e, portanto, sobre o pecado que põe a alma em um estado de servidão ao império do demônio. Portanto, como diz Pio IX, na bula Ineffabilis Deus, essa vitória sobre o demônio não seria completa se Maria não tivesse sido preservada do pecado original pelos méritos de seu Filho: De ipso (serpente) plenisime triumphans, illius caput immaculato pede (Maria) contrivit.[3]”

 

Pelo lado protestante, tanto Lutero quanto Calvino exploram e concluem o papel de Maria na caminhada da salvação da humanidade distanciando-se muito da tradição católica romana apontada nos parágrafos precedentes. O entendimento de cada reformador possui pontos específicos, contrariando a compreensão do senso comum a respeito das definições teológicas deixadas por cada um deles quanto a pauta Mariana, nos deixando a mercê de um problema precisamente apontado por Giovanni Miegge:

 

“Está amplamente admitido que a piedade mariana tem um longo desenvolvimento na história da Igreja e o interesse histórico das fases dêsse desenvolvimento é aceito. A posição tradicional de procurar achar nas Sagradas Escrituras a justificação de todos os aspectos do dogma mariano ainda que a custo de forçar-lhes o sentido, cedeu lugar a uma consideração mais objetiva. Em escritos populares destinados aos leigos pode ser achada a admissão que este ou aquele aspecto da doutrina mariana, tais como a sua imaculada conceição, sua assunção, sua participação na redenção dos homens, não são explicitamente ensinados no Novo Testamento […]”[4]

 

Importa-nos não cair neste ou naquele erro, a saber, forçar o sentido do dogma mariano ou contentar-se com uma consideração fria, objetiva, sobre o tema. Um passeio no protoevangelho de Gênesis é um bom caminho para iniciarmos. Em Gênesis 3:15 temos a primeira clara menção da vitória de Cristo sobre o pecado e sobre o inimigo, até por isto chamado de protoevangelho, À profecia que revela como a queda do homem teria seus efeitos superados pela obediência de Cristo. Diz Deus:

 

E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar. Gen. 3.15 – BS – ACF

 

As palavras chave do texto que ficaram passíveis de interpretações diferentes entre Lutero e Calvino são: 1) semente da mulher e 2) descendência. Presente em suas interpretações divergentes também está, a questão do mérito pela vitória sobre o pecado. Lutero aponta, o que Calvino parece concordar, que a semente referida no protoevangelho é a própria pessoa do Deus encarnado, Cristo Jesus. Raymann e Sieves salientam “que ‘ferir a cabeça da serpente’ significa vencer o pecado, a morte, o inferno e o diabo, que são atribuições próprias (idiomata) da natureza divina. Mas essa interpretação não é unânime. Nas Bíblias latinas, a expressão ‘este te ferirá’, o pronome awh é traduzido pelo feminino ipsa, ‘ela ferirá’, sendo que o Texto Massorético apenas permite o masculino, ipse. Este erro insinua que Maria destruirá Satanás, desfazendo a eficácia da obra de Cristo. Certamente se comete grande pecado, diz Lutero, inventando um novo ensino fazendo com que o consolo e a Santa Palavra se tornem idolatria”[5],[6].

 

A percepção de Lutero é fruto de sua acepção à teologia agostiniana, a saber, que não existe mérito humano que decorra de sua vontade. Perceberemos que o reformador:

 

“[…] recebeu instrução de monge agostiniano – adotou e adaptou grande parte da doutrina da predestinação de Agostinho. Este aspecto da teologia de Lutero apareceu de forma mais saliente no debate com Erasmo sobre a liberdade ou escravidão da vontade humana (limitada). Lutero, a exemplo de Agostinho, afirmava que “não pode haver nenhum ‘livre-arbítrio’ no homem”. [7]

 

A sua inspiração hermenêutica fica ainda mais clara quando nos deparamos com a sua conclusão a respeito da mensagem de Gênesis 3:15 – no qual ele entende que a semente da mulher se refere exclusivamente a Cristo, e, de forma alguma a Maria, como exposto acima. No seu comentário sobre o Magnificat, Lutero consolida a centralidade de Cristo como suficiente e exclusiva para a remissão dos pecados, conforme bem lembra Jaroslav Pelikan:

 

“Ser “santo” significava ser “separado” e separado de tudo que era profano e pecaminoso (Lut. Magn. 49 [WA 7:575]) e a santidade de Deus significava que “só Deus é santo, mas o povo todo e qualquer coisa que o faça são completamente poluídos” (Lut. Jes. 6:2 [WA 31-II:48])”[8]

 

O estudo ao cântico de Maria é um dos grandes legados (dentre muitos outros) deixados por Martinho Lutero, em que ele comenta sobre a natureza de Maria. Consolidando sua ideia da primazia de Cristo no plano da redenção, Lutero observa que:

 

“Maria notou a grande obra de Deus nela, mas ela não se considerou maior do que a pessoa mais humilde da terra. […] teve apenas este pensamento: se outra jovem tivesse sido beneficiada por Deus, ela também desejaria alegrar-se e querer tudo de bom para essa jovem. Até desejaria julgar-se a única indigna dessa honra e todas as demais, dignas. Maria também teria se conformado se Deus lhe tivesse tirado esses benefícios e dado a uma outra jovem diante de seus olhos. Ela não se atribui absolutamente nada de tudo isso. Não foi mais do que um alegre albergue e uma serviçal anfitriã desse hóspede.”[9]

 

Esta percepção corrobora sua interpretação do protoevangelho de Gênesis, no qual o mérito pela obra da salvação vem apenas e tão somente de Cristo. Atribuir à Maria um caráter de coparticipação na salvação ou no própria Trindade não está de acordo com a Bíblia Sagrada, muito menos com as intenções da própria Maria:

 

“Todos aqueles que insistentemente atribuem a Maria tanto louvor e honra e lhe impõem tudo isso não estão longe de transformá-la em ídolo, como se ela desejasse ser honrada e se devesse esperar todo o bem dela.” [10]

 

Na mesma alçada, Lutero é intransigente com qualquer tentativa de dividir os méritos da salvação com outra pessoa que não seja Cristo. Sua ideia de que não há lugar para qualquer prêmio pelas boas obras que há de ser entregue a homens e mulheres – sendo a salvação dos pecadores a maior boa obra, o sumo bem, provindo de Jesus, apenas:

 

“O que dirão os defensores do “livre arbítrio” a respeito da palavra “gratuitamente”, em Romanos 3:24? Paulo diz que os crentes são “justificados gratuitamente, por sua graça”. Como interpretam “por sua graça”? Se a salvação é gratuita e oferecida pela graça divina, então não se pode conquistá-la ou merecê-la.”[11]

 

Com base na assimilação Paulina sobre o mérito exclusivo de Cristo, Lutero entende que a semente da mulher presente no capítulo 3 de Gênesis é Cristo, e somente Ele, por entender a salvação como um FAVOR. É o que caracteriza a concepção de monergismo divino, que moveu os debates de Lutero, além de corroborar seu discernimento a respeito de Gênesis:

 

“Era esse monergismo divino que estava em jogo para Lutero não só na controvérsia com Erasmo, mas também em suas disputas com o escolasticismo e em seus comentários bíblicos. O monergismo divino teve como seu resultado a exclusão de qualquer noção de mérito como fundamento para a relação do homem e, especificamente, a rejeição da “distinção fictícia entre mérito de congruência e mérito de condignidade” (Apol. Conf. Aug. 4.19 [Bek., p. 163]; Lut. Gal. [1535] 2:16 [WA 40-11:223]): o que o homem pecaminoso fez por si mesmo, até o ponto em que foi capaz, era definido como mérito de adaptação ou de congruência “meritum congrui” ou “meritum de congruo”); o que um homem justo, capacitado pela graça divina, fazia por si mesmo ou pelos outros era definido como mérito de dignidade ou condignidade (“meritum condigni” ou “meritum de condigno”)”.[12]

 

Qualquer entendimento que colocasse algum tipo de mérito sobre a salvação a uma terceira pessoa, era prontamente condenado por Lutero. A luta para a salvação é ganha por Cristo, destarte, o mérito desta vitória provém Dele. Não há que se colocar participantes periféricos, sendo a descendência da mulher um instrumento de Deus para que a Salvação fosse concretizada. Tal entendimento de Lutero encontra remissão nas passagens de Romanos 5:12 ao 19, 16:20, além de muitas outras como 1 Coríntios 15: 45 ao 49.

 

“A principal antítese da doutrina da justificação, para Lutero como para “o modo simples e paulino” de falar sobre o qual ele declarava fundamentar sua doutrina (Lut. Latom. [WA 8:107-8]), era aquela entre a salvação pela fé por meio da graça e a salvação pelas boas obras. No cenário da disputa sobre as indulgências, essa restrição contra as obras foi aplicada com especial severidade “às tradições humanas instituídas para aplacar a Deus, à graça pelo mérito e ao produzir a satisfação pelos pecados exigida por Deus”, todas as quais se “opunham ao Evangelho e à doutrina da fé” (Conf. Aug. 26.2-4 [Bek., p. 100-101]).”[13]

 

Em contrapartida à aversão de Lutero contra qualquer tentativa direta e indireta de acrescentar alguma figura na obra redentiva de Cristo, assim como na natureza das boas obras, Calvino carregava um entendimento diferente quanto a estrutura hermenêutica da passagem de Gênesis 3:15. Para Calvino, a semente da mulher é Cristo, entretanto, a Igreja (ou os cristãos) também faze(m) parte desta semente. Dá-se uma interpretação em sentido coletivo, levando em conta toda a descendência da mulher. Conforme prelecionam Enio Sieves e Acir Raymann, trazendo os momentos em que Calvino entende a passagem numa definição de caráter comunitário:

 

“[…] a vitória é prometida à raça humana por todos os séculos. Portanto, eu explico que a semente significa, geralmente, a posteridade da mulher. Mas, como a experiência ensina que nem todos os filhos de Adão, sem dúvida, surgiram como vencedores sobre o mal, nós devemos, necessariamente, ir ao cabeça, que encontramos naquele a quem a vitória pertence.”[14]

 

Tal compreensão calvinista é uma identificação sobre qual é a sua ideia a respeito do pensamento antropológico do homem, ao qual Calvino também atribui a vitória sobre o pecado à Igreja, tendo em vista a participação da descendência da mulher como instrumento para a chegada da vitória final sobre o pecado e o inimigo.

 

“Satanás tem, em todos os tempos, levado os filhos dos homens “cativos à sua vontade”, e, por esses dias, retém seu lamentável triunfo sobre eles, e por essa razão é chamado de “príncipe do mundo”, (Jo 12:31). Mas, por causa de alguém poderoso que desceu dos céus que irá subjuga-lo, do mesmo modo, toda a Igreja de Deus, sob a cabeça dela, gloriosamente exultará sobre ele, Por isso, a declaração de Paulo “O Senhor esmagará Satanás debaixo dos vossos pés” (Rm. 16.20).”[15]

 

Para Calvino, Cristo é o cabeça da Igreja, e o cabeça da vitória contra o pecado – mas, o termo semente da mulher envolve também o exército, a saber, os salvos da Igreja, como participantes [não confundir com agraciados] da vitória.

 

“Para Lutero, essa obra pertence exclusivamente a Cristo, até porque os homens estão inclinados a fazer o mal, e não o bem. Já Calvino expressa uma participação humana em relação ao Corpo de Cristo; por isso, a Igreja participa da obra de derrotar Satanás e sua tirania.”[16]

 

Ou seja, apesar de seu pensamento clássico de que a vontade humana não é livre,[17] Calvino revela nas Institutas este pensamento inédito na interpretação de uma passagem bíblica basilar na doutrina salvífica da Tradição Cristã Reformada. Em seu legado das Institutas, também encontraremos palavras que reafirmam esta interpretação. Ele entende a respeito da natureza de Cristo e sua relação com Maria, da seguinte maneira:

 

“Devemos afastar para longe de nós o erro de Nestório, que, antes querendo dividir que distinguir a natureza, imaginou um Cristo dúplice, enquanto vemos que a Escritura por uma clara voz o conteste, tanto revestindo com o nome de Filho de Deus aquele que nasceu da Virgem [Lc 1:32], como chamando a própria Virgem de “mãe de nosso Senhor” [Lc 1:43]. Também devemos nos guardar da insânia de Êutiques, para não destruirmos ambas as naturezas querendo demonstrar a unidade da pessoa. Já citamos tantos testemunhos em que a divindade é distinta da humanidade e ainda restam tantos outros trechos espalhados, que eles podem calar mesmo a boca mais propensa a contendas.”[18]

 

Quanto a descendência, Calvino entende pela consanguinidade entre Maria e José, o que, segundo ele, explica a árvore genealógica presente nas Escrituras:

 

“Portanto, conclui-se validamente das palavras de Mateus que, tendo sido gerado de Maria, Cristo foi procriado da semente dela, tal como marca uma geração semelhante quando diz que Boaz foi gerado de Raab (Mt. 1:5). E não é verdade que Mateus tenha descrito a Virgem aqui como se um canal pelo qual Cristo teria fluído, mas diferencia o modo admirável de geração do vulgar, visto que, por ela, Cristo foi gerado de Abraão, Salomão de Davi, José de Jacó, é dito que Cristo foi gerado da mãe. Querendo provar que Cristo tinha sua origem em Davi, o Evangelista contextualiza as palavras de tal modo que apenas elas sejam suficientes: que fosse “gerado de Maria”. Donde se segue que assumisse por confesso que Maria era consanguínea de José.”[19]

 

Apesar de seu comentário tomar como base o livro de Mateus, ele serve como leitura complementar a sua compreensão sobre o protoevangelho de Gênesis, sobretudo, pela complementariedade presente nas Escrituras. Enquanto Lutero demarcava o plano de Salvação exclusivamente sobre Cristo, Calvino enfatizava o poderio de Cristo, mas elencava espécies de figurantes – cada interpretação, trouxe desdobramentos sobre a concepção mariana dos reformadores. Em Lutero percebemos sua marcante “Teologia da Cruz”, já em Calvino, sua exegese passa da cristológica para a eclesiológica, onde a Igreja de Cristo, o tendo como cabeça, triunfará sobre Satanás. De outra banda, ambos concordam que Maria não foi imaculada e não possuiu privilégio algum, a não ser, claro, ser a mãe terrena, do próprio Deus encarnado, Jesus Cristo.

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