10-Unção
de enfermos com óleo pelos presbíteros: uma análise de Tiago 5.14,15
Introdução
A unção
dos enfermos com óleo é uma prática bastante comum entre igrejas pentecostais.
A passagem bíblica fundamental que justifica essa prática encontra-se na epístola
de Tiago, capítulo 5, versos 14 e 15. Assim, é bastante comum na igreja
Assembleia de Deus, por exemplo, após as pregações, fazer-se um “convite” para
que os que tenham alguma necessidade, especialmente os enfermos, passem à
frente para receberem uma oração com imposição de mãos e unção com óleo por
parte dos presbíteros e pastores da igreja.
Afinal,
a carta de Tiago justifica tal prática? Teria ela fundamento extra bíblico? Por
que, afinal, muitas igrejas evangélicas não adotam essa prática, se ela está na
Bíblia? O que o apóstolo Tiago quis dizer quando escreveu esses versículos?
Este
trabalho pretende analisar essa passagem do ponto de vista exegético e
histórico. Primeiramente será mostrado, resumidamente, de que forma a igreja
interpretou e pôs em prática o ensino de Tiago sobre a oração pelos enfermos.
Em seguida, serão apresentadas algumas considerações exegéticas oferecidas por
alguns estudiosos sobre o significado da passagem e a legitimidade de práticas
que diversas igrejas mantêm atualmente.
Breve
histórico da interpretação de Tiago 5.14,15
Aparentemente,
esse trecho da carta de Tiago tratava-se de uma liturgia para a unção de
enfermos da igreja antiga. Não se sabe, porém, em que circunstâncias era
praticado tal ritual, nem se o mesmo era disseminado em toda a igreja.
Sabe-se
que o rito descrito por Tiago foi praticado por oito séculos como algo
“inteiramente óbvio e incontroverso”[1]. Ao longo da idade média, especialmente
durante o período carolíngio, porém, a igreja católica transformou a “unção de
enfermos”, que visava a recuperação de pessoas doentes, em “extrema-unção”, que
tinha por objetivo a preparação para a morte do enfermo. Ou seja, a igreja
deixou de lado a expectativa de cura (talvez porque essa já não ocorria mais) e
entendeu que a passagem de Tiago 5.14,15 referia-se ao ritual de preparação
para a morte provável. Posteriormente, talvez pressionado pela controvérsia com
os reformadores, o concílio de Trento consolidou a prática como “sacramento da
extrema-unção”[2].
Os reformadores
polemizaram com a igreja romana quanto ao sentido do rito descrito pela carta
de Tiago. Lutero, na conhecida obra Do Cativeiro Babilônico da Igreja, critica
os diversos sacramentos consolidados pela teologia medieval. Ao rejeitar a
extrema-unção, o reformador alemão afirma que a interpretação dada pelo
catolicismo ao trecho da carta de Tiago sobre a unção de enfermos é totalmente
equivocada. Não se trata de um sacramento, tampouco um ritual que deve ser
ministrado apenas aos moribundos, pois a perspectiva é que o enfermo (de
qualquer tipo) seja curado e não morra.[3] Lutero entende que o texto fala de
um ritual de cura cuja origem retoma a prática dos discípulos de Jesus
registrada em Marcos 6.13: “E ungiam com óleo a muitos enfermos e saravam”. Nesse
ritual, os anciãos e pessoas mais respeitáveis da igreja visitavam o enfermo,
ungindo-o e orando com fé para que eles fossem sarados. A saúde e remissão dos
pecados não estão relacionadas com a unção, mas com a oração da fé. A unção é
um “conselho de Tiago que pode ser usado por quem o quiser usar”, voltada para
os que “sofrem a enfermidade com maior impaciência e fé rude”. Nessas pessoas
apareceriam os milagres e o poder da fé[4].
Desde a
reforma, como reação ao equívoco católico sobre a extrema-unção, as igrejas da
tradição da reforma passaram a rejeitar a atualidade do rito descrito por
Tiago. Argumentava-se que a cura que acompanhava a unção era um dom especial
dado aos primeiros apóstolos ou à igreja da era apostólica. Lutero e Calvino,
nesse sentido, adotaram uma concepção “cessacionista” quanto à possibilidade de
cura mediante a unção de enfermos com óleo pelos presbíteros[5]. Contudo, não
há nada no texto bíblico que limite a utilização do ritual ou que sugira que a
cura estivesse limitada aos tempos apostólicos. Se bem que, como ensina
BRAATEN, não possamos considerar instruções missionárias aos apóstolos ou a
recomendação de uma norma para um grupo de congregações primitivas como
dirigidas diretamente aos nossos pastores ou presbíteros hoje, também não
podemos simplesmente dizer que a cura era uma prática limitada ao período
apostólico, pois o simples fato da existência de uma “geração pós-apostólica”
é, em si mesmo, uma anomalia para o evangelho, pois não se pode dizer que a
igreja passou de uma situação apostólica para alguma outra coisa[6].
No
século XX, o movimento pentecostal resgatou a prática da unção dos enfermos com
óleo, enfatizando que as curas eram possíveis, especialmente se alguns do corpo
de Cristo tivessem o dom de curar, que é atual. Porém, devido aos desvios dos
posteriores movimentos de cura pela fé e do neopentecostalismo, muitos cristãos
têm reagido com ceticismo ao uso da prática recomendada por Tiago[7]. Teriam
eles razão? Na minha concepção, não. Pode-se defender legitimamente como atual
a prática de Tiago. Senão vejamos.
Considerações
sobre a interpretação de Tiago 5.14,15
A
primeira coisa a ressaltar nesta passagem é que ela está inserida em um
contexto maior que trata do poder da oração em geral[8]. O contexto também aborda
a confissão de pecados na igreja. A enfermidade, portanto, pode ter alguma
relação com os pecados cometidos pelo enfermo. De qualquer forma, o verso 15
deixa bem claro que não é a confissão, tampouco o óleo ou o ritual que cura o
enfermo, mas sim a “oração da fé”.
Os
presbíteros eram os líderes da igreja. A iniciativa da unção, por outro lado,
partia do enfermo, não dos líderes, ocorrendo na casa de quem a necessitasse
(possivelmente pela sua impossibilidade de deslocamento até o local de reunião
dos cristãos)[9].
Interessante
observar que Tiago recomenda que sejam chamados os presbíteros, não os que têm
dom de curar. Isso talvez indique que a passagem não tem relação com o
exercício específico do dom de curar, já que nem todo presbítero tinha esse dom
(segundo 1Co 12.28-30, dons de liderança e de cura eram distintos, e a Bíblia
não indica que todos os líderes da igreja primitiva possuíam esse dom) mas sim
com uma prática adotada na igreja primitiva, na qual os presbíteros, talvez
representando a igreja, eram chamados a orar pelo enfermo.
Qual o
significado do óleo? Alguns consideram que era uma espécie de “remédio”, e que,
portanto, não se trataria de rito religioso, mas de tratamento médico numa
época em que a medicina era pouco desenvolvida e que os médicos não estavam
disponíveis ao povo. Argumentam que havia um uso medicinal do óleo [10].
Contudo, a única referência à unção com óleo no Novo Testamento em contexto
semelhante, Marcos 6.13, indica que os apóstolos curavam em um contexto
miraculoso. Além disso, o uso da expressão “em nome do Senhor” indica um ritual
religioso. Portanto, descarta-se a possibilidade de o óleo ser usado meramente
com fins medicinais. Alguns sugerem também ser um amparo à fé do enfermo (uma
“muleta” ou placebo) e o meio pelo qual o poder de Deus se manifesta [11].
Contra essa opinião, o texto indica que o poder está na oração da fé, não no
óleo. Além disso, não parece razoável que Tiago sugerisse o uso de elementos
físicos de maneira supersticiosa, para fortalecer a fé dos mais fracos. Assim,
adoto a posição de que o óleo era usado como um símbolo religioso, indicando a
separação do enfermo para receber o cuidado especial de Deus (como os
sacerdotes no Antigo Testamento eram “separados” quando ungidos com óleo)[12] e
possivelmente a ação do Espírito Santo, cuja pessoa por vezes é simbolizada
pelo óleo na Bíblia[13].
É
importante ressaltar que o Novo Testamento não registra a unção com óleo como
prática recorrente. Jesus nunca curou enfermos usando óleo, mas apenas pela
imposição com as mãos. Ele também nunca determinou aos discípulos que usassem
esse procedimento (um dos motivos, aliás, pelo qual Lutero rejeitou a
extrema-unção ou unção de enfermos como um sacramento). Aparentemente, essa
prática foi introduzida por Tiago entre os deveres dos líderes das igrejas
judaico-cristãs[14].
Sendo
feita “em nome do Senhor” (Jesus), a unção vem selada com a sua autoridade. O
presbítero age como um representante de Jesus, que haverá de abençoar o ato e
aprová-lo[15]. Isso pode indicar, outrossim, que a cura somente ocorrerá se for
feita conforme a vontade de Jesus, o que já indica a possibilidade de não haver
cura[16].
O verso
15 indica como já foi mencionado, que é a “oração da fé” que salvará (curará) o
enfermo, e o Senhor o levantará. Essa oração da fé, ou “oração feita com fé”,
dá a entender que não se trata de fé comum, que todo cristão deve ter, mas de
uma convicção especial dada por Deus em certas situações para seus servos, que
podem ter certeza de que Deus ouviu a oração naquele momento e a responderá. É
uma fé que não pode ser produzida pelo que ora, por meio de exercícios
espirituais, mas é dom de Deus. Ela é dada por Ele, quando Ele soberanamente
deseja atender ao pedido. Isso ajuda a explicar por que nem todas as orações
são respondidas. Não se trata de falta de méritos nossos, ou a falta de
“justiça” ou “poder” do que ora (alguns poderiam associar essa passagem ao
contexto imediato, que fala na oração do “justo” e em Elias, entendendo que
somente os “bons” terão suas orações atendidas), mas da decisão soberana de
Deus em não conceder a cura, pois não era da sua vontade. Se Deus conceder a
cura, dará previamente o dom da fé para que se tenha a “oração da fé”[17].
Em
alguns casos, a enfermidade pode estar relacionada ao pecado. Contudo, não
podemos limitar o ritual de cura aos casos de enfermidades que decorrem de um
pecado partícula. Isso porque o termo “doente”, usado no verso 14, é bastante
genérico, não se aplicando somente aos que possuem enfermidades em decorrência
de situações espirituais. Também a partícula “se” (se houve cometido pecados),
indica que a relação entre enfermidade e pecado é apenas possível, não necessária
[18]. Assim, Tiago ensina que, junto com a cura, eventuais pecados serão
perdoados. É recomendado, portanto, que os presbíteros façam uma inquirição da
vida espiritual do doente, aproveitando para dar a oportunidade de confissão e
perdão[19]. De alguma forma, portanto, a enfermidade e o ritual de oração pela
cura vêm acompanhados pela confissão de pecados e restauração espiritual, não
somente física.
Conclusão
Este trabalho teve o objetivo de demonstrar,
portanto, o significado da passagem de Tiago 5.14,15. Trata-se de um ritual
praticado ao menos em parte da igreja primitiva que foi gradativamente sendo transformado,
até se degenerar na “extrema-unção” católica. Contudo, foi resgatado
recentemente em diversas denominações evangélicas, ainda que às vezes
tristemente deturpado pelos movimentos da fé e pelo neopentecostalismo [20]. De
qualquer forma, nada no texto ou na Bíblia como um todo indica que a prática da
unção de enfermos com óleo, acompanhada da possibilidade de cura e confissão
dos pecados, tenha ficado restrita à “era apostólica”. Ainda hoje podemos
adotar essa prática, mas talvez de forma mais restrita do que a que se vê em
diversas igrejas carismáticas, sem apelar para o misticismo, sincretismo ou
práticas humanas e marqueteiras que nada tem de bíblicas e espirituais. Orar
pelos enfermos em nome de Jesus, usar o óleo como símbolo da ação curadora de
Deus por meio do seu Espírito e a confissão de pecados são procedimentos
legítimos que a prática demonstra que podem trazer muitos benefícios para o
povo de Deus.
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