15ª.Allan
Kardec: quem foi o homem que 'inventou' o espiritismo
Hippolyte
Rivail nasceu em família católica e, desde muito jovem, dedicou-se aos estudos,
sobretudo de filosofia e ciências.
Da
maneira como ele entendia, não se tratava de ter "inventado" o
espiritismo. Allan Kardec (1804-1869) considerava-se o "codificador"
da ideia. Que, para ele, também não era uma religião — mas, sim, uma doutrina,
compatível com a religiosidade cristã e, principalmente, com a ciência e a
filosofia então preponderantes na Europa do século 19.
Kardec
foi o pseudônimo adotado pelo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, notável
pedagogo, professor e tradutor, quando resolveu sistematizar as pesquisas —
consideradas científicas por ele — sobre fenômenos paranormais e a mediunidade.
Chico
Xavier: o médium filho de analfabetos que vendeu 50 milhões de livros
Como
Allan Kardec popularizou o espiritismo no Brasil, o maior país católico do
mundo
Ele
escolheu o nome depois de uma experiência em que um suposto espírito familiar
havia lhe revelado uma vida anterior dele entre druidas celtas da região da
Gália.
No
Brasil, a doutrina espírita kardecista encontrou solo fértil, sobretudo ao
longo do século 20. A ponto de, segundo os dados do último censo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), publicados em 2010, o espiritismo
ser considerado a terceira religião com mais adeptos no país, depois do
catolicismo e das denominações evangélicas — e, também, dos que declaram não
seguir nenhuma religião.
Oficialmente,
são mais de 3,8 milhões de praticantes da doutrina em território nacional.
"Deu certo por aqui porque o espiritismo, no Brasil, desenvolveu mais o
seu lado espiritual, religioso, e aqui já existia, por conta das religiões
afro-brasileiras e afro-indígenas e o sincretismo que se fez no ambiente
religioso, uma propensão à crença em espíritos, em entidades e seres que
interferem cotidianamente na realidade, produzindo infortúnios, curas,
bem-estar na população", argumenta o historiador, sociólogo e cientista da
religião Marcelo Ayres Camurça, professor da Universidade Federal de Juiz de
Fora e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor do livro Espiritismo
em Sete Lições.
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Em
outras palavras, como salienta o pesquisador, no Brasil já hávia uma crença em
espíritos anterior à própria chegada do kardecismo. E isso estava presente
"em orixás, caboclos e no próprio catolicismo popular". "Quando
o espiritismo chega, acontece uma adequação", afirma.
"O
espiritismo kardecista encontra solo fértil aqui no Brasil porque a nossa
matriz cultural nunca foi eminentemente racionalista, sempre foi mais emotiva e
isso desemboca em uma visão religiosa mais mágica", contextualiza o
historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na
Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Nesse sentido, e não há nada
pejorativo aqui, lidamos com as questões de uma maneira a partir do pensamento
mágico, encantado."
"Somos
adeptos de uma religiosidade do encantamento e isso de deve à nossa própria
história, baseada na construção da identidade brasileira, com índios, negros e
portugueses que viveram durante muito tempo aqui e foram também alimentando
esses aspectos. Esse é o caldo de cultura", acrescenta ele.
Moraes
acredita que o espiritismo acabou trazendo "uma resposta que agrada as
pessoas", com "recompensas que não estão presentes em visões mais
deterministas como o cristianismo". "Esse mix transformou de fato o
kardecismo numa religião interessante para o universo brasileiro",
analisa.
De
curioso a teórico espírita
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Partido
João Fellet
tenta entender como brasileiros chegaram ao grau atual de divisão.
Episódios
Fim do
Podcast
Hippolyte
Rivail nasceu em família católica e, desde muito jovem, dedicou-se aos estudos,
sobretudo de filosofia e ciências. Ao situar o percurso intelectual dele, é
preciso ressaltar o contexto acadêmico, uma vez que eram de sua
contemporaneidade o naturalista Charles Darwin (1809-1882), que apresentaria a
teoria da evolução das espécies, e o filósofo Auguste Comte (1798-1857),
formulador do positivismo.
Bacharelado
em Ciências e Letras, Rivail passou a atuar como tradutor, professor e
pedagogo. Foi entusiasta da democratização do ensino e chegou a oferecer aulas
gratuitas em sua própria casa, em Paris.
Em
1854, ouviu falar pela primeira vez sobre as tais "mesas girantes",
encontros mediúnicos que eram moda na França daquele tempo. Cético, atribuiu o
fenômeno inicialmente não a uma força de supostos espíritos, mas a uma
influência do magnetismo.
Quando
começou a frequentar tais reuniões, como curioso, contudo, ele passou a se
convencer de que algo a mais poderia haver ali. E passou a sistematizar um
método científico para, no seu entendimento, comprovar se haveria fraude ou não
nessas sessões — estabelecendo uma série de perguntas que eram feitas do mesmo
modo em reuniões diferentes, a fim de buscar coerência naquilo que lhe era
apresentado como obra de espíritos.
O
pentateuco da nova doutrina
Já
convencido de uma influência sobrenatural, ele publicou sua primeira obra, O
Livro dos Espíritos, em 1857. O material é considerado o marco fundador do
espiritismo kardecista. E ali ele passou a assumir o pseudônimo Allan Kardec,
em referência a sua suposta vida passada mas também como forma de diferenciar a
sua carreira espírita de seus trabalhos como pedagogo.
Fac-símile
da edição de 1860 da obra 'O Livro dos Espíritos', principal livro escrito por
Kardec e base da nova doutrina
CRÉDITO,REPRODUÇÃO
Legenda
da foto,
Fac-símile
da edição de 1860 da obra 'O Livro dos Espíritos', principal livro escrito por
Kardec e base da nova doutrina
E é por
causa dessa fundamentação teórica que Kardec se tornou tão importante. Afinal,
se manifestações espíritas já eram narradas e sessões com médiuns já ocorriam,
ele não "inventou" nada de novo — mas colocou no papel um método e procurou,
a seu modo, explicar o que via.
"Ao
longo da história, ocorreram muitos fenômenos ditos mediúnicos, de comunicação
com espíritos. E o próprio Kardec, que ficou conhecido como líder, quase
fundador, ou 'codificador' do espiritismo, ele não era médium", comenta
Camurça.
"Mas
sua curiosidade fez com que ele se tornasse o primeiro a sistematizar, vamos
dizer que do ponto de vista científico, o que faziam os médiuns", explica
o professor.
Para
escrever seus livros fundamentais do espiritismo, ele passou a frequentar
sessões com médiuns diferentes, aplicando perguntas sistemáticas e as
compilando.
"Eram
questões ao pretenso mundo espiritual, de toda ordem, de cosmologia, do destino
da Terra e dos homens", elenca Camurça.
Kardec
seguiria fazendo pesquisas e escrevendo livros básicos da nova doutrina, tendo
publicado cinco obras até 1868. São considerados "o pentateuco" do
espiritismo.
"Ele
foi aprofundando a doutrina. Seu mérito foi ter feito as perguntas e as
sistematizado", aponta Camurça.
Quando ele
morreu, vítima de um aneurisma aos 64 anos, no ano de 1869, ele trabalhava em
uma obra que procurava explicar as relações entre o magnetismo e o espiritismo.
Na época, estima-se que sua doutrina já era seguida por cerca de 8 milhões de
adeptos.
Allan
Kardec
CRÉDITO,DOMÍNIO
PÚBLICO
Legenda
da foto,
Kardec
não via o espiritismo como uma religião, mas sim como uma doutrina 'que
combinava ciência, filosofia e espiritualidade'
Cientificismo
e teologia
Camurça
situa o kardecismo dentro do contexto cientificista do século 19. "Ele
chama o espiritismo de terceira revelação, sendo a primeira Moisés, a segunda
Jesus Cristo. Esta terceira seria a revelação da modernidade, com a Terra já
evoluída para receber essa doutrina que explicaria a humanidade", afirma.
Nesse
sentido, ele mesclava ideias como a do evolucionismo — com a teoria de que a
humanidade evolui porque a cada reencarnação os seres têm a chance de retornar
melhores — e o sentido de justiça.
"Ele
conseguiu produzir uma doutrina que estava no espírito do seu tempo, ou seja, a
modernidade que negava as religiões enquanto dogmas e acabava adequando a
mentalidade religiosa a uma mentalidade científica e filosófica. Essa era a sua
pretensão", explica Camurça.
Conforme
esclarece o pesquisador, Kardec não via o espiritismo como uma religião, mas
sim como uma doutrina "que combinava ciência, filosofia e
espiritualidade".
Camurça
diz que, para Kardec, "o espiritismo visava superar dois impasses da
modernidade: a religião dogmática que caia no fatalismo, na ideia de que 'as
coisas acontecem porque Deus quis assim', sem buscar explicações lógicas e
racionais; e a ciência ateia e utilitarista que não percebia os valores mais
aprofundados da humanidade."
Na sua
proposição, Kardec acabou trazendo uma doutrina baseada na crença dos fenômenos
da vida pós-morte. "E isso é significativo, porque, a princípio, a ciência
não se interessa por isso", enfatiza Camurça.
"Ele
quis estender a ciência da época, muito positivista, a uma compreensão do mundo
inefável. O que era científico mas também filosófico, porque existia uma moral
por trás disso", acrescenta.
No
kardecismo, enfatiza Camurça, "Deus é o princípio de todas as coisas, uma
força vital que organiza o cosmos e tem uma moral que implica em valores de
justiça".
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